Professor
doutor Luís Alberto Brandão Santos - UFMG
Houve um tempo em que se acreditava que a poesia era a mais
profunda expressão da alma humana. A profundidade dizia respeito
ao desejo de preservar uma imagem coesa do que seria o humano
através da crença na alma, e da eleição de uma forma privilegiada
pela qual ela se expressaria. Também houve um tempo em que se
acreditava que a poesia se definiria por um modo peculiar de
configuração da linguagem: a alma da poesia seria a própria
materialidade de seus signos. Lugar de excelência do sensível, a
poesia guardaria, em sua imanência ideal, o especialíssimo poder
de se justificar a si mesma.
Em Foolturo, a
poesia não possui tais privilégios, quaisquer privilégios. Se há
uma efetiva radicalidade poética, esta se dá no gesto que abole a
"especialidade" da própria poesia. Se há uma alteridade da voz
poética, esta se encontra no reconhecimento corajoso de que a
poesia é um discurso cujo estatuto, enquanto discurso, não é
diferente de qualquer outro: é precário, é equivocado, depende de
pactos de todas as ordens, é transitório, alimenta-se de vaidades,
vilezas e mistificações.
Aqui, não se arrogam imunidades a palavra-alma (porque as
almas evaporaram dos corpos) e a palavra-coisa (porque já não se
sabe se há uma "coisidade" das coisas). Em Foolturo, a palavra é
"desfundamento", ruína do que já se entendeu como arte, espectro
de estesia.
Houve um tempo em que se acreditava que o poeta era capaz
de produzir poesia: das
ilações de sua voz interior nutria-se a aura dos poemas. Também
houve um tempo em que o poeta, transformando em trunfo a
debilidade de sua voz, pretendeu-se veículo, médium catalisador da
poesia. Metafórica ou literalmente, não há mediunidade em Foolturo. Não há autoria
neste livro.
Aqui, quem escreve é designado como mero "escrevente". Ou
melhor: como leitor. A escrita é um procedimento de leitura. Jamais, no entanto,
leitura privada, projeção de uma subjetividade tolamente orgulhosa
de si mesma, e sim "pública e anônima". Daí a aproximação entre
poeta e crítico: o que é o crítico senão um metaleitor? Um leitor
cuja meta é sair de si mesmo? Ninguém indaga quanto à autoria de
um aparato tecnológico. Pois Foolturo é um aparato,
construído a partir da exploração da mais sofisticada das
tecnologias: o pensamento.
Houve um tempo em que se acreditava que o tempo era a
categoria existencial por excelência, trazendo em seu bojo
unificador tanto a penúria do humano, em sua submissão a todos os
imperativos naturais, quanto a sua redenção, através das miragens
que criam a continuidade histórica, o progresso da civilização, as
tradições culturais.
Foolturo,
buscando outras direções, é um manual de agrimensura, um
empreendimento cartográfico: a simples fórmula "enquanto isso"
demonstra como se pode, a partir do texto, espacializar o tempo, o
que significa trazer à tona os seus lapsos, tratá-lo como
"entretempo". Indagar o futuro é desamarrar o presente de sua
presumida orientação, de seu supostamente inevitável telos.
"Ninguém se interessa muito pelo que não faz sentido" — é a
afirmativa que este livro enuncia e nega, pois o futuro é
exatamente o lugar onde o não-sentido se faz. Futuro não é, aqui,
referência temporal, e sim categoria epistemológica. Trata-se não
de propor uma historiografia do futuro, de colonizar o campo da
hipótese, de teorizar sobre a poesia, mas, ao
contrário, de futurizar a história, de hipotetizar o presente, de
teorizar a poesia: eis o gesto crítico.
Houve um tempo em que se acreditava que dizer algo como
"houve um tempo em que se acreditava que..." representava, em si,
um bom ponto de partida para que a credibilidade do interlocutor
fosse conquistada. Tratava-se de tirar partido da afirmatividade
da linguagem, capaz de atribuir verossimilhança, com simples jogos
de palavras, às noções mais improváveis. Tratava-se de postular um
conhecimento auto-suficiente, que tentava dissimular, sob a
máscara de um tom sóbrio e seguro, os artifícios persuasivos mais
extravagantes.
Em Foolturo, a
arrogância afirmativa do dizer está em crise. Não há voz que sabe.
O exercício de erudição, que mapeia vertiginosamente inúmeros
recantos da enciclopédia de referências culturais do Ocidente
volta-se contra si mesmo, minando sua suposta consistência com um
efeito intenso de rarefação; efeito que é, afinal,
deseruditizante. Ao nomear abundantemente, penetra-se no reino da
desnominalização. Na velocidade do tráfego da escrita-leitura,
qualquer pretensa autoridade prévia da voz se dissipa. Interessa,
ao aparato fooltúrico,
a ignorância da voz. Que não é, por sua vez, presunção disfarçada
ou pressuposição de uma plenitude serenizante do
não-saber.
É possível ignorar de muitas formas, e vasculhar os
inúmeros estilos de
não-saber transforma-se em uma empreitada iluminadora, ou
obscurecedora, da própria noção de
conhecimento.
Em Foolturo,
insta-se.
Houve um tempo em que se acreditava na natureza pacífica
dos verbos haver e acreditar, que fundamentavam uma dicotomia que
opunha constatação e crença, dados e sonhos, realidade e
imaginário, verdades e pactos. Em Foolturo, não se
distingue o generalizável do contingente. O verbo acreditar força
o verbo haver a se conjugar: acreditar faz haver. Mas o haver
desmistifica a intangibilidade do acreditar, introduz desconfiança
em seu desejo de um caráter absolutamente idiossincrático,
transforma-o em meta-acreditar: haver co-acredita. Neste livro,
haver e acreditar são híbridos que se experimentam, em diferentes
dosagens, a partir de uma imagem recorrente: o céu
estrelado.
Diante de um céu estrelado, como distinguir o insondável do
banalíssimo, o impulso científico dos misticismos mais alucinados,
a ignorância exasperante da premência do saber? Na parataxe
radical das poeiras estelares, tudo é passível de se conjugar, a
rarefação é proliferante, as diacronias são sincrônicas, as
dimensões cósmicas celebram e simultaneamente aniquilam o
corpúsculo humano. Esse estado, no qual ser é anular-se, Foolturo designa de
"alegria", elegendo o humor como um dos enlaces privilegiados
resultantes do flerte entre saber e não-saber, entre confiança e
incerteza do futuro. Diante de um céu estrelado torna-se possível
que um observador, saindo de si, defina-se. Diante do enigma das
estrelas pulverizadas no manto celestial, "o olho é um
l-astro".
Há um tempo em que se acredita que um livro pode ser um
ousado modelo cosmológico, que se baseia na complexa semovência
das esferas desconhecidas. Foolturo é este livro.
Empós do
pós
Ritornello
A 6ª
extinção
Relatório sobre o
conhecimento provisório
Canivete
suíço
A fênix de
Langtônia
Baile de
máscaras
On the road para
Ferlinghetti
O futuro não
existe
Desvelação
São outros os medos
que hoje afligem o homem
Fu-turismo
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Neoliberalismo
cósmico