Sebastião Nunes

Presidente da Comissão Julgadora

 

 

         Dos mais ou menos 1.300 livros inscritos no concurso "Cidade de Belo Horizonte" neste ano de 2000, cerca de 1150 não merecem sequer ser considerados poesia. São textos absolutamente primários, produzidos por gente que jamais leu um poema, ou apenas leu o que existe de pior, além de ouvir (e ouvir mal) a pior música popular. Seus temas recorrentes, piegas e lacrimosos, podem ser resumidos nas palavras amor, saudade, paixão, Deus, infância.

         Sobraram, portanto, cerca de 150 livros, merecedores de uma segunda leitura e de mais atenção. Destes, embora seus autores tenham bom nível de linguagem e de artesanato poético, a grande maioria ainda está presa a fórmulas legadas pelo passado mais ou menos próximo. Encontramos aqui desde poetas parnasianos até modernistas, passando pela geração de 45 e pelos neo-simbolistas, além de bastante poesia esotérica (com certeza alimentada por livros de auto-ajuda). Observei forte influência de autores como Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Drummond e Cabral, alguns beirando o pastiche puro e simples. E também de autores na "moda" mais recentemente, como Mario Quintana, os concretistas, Manoel de Barros e Adélia Prado. Sem falar nos hai-kaístas, bastante numerosos e cultores de humor fácil e fórmulas mais fáceis ainda, dos quais nenhum escapou do naufrágio.

         Numa terceira etapa, selecionei 22 livros, dignos de uma leitura realmente aprofundada e minuciosa, não tanto letra a letra mas poema a poema, buscando surpreender unidade, coerência, originalidade, enfim: capacidade intelectual de pensar o mundo sob a forma de poesia. Para evitar ao máximo qualquer tipo de preconceito contra formas poéticas, inclui nessa etapa as mais variadas tendências, inclusive as citadas acima (exceto hai-kais), além de livros de sonetos e redondilhas, desde que trabalhadas com o já referido alto nível de elaboração poética.

         Finalmente, dividi esses 22 livros em três grupos: 16 deles são de bons poetas, mas que ainda revelam influências diversas bem fortes (alguns excessivamente fortes), e nos quais me pareceu faltar um pouco mais de artesanato e aprofundamento na linguagem e nos temas. Quatro livros têm um nível bastante alto, dignos até do prêmio, desde que, acima deles, não se destacassem dois outros, esses sim, criadores excepcionais, dos quais poderia mesmo dizer que inauguraram (ou reinauguraram de forma absolutamente pessoal) caminhos novos dentro da poesia brasileira contemporânea..

         Finalmente, aqueles que, na minha opinião, não só se revelam poetas maduros e conscientes (ou inconscientes) do que fazem, como também justificam a própria existência do concurso.

         Como o regulamento do concurso admite apenas um vencedor, o pêndulo de minha balança pende para o concorrente com o pseudônimo Estevão Espilbergue. Trata-se de um poeta capaz de variar de ritmo sem perder o nível, de ser erudito sem deixar de ser poeta, de ser poeta mesmo quando sugere estar fazendo prosa. Nele, dois aspectos me chamaram especialmente a atenção: primeiro, a nenhuma influência detectável de qualquer poeta que eu conheça, talvez traços longínquos do Eliot de The Wast Land, especialmente pelas numerosas citações, ou "rastros", como ele prefere; segundo, por ter sido capaz de criar uma autêntica cosmogonia, um bailado informacional e lingüístico amplo e diversificado, sem prejuízo de rigorosa construção poética. Em resumo: um verdadeiro poeta, no domínio pleno de sua capacidade criadora.

 

 

 

 

 

Professor doutor Luís Alberto Brandão Santos - UFMG

 

 

         Houve um tempo em que se acreditava que a poesia era a mais profunda expressão da alma humana. A profundidade dizia respeito ao desejo de preservar uma imagem coesa do que seria o humano através da crença na alma, e da eleição de uma forma privilegiada pela qual ela se expressaria. Também houve um tempo em que se acreditava que a poesia se definiria por um modo peculiar de configuração da linguagem: a alma da poesia seria a própria materialidade de seus signos. Lugar de excelência do sensível, a poesia guardaria, em sua imanência ideal, o especialíssimo poder de se justificar a si mesma.

         Em Foolturo, a poesia não possui tais privilégios, quaisquer privilégios. Se há uma efetiva radicalidade poética, esta se dá no gesto que abole a "especialidade" da própria poesia. Se há uma alteridade da voz poética, esta se encontra no reconhecimento corajoso de que a poesia é um discurso cujo estatuto, enquanto discurso, não é diferente de qualquer outro: é precário, é equivocado, depende de pactos de todas as ordens, é transitório, alimenta-se de vaidades, vilezas e mistificações.

         Aqui, não se arrogam imunidades a palavra-alma (porque as almas evaporaram dos corpos) e a palavra-coisa (porque já não se sabe se há uma "coisidade" das coisas). Em Foolturo, a palavra é "desfundamento", ruína do que já se entendeu como arte, espectro de estesia.

         Houve um tempo em que se acreditava que o poeta era capaz de produzir poesia: das ilações de sua voz interior nutria-se a aura dos poemas. Também houve um tempo em que o poeta, transformando em trunfo a debilidade de sua voz, pretendeu-se veículo, médium catalisador da poesia. Metafórica ou literalmente, não há mediunidade em Foolturo. Não há autoria neste livro.

         Aqui, quem escreve é designado como mero "escrevente". Ou melhor: como leitor. A escrita é um procedimento de leitura. Jamais, no entanto, leitura privada, projeção de uma subjetividade tolamente orgulhosa de si mesma, e sim "pública e anônima". Daí a aproximação entre poeta e crítico: o que é o crítico senão um metaleitor? Um leitor cuja meta é sair de si mesmo? Ninguém indaga quanto à autoria de um aparato tecnológico. Pois Foolturo é um aparato, construído a partir da exploração da mais sofisticada das tecnologias: o pensamento.

         Houve um tempo em que se acreditava que o tempo era a categoria existencial por excelência, trazendo em seu bojo unificador tanto a penúria do humano, em sua submissão a todos os imperativos naturais, quanto a sua redenção, através das miragens que criam a continuidade histórica, o progresso da civilização, as tradições culturais.

         Foolturo, buscando outras direções, é um manual de agrimensura, um empreendimento cartográfico: a simples fórmula "enquanto isso" demonstra como se pode, a partir do texto, espacializar o tempo, o que significa trazer à tona os seus lapsos, tratá-lo como "entretempo". Indagar o futuro é desamarrar o presente de sua presumida orientação, de seu supostamente inevitável telos.

         "Ninguém se interessa muito pelo que não faz sentido" — é a afirmativa que este livro enuncia e nega, pois o futuro é exatamente o lugar onde o não-sentido se faz. Futuro não é, aqui, referência temporal, e sim categoria epistemológica. Trata-se não de propor uma historiografia do futuro, de colonizar o campo da hipótese, de teorizar sobre a poesia, mas, ao contrário, de futurizar a história, de hipotetizar o presente, de teorizar a poesia: eis o gesto crítico.

         Houve um tempo em que se acreditava que dizer algo como "houve um tempo em que se acreditava que..." representava, em si, um bom ponto de partida para que a credibilidade do interlocutor fosse conquistada. Tratava-se de tirar partido da afirmatividade da linguagem, capaz de atribuir verossimilhança, com simples jogos de palavras, às noções mais improváveis. Tratava-se de postular um conhecimento auto-suficiente, que tentava dissimular, sob a máscara de um tom sóbrio e seguro, os artifícios persuasivos mais extravagantes.

         Em Foolturo, a arrogância afirmativa do dizer está em crise. Não há voz que sabe. O exercício de erudição, que mapeia vertiginosamente inúmeros recantos da enciclopédia de referências culturais do Ocidente volta-se contra si mesmo, minando sua suposta consistência com um efeito intenso de rarefação; efeito que é, afinal, deseruditizante. Ao nomear abundantemente, penetra-se no reino da desnominalização. Na velocidade do tráfego da escrita-leitura, qualquer pretensa autoridade prévia da voz se dissipa. Interessa, ao aparato fooltúrico, a ignorância da voz. Que não é, por sua vez, presunção disfarçada ou pressuposição de uma plenitude serenizante do não-saber.

         É possível ignorar de muitas formas, e vasculhar os inúmeros estilos de não-saber transforma-se em uma empreitada iluminadora, ou obscurecedora, da própria noção de conhecimento.

          Em Foolturo, insta-se.

         Houve um tempo em que se acreditava na natureza pacífica dos verbos haver e acreditar, que fundamentavam uma dicotomia que opunha constatação e crença, dados e sonhos, realidade e imaginário, verdades e pactos. Em Foolturo, não se distingue o generalizável do contingente. O verbo acreditar força o verbo haver a se conjugar: acreditar faz haver. Mas o haver desmistifica a intangibilidade do acreditar, introduz desconfiança em seu desejo de um caráter absolutamente idiossincrático, transforma-o em meta-acreditar: haver co-acredita. Neste livro, haver e acreditar são híbridos que se experimentam, em diferentes dosagens, a partir de uma imagem recorrente: o céu estrelado.

         Diante de um céu estrelado, como distinguir o insondável do banalíssimo, o impulso científico dos misticismos mais alucinados, a ignorância exasperante da premência do saber? Na parataxe radical das poeiras estelares, tudo é passível de se conjugar, a rarefação é proliferante, as diacronias são sincrônicas, as dimensões cósmicas celebram e simultaneamente aniquilam o corpúsculo humano. Esse estado, no qual ser é anular-se, Foolturo designa de "alegria", elegendo o humor como um dos enlaces privilegiados resultantes do flerte entre saber e não-saber, entre confiança e incerteza do futuro. Diante de um céu estrelado torna-se possível que um observador, saindo de si, defina-se. Diante do enigma das estrelas pulverizadas no manto celestial, "o olho é um l-astro".

         Há um tempo em que se acredita que um livro pode ser um ousado modelo cosmológico, que se baseia na complexa semovência das esferas desconhecidas. Foolturo é este livro.

 

 

 

 

  

 

 

 

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A 6ª extinção

Relatório sobre o conhecimento provisório

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On the road para Ferlinghetti

O futuro não existe

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São outros os medos que hoje afligem o homem

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