O PESO DA ÁGUA

 

Tantas chances de falar a verdade. Todas, ele me deu. E mais uma vez eu menti. Sentada na janela, minhas mãos brincavam de Deus. Aos meus pés ele chora. E eu lhe juro ser santa. Ele chora, sem lágrimas — correnteza nas minhas veias — eu as sinto. Lavam e me levam abaixo, caio no poço mais profundo. Nesse rio que se forma, a mesma forma sempre vem a se formar; eu me vejo, Narcisa. Ele chora, grita, se afoga, e nada... Estamos parados e mudos. Prendi o ar, cada vez mais sufocada. Eu sabia e ele sentia. Ele chora por mim e nada. Nada dentro de mim — eu não tenho saída. Pingou sem parar até que parou de pingar. Ainda mudos. E então seus olhos encheram-se de água doce. Esticou a mão para que eu lhe puxasse do fundo. Mas eu era muito rasa, muito vazia. Senti a mentira queimando como chamas a me chamar. Era hora de lavar a alma. Subi na janela e mergulhei sem asas.

 

 

 
 

 

ADEUS AO REAL

 

Um gole, um trago. Sem nenhuma pressa preenche seu copo com café, já tépido. Mais um trago, fundo. Sente a fumaça percorrer lentamente seu corpo, deixando-o tão leve quanto ela própria. A grama verde e macia o pinica, causando-lhe extremo prazer sensual, uma mistura de dormência e cócegas. Um sorriso estático é fixado em seu rosto. É a sensação de alívio. Ao fundo, uma música sem melodia embalava seus pensamentos. A luz diminui; as montanhas sobem pelas paredes do céu. Ele se sente muito pequeno, cada vez menor. Uma partícula inerte no canto do universo, observando seu coordenado funcionamento multidimensional. As fadas dançam em torno do pôr do Sol. Uma a uma elas descem para beijá-lo. Beijos de vampiro, instigantes. Elas cantam bem baixinho, formando uma envolvente sinfonia com o som ambiente. De repente, um vazio. Cava-se um buraco no seu corpo; as lágrimas causam-lhe erosões. Sente-se fraco. O incômodo o traz de volta a sua realidade. Era fome. Ela faz com que ele percorra de volta léguas em minutos. Ele então cresce, e fica grande demais para seu barraco furado, sujo, escuro. Deitado impotente em um chão de terra, sob um lampião infestado de mosquitos. E nada para comer. Era preciso urgentemente sair dali. Um gole, mais tragos...
 
 

 

 
 

 

EGO ISMOCÊNTRICO

 

Ela era incrível, e sabia disso. O corpo, uma escultura grega, de porte romano; cores e contrastes modernos; sotaque cantarolado; andar dançante; ar de cosmopolita; cheiro surrealista; gosto de comida caseira... Não se achava uma obra-prima. Dizia que o seu valor não era representado por sua imagem, era muito maior. De fato era, e ela sabia disso. Mas só sabia porque sentia. Livre e metódica. Sonhava em preto e branco. Apresentava-se representando. Perdera a conta de quantas pessoas parecia ser. Tomava banho cantando em silêncio. Fechava os olhos e as torneiras deixava pingar, concentrando-se instintivamente no ritmo criado pelas gotas ao cair em seus pés. De repente, nada mais diziam. Era hora de apertar forte a torneira quente, e então os pingos ficavam mais espaçados, mudando, satisfatoriamente, a cadência. Novas melodias exigiriam muitos banhos gelados. Pelas ruas, seus olhos tiravam fotos dos ângulos mais baixos e dos mais altos. Nunca focavam as vistas medianas. Sua mente tendia à polarização. Sua alma era intensa, a levava a extremos. Quanta força. A capacidade de produção que a habitava era tão múltipla que poderia ter sido, de fato, todos os seus personagens. Ela era incrível, e sabia disso. Cada membro que a constituía seria capaz de alcançar dimensão histórica, nenhuma frase sem conteúdo passava por sua mente, nenhuma idéia fútil, vazia, comum. Nenhuma rachadura em seu caráter, nenhuma cor sua poderia se desbotar. Contudo, ela não falou, não gritou, não pintou, não rabiscou, não contou, não cantou, não encantou. Ela não viveu, pois nada produziu. E nada produziu porque achava incompreensível a sua alma. Queria decifrar sensações... Nunca soube que a alma de um artista não sabe falar a língua dos homens e precisa buscar outros meios pelos quais se expressar. Sua ignorância foi um cativeiro para a sua alma — livre por essência
, que buscou cotidianamente, desesperadamente, de todas as formas, libertar-se. Existiu para si, morreu em si. Privou-nos de todo o conhecimento enigmático, de todos os aprendizados não compreensíveis, não passíveis de reprodução. O diálogo espiritual das sensações, proveniente da produção mágica da arte, não ocorreu. Nunca pensaram nessa perda irreparável nem no quanto não sabemos por sua culpa. E era o tanto que tanto precisávamos absorver da sua singular alma, mas disso ela não sabia.
 
 
 
(imagem ©malvinka)
 
 
 
 
Camila Camacho. (Rio de Janeiro, 1988). Estudante de Comunicação na FACHA, Rio de Janeiro. Produz o blogue Artigos de Arte.