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Entrei em Santiago pressentindo: antevendo o intuído. No princípio era uma Casa: a mansão do narrador, do personagem e agora a morada onde também repousa minha Memória: a mansarda de guardados de meu espírito. O pé de silêncio desdobrou-se em infindos rizomas: signos carregados de significados refletidos no que me é mais íntimo: o culto à Beleza e o desejo interdito. A casa da Gávea me transportou a dois frontispícios anímicos, sobressaindo do meu reino literário: abertura de Rebecca, de Daphne Du Marier, e o monumental proscênio de Os Maias, de Eça. "Gosto de gostar das coisas", essa frase de Andy Warhol cabe em mim e no mordomo: um best-seller cult e um clássico lusitano fazem sinapses heterodoxas: Santiago cultiva Giotto e Hebe Camargo assim como Wittgenstein era o gênio da lógica, amando Carmen Miranda e Mickey Mouse.

 

"A noite passada sonhei que tinha ido novamente a Manderley. Pareceu-me ter ficado por algum tempo diante do portão de ferro, fechado a cadeado (...) A vegetação invasora triunfava. O caminho de outrora transformara-se em simples trilha, com o pedregulho desaparecido sob a invasão de musgos e grama. Galhos rasteiros embaraçavam-se a marcha (...) eu reconhecia arbustos que nos tinham servido de marcos em nosso tempo; criatura de beleza e graça, famosas hortênsias de tufos azuis. Ali estava Manderley, nossa Manderley (...) O Tempo não quebrara a perfeita simetria daqueles muros...".  Um "zoom" no século XIX: "A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na vizinhança da Rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela "casa do Ramalhete" ou simplesmente o "Ramalhete" (...) sombrio casarão de paredes severas (...) Longos anos o Ramalhete permanecera desabitado, com teias de aranha pelas grades dos postigos térreos, e cobrindo-se de tons de ruína (...) e o Ramalhete possuía apenas, ao fundo dum terraço de tijolo, um pobre quintal inculto, abandonado às ervas brancas, com um cipreste, um cedro, uma cascatazinha seca, um tanque entulhado, e uma estátua enegrecendo a um canto na lenta humidade das ramagens silvetres". Abre-se o espanto diante do Absurdo: o inanimado das coisas sobrevivendo ao encantatório das consciências que jazem cósmicamente dissolvidas.

 

Bachelard nos fala dos cantos: "Então, do fundo de seu canto, o sonhador se recorda de todos os objetos de solidão, dos objetos que são lembranças de solidão e que são traídos unicamente pelo esquecimento, abandonados num canto. Do fundo de seu canto, o sonhador revê uma casa mais velha, a casa de outro país, fazendo assim uma síntese da casa natal e da casa onírica. Os objetos, os antigos objetos o interrogam. O canto nega o palácio, a poeira nega o mármore, os objetos usados negam o esplendo e o luxo. O sonhador, no seu canto, pautou o mundo num devaneio minucioso que destrói um a um todos os objetos do mundo. O canto transforma-se num armário de recordações". Documentário em que se lê: intermitências, recolho, alinhavo vestígios perpassando interstícios: Santiago evocatório: personagem de Borges com conteúdo proustiano. "Funes, o memorioso", saído de Combray, Balbe ou Guermantes. Não caio na tentação sociológica de reduzir relação patrão e criado: Santiago e João não cabem mais do delicioso Gilberto Freyre.

 

De João Salles, abstraio elementos que não são artísticos: assim tento, mas falar sobre João Salles é projetar-me no tanto refletido que tenho de Santiago. Sabia adentrar continente infindável: recorri aos meus clones-fantasmas: minhas pastas e dentre elas um guardado de recortes sobre fado, fardo que é o  excesso de sensibilidade: passagens sublinhadas de João. Meses antes de testemunhar esse que para mim é mais importante documentário brasileiro (sou hiperbólico e, cá com meus botões, sei quanto sou sincero comigo) busquei uma epígrafe perfeita para meu romance Edoardo, o Ele de Nós e achei relendo Sete Noites de Borges: primeiro espanto! Francesca de Rimini era ícone pessoal de Santiago quanto representa pra mim de simbólica "anima": Santiago é junguiano, João alcança individuação aos quarenta, dando conta da memória, da redescoberta, ultrapassados os anos em que mais facilmente sucumbimos ao peso da sutileza, aflição ante o estranhamento da existência. Tudo é sincronicidade e intelecção. Ponho-me seguindo esse roteiro: "Paolo e Francesca estão no Inferno e Dante os salvará. Mas os dois se amaram, enquanto ele não obteve o amor da mulher querida, Beatriz. Enquanto isso, esses dois condenados estão juntos; não podem comunicar-se; giram no negro turbilhão, sem qualquer esperança... mas estão juntos. Quando Francesca fala, diz sempre "nós"; fala pelos dois; uma outra forma de estarem juntos. Cada um de nós se define para sempre, num único instante esse em que cada qual se encontra para sempre consigo mesmo. Já disseram que Dante foi cruel, ao condenar Francesca. Mas isso significa um desconhecimento quanto ao Terceiro Personagem. Então aparece o número três, que completa as coisas. Se dois é uma mera coincidência, três é uma confirmação...". Entro no filme-livro feito interpretante dessa Obra-Aberta: interpretante privilegiado pelo tanto que carrego de "santiagonismos": neologismo constante num dos documentos, revelando biografemas da catedral historiográfica que servem de sublimação ao mordomo como eu mais afeito à Madonas que Vênus, aos dramas que as tragédias, um fazedor de pontes entre o Sétimo Selo e o antológico cemitério de Gênova: onde a morte reflete Oceano-Mar. Não uso da lembrança, mas resminiscência: Santiago "experimenta" mais que aquele que remete à "vivências".

 

João é todo ele enquadramento: usa das frestas: um líder político entre atos e um virtuose evasivo foram marcos: Lula é uma trajetória, Nelson Freire, um destino brilhante no restrito: os instrumentistas, por mais exímios, não vão longe em intertextualidades: fixam-se em seus suportes tímbricos.

 

Santiago é poeta da memória: melo-logo-fanopaico: João carrega em poeticidade, semiose, lapidar naquilo que Hegel denominava "acaso objetivo": as folhas sobre a piscina antecedem em muito jogo com fluidez dum cartucho esvoaçante em Beleza Americana. Abortos mentais: regurgitofagia: excesso verborrágico: ênfase, Santiago é caleidoscópio de "rosebuds" e "madeleines": estão todos mortos, mesmo assim perpetra inutileza aparente da persistente retenção de emocionalidades: mítica profana: um boxer faz as vezes dum gladiador, uma pia batismal baiana sustêm eflorescências de Mozart e Bach: adágios, odes, cantatas, Santiago elegíaco: perfil de John Gielgud, um espectro em Sunset Boulevard: estão todos mortos, mas ele carrega seus clones fantasmagóricos: a marquesa, Cláudia Mussi, Gigli, a avó, os jóqueis portenhos, os "flaneurs" bonairenses: seu latim mecânico, "poseur" ante o cortinado crepuscular, a ritualística libação com ânfora: Santiago é todo ele "essencialidade", um monástico copista: João retrata o pensador em sua cela feito Rembrandt com pano de fundo reverencialmente prosaico de Vermeer: Santiago crispa, revolve-se em ademanes, faz-se conduzir sendo ele soberano conspícuo, nefelibata "sfumato" imune à mumificação. Trapista, estóico, epicurista, "dândy": uma figura ambígua, que não fixa-se em tipo, imoldurável.

 

Transposto à modernidade, o sibarita heráldico só pode ser lido a partir de seu deslocamento, assídia: tal Baudelaire gozozamente indisposto ao "novecento", encontrei em Walter Benjamin indícios de sua indiscernibilidade. Tanta exegese por que também tenho Santiago em mim: a sedução pediu mirada cerebrina. Santiago feito aedo,  poeta na definição de Décio Pignatari é o que não está no gibi. "A mais perfeita reprodução falta sempre algo: o hic et nunc da obra de arte, a unidade de sua presença no próprio local onde se encontra". A autencidade em João Salles está na assumida precariedade de apreenssão do "continuum", o devir que se indetermina num episódio da infância, numa digressão acerca da logística e montagem dos rudimentos impalpáveis: fricção entre dado instante e fixagem do originalmente transmissível.

 

Diante da fiel totalidade mimética recorro ao mestre Benjamin: "Poder-se-ia resumir todas essas falhas, recorrendo-se à noção de 'aura', e dizer: na época das técnicas de reprodução, o que é atingido na obra de arte é sua 'aura'". João funda mesmo Santiago, reproduzindo seu humaníssimo fascínio no âmbito da tradição: contemporâneo do que subjaz permanente: a herança cultural substituindo o senso de rebanho definido como natureza humana: além da biologia, é o espírito de preenchimento do vazio reflexionado que ordena a civilização pela iniciativa, ainda que obscura, de individualidades alumiadas: um transe, sucessão de insights: a não liquidação da tradição dentro da herança cultural, o cinema como antídoto à liquidação geral temida por Benjamin, citando Abel Gance: "Shakespeare, Rembrandt, Beethoven farão cinema... Todas as legendas, toda a mitologia e todos os mitos, todos os fundadores de religião e todas as próprias religiões... aguardam sua ressureição luminosa e o heróis se empurram diante das nossas portas para entrar". E em Santiago todos entram não para esvanecer no maisntream ou liquifeitos na massificação de esteriótipos: não! é um monge "cult", que nos convoca à ritualística do conhecimento: a vilegiatura cervantina das gestas, dos cavaleiros justiçando, de príncipes decaídos, dum sustenido vibrátil por cordas irisdicentes: impérios reverberando ofício de donzelas e campônios: as dinastias são hipérboles de recantos, hábitos, alcovas, catres e suspiros intestemunhados. "Despojar o objeto de seu véu, destruir sua 'aura', eis o que assinala de imediato a presença, uma percepção, tão atenta àquilo que 'se repete identicamente pelo mundo', que , graças à reprodução, consegue até estandardizar àquilo que existe uma só vez".

 

Santiago nos conta do que um-só-uma-vez das noites de gala, da disposição de talheres, da rígida etiqueta justanpondo-se ao longínquo bafejo da intransponível "naturaleza": os salões despojados na mais pura madrugada ecoando Beethoven para ouvidos infantes: tocava como privilégio direto: sem intermédio que não a tocata irrepetível. O filme é "making-off"  da instantaneidade, "making-off'" como vísceras expostas, recurso nunca último de tatear algo que se aproxime da narratibilidade.

 

A sacralidade aliada ao profano, o cultivo mais que o culto: ascese lúbrica: e não se vêem as madonas: João nos sugestiona, a memoriabilia reconstitui-se em bric-bracs sinápticos por errático roteiro: onde um retrato, uma poltrona são detalhes imantando atmosfera que é reproduzida em escala diminuta, minimal do quarto-sala dum gigante irredutível. "Não estamos mais no tempo em que se rendia um culto divino às obras de arte, onde se podia dedicar-lhes preces; a impressão que elas nos transmitem é mais discreta e a sua capacidade de emocionar ainda requer uma pedra de toque de ordem superior". Nos diz Hegel, comentado por Walter Benjamin, que não se tendo mais a Virgem de Rafael, só emoldurando os funerais dum papa numa capela lateral de São Pedro, profanado como mercadoria, o senso de Arte é vindicado pelo transverso da evocação subliminar recheada de enfática dramatização dum cinematógrafo em estado bruto. A sagração epifânica é intervalada por lances de não-acontecimentos em atopos: lugar alhures me colocando em tramas diagonais: ("Parêntese. Na grande e incrível atopológica da 'set theory', que analiso aqui com obstinação, acabo de, mais uma vez, fazer uso da expressão 'encontrar-se'. Para sublinhar que alguma coisa do de fora, enquanto que de fora, exterior a um conjunto dado, 'encontra-se' também inscrita dentro, o maior 'encontrando-se' assim pré-compreendido num menor sempre maior que maior...". Derrida que salve: clautrosfóbico depoimento onde nada se descortina: contém-se, aprofunda e desgarra. Nem multidões sedentas ou Martha Argerich: Santiago arremesa bem postado, seu tesouro é ápice: mnemônico excesso de consciência: a mesa clean, apartado basicamente acalenta feito Xavier de Maistre, Malone ou Blanche Dubois a saudável alienação do que se consome convencido de nexo e desiderato: meu neurônio-câmera cenografa as manhãs não-mumificadas quando já não metáfora, é metonímia: procede em sua máquina os tais 'abortos mentais',  que no cotidiano enfeitamos como finalidade.

 

A memória de Santiago não é esquecimento como diria Mário Benedetti, é memória por evocação: relembramento, 'ritorno' fazendo 'paux-de-deux' com ele mesmo. Ao mesmo tempo em que diz que aquele que tem 'toda!' memória é um estúpido - referindo-se à "Funes, o Memorioso", de Borges -, Umberto Eco recompõem o que seja memória: "A memória é nossa identidade, nossa alma. Se você perde a memória hoje, já não existe alma; você é um animal. Se você bate a cabeça em algum lugar e perde a memória, converte-se num vegetal. Se a memória é alma, diminuir muito a memória é diminuir muito a alma". Santiago recria: é virtuose do relato e da retenção reinterpretada: ama, odeia, revivifica embates nobiliárquicos e disputas entre dinastias. Santiago guarda repudiando, escarnece a perenitude como Proust em "Tempo Descoberto": "Só podemos recriar aquilo que amamos repudiando aquilo que amamos". Ama a trajetória transmutando-a para documentos empoeirados, revisitados com pouca convicção de finalidade. Alan Finkielkraut diz-nos desse embate de negação da temporalidade pela fixação na História: se até o peru da ceia na casa da nobre portenha é morto, o que fica é memorabilia do espírito em estilhaços. "A História supõe uma certa memória, uma certa continuidade, enquanto o regime temporal da mídia supõe, ao contrário, imediatismo, descontinuidade e incapacidade de se representar os fatos. A imagem tem uma espécie de validade imediata, a imagem diz que aquilo que se vê é a verdade. Ora, todos nós somos maleáveis, permeáveis à manipulação e, por outro lado, cada vez menos capazes de tomar distância, a recolocar as coisas em perspectiva e delas guardar a memória. Talvez estejamos, sob a influência desse novo código audiovisual, saindo do regime intemporal da História para entrar no regime temporal da atualidade. O que, de fato, é extremamente inquietante. A memória pode desaparecer". Finkielkraut disseca aos meus olhos o impasse de João Salles em que fiz temporalmente o não-quantificado do histórico: a soma maior de magia contida na numinosa exposição verborrágica, digressiva, as sagradas interrupções do tsunami "sináptico" de Santiago. "Agora, na biblioteca da mansão de Guermantes, um oceano verde-azulado espalhou sua plumagem como a cauda de um pavão (...) um instante que minha vida inteira desejara... puro, desencantado e liberto das imperfeições das percepções exteriores. Percebi que a felicidade sentida nesses raros intervalos da vida era a única felicidade autêntica e fecunda". A realidade em Santiago é associação intuitiva tão fechada a sete-chaves quanto um poema de T.S. Eliot; está em Proust ainda uma dessas trancas desabridas: "a aparência do mundo tem pouca importância, como quando simbolizada pelo ruído da colher no prato, a rigidez do guardanapo de mesa, que eram mais preciosos para minha renovação espiritual do que muitas conversas humanitárias, patrióticas e internacionais". Santiago colecionara suculentamente refrações humanas, epifanias superpostas e intercalares. Se a memória é mesmo a casa da Alma, João Salles delineia por Santiago o percurso entre substrato e moradia: aninha-se, individua-se, João caminha a senda garimpando o fulcro. João segue Santiago tornado Diógenes entre porão e sótão. Diógenes de libré e afastando o mundo que lhe faz sombra de Maya.

 

 

[Trecho inicial do livro inédito, Santiago além de  João, de Flávio Viegas Amoreira,

ensaio-crítico sobre o clássico documentário de João Moreira Salles]

 

 

julho, 2008

 

 

 

 

 

 

Flávio Viegas Amoreira (Santos-SP, 1965). Escritor, semiólogo, crítico literário e historiador no litoral paulista. Publicou cinco livros pela Editora 7Letras, do Rio de Janeiro: Maralto (2002, poesia); A biblioteca submergida (2003, poesia); Contogramas (2004, contos); Escorbuto, cantos da costa (2005, poesia) e Edoardo, o ele de nós (2007, romance). Colabora com projeto ''Dulcinéia Catadora'', lançando por este selo paulistano o poema longo Os contornos da serra são adeuses do oceano ao cais (2007). Participou de antologias brasileiras e internacionais e tem seus livros divulgados nas cadeiras de Literatura Brasileira da University of GeorgeTown, New Mexico, Miami e na Biblioteca Ibero-Americana de Berlim. Colabora com vários sites literários e faz parte do Conselho Editorial da Confraria do Vento. Foi destacado pelo crítico Nelson de Oliveira como um dos representantes mais originais da Geração 00 - autores de vanguarda surgidos na virada do século.
 
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