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Para quem não sabe, Machado de Assis praticou, avant la lettre, o gênero fantástico —  do qual, escritor audacioso, profundo, irônico, satírico e corrosivo, era um cultor — a oferecer uma visão nova do mundo machadiano e uma faceta até então desconhecida ou pouco atentada por estudiosos e críticos.

 

Ainda por volta de 1864, quando deu início à sua colaboração para o Jornal das Famílias, já se percebe em Machado de Assis uma nítida recepção, por assim dizer, ao "espírito' e aos elementos do conto fantástico, de cujo universo temático, estilístico e formal foi gradativamente aproximando-se — primeiro, por via da breve experiência byroniana, exercitada em poemas da juventude; depois, criando contos  que indubitavelmente se inscrevem no gênero e são claros tributários de uma literatura praticada intensamente na Europa, durante a primeira metade do século XIX, sob influência de Ernst-Theodore Hoffmann e Heinrich Heine (1797-1856), duas das leituras de Machado, encontradiços em sua biblioteca pessoal, assim como de Álvares de Azevedo e seu Noites na Taverna. Aliás, convém observar que antes, em 1859, Machado já demonstrara clara atração pelo fantástico ao publicar — não se tem total certeza até hoje se tradução, do francês, ou criação original machadiana (assim exponho à reflexão em meu livro Contos de Machado de Assis: Relicários e Raisonnés, 2008) o conto "Bagatela", em A Marmota, no qual a influência do gênero fantástico torna-se importante para o estudo da evolução literária machadiana. Por outro viés, Machado recebeu também a influência de Edgard Allan Poe, de  quem traduzira "O Corvo"  e a quem evocou no conto "Só", bem como de  Théophile Gautier, aos quais se referia com freqüência. De um modo geral, o  conto fantástico de Machado de Assis alinha-se à vertente francesa do século XIX,  representada por exemplo por Viliers de L'Isle Adam, Alphonse Daudet, Guy de Maupassant, Gérard de Nerval, Henri Rivière, e Jean Lorrain — distinta da linha inglesa, de Lord Halifax, M.R. James, Walpole e os norte-americanos Ambrose Bierce e Henry James.

 

O fantástico em Machado, no entanto, obedece a formas e expressões que fogem a determinados padrões, traduzindo-se em elementos — de tema, trama, estilo e linguagem — que transitam por um terreno fronteiriço entre o estranho e o maravilhoso, entre o insólito e o inusitado, entre o exótico e o onírico, por vezes, um fantástico diluído em meio ao sonho, por vezes de um macabro ostensivo. Na ficção fantástica machadiana, os "fenômenos" narrados não recebem explicação, dão-se e expressam-se pela próprio teor onírico da narrativa, o fantástico se originando e se manifestando no plano inconsciente, entre o sonho, a vigília e o real — fusão, aliás, recorrente em toda a sua obra ficcional e mormente na maioria de seus contos fantásticos.

 

A contística fantástica machadiana abriga 17 textos (dos quais apenas seis não foram publicados no Jornal das Famílias), a saber "O país das quimeras", "O anjo das donzelas", "Uma excursão milagrosa", "O anjo Rafael", "O capitão Mendonça", "A vida eterna", "Ruy de Leão", "Decadência de dois grandes homens", "Os óculos de Pedro Antão", "Um esqueleto", "A chinela turca", "Sem olhos", "A mulher pálida", "O imortal", "A segunda vida", "As academias de Sião", "Um sonho e outro sonho" — sendo três deles publicados em duas versões, distintas em maior ou menor grau, escritos e reescritos em épocas e, em alguns casos, em veículos diferentes: "O país das quimeras" (1862), que gerou "Uma excursão milagrosa" (1866) — o único entre todos que apresentou explicitamente  o subtítulo "um conto fantástico", a apontar de, certo modo, um padrão de fantástico machadiano — cuja narrativa passa a se dar em primeira pessoa (o protagonista Tito) ao invés de na terceira, como na versão original, além de passar a ter uma introdução e uma espécie de moralidade final; "Ruy de Leão" (1872), substituído por "O imortal" (1882), um dos poucos contos fantásticos que não se estabelece no universo onírico, e o único, quando da primeira versão, dos textos  em prosa de Machado a  expressar nítida influência da primeira geração romântica, em especial, do indianismo de  Gonçalves Dias, traços despojados na versão posterior, esta já sob os influxos da fase machadiana pós-inflexão de 1880; e "A chinela turca", cujas duas versões, mantido em ambas o título original, constituem talvez o exemplo mais concreto e bem-acabado do onírico na narrativa fantástica machadiana, o sonho prevalecente e sobreposto à realidade, estimulante de todo o tipo de fantasia e alucinação, que — a la Machado — conduz o leitor a embarcar no imaginário ficcional do protagonista (Duarte) e o induz, por fim, a transitar em  seu próprio imaginário, algo como se Machado sentenciasse que o fictício e o imaginário existem também na vida real e não se restringem  à  literatura, até porque têm o manuscrito evocado por um personagem como o elemento-chave do desenrolar da história.

 

Para cada um desses três contos, suas duas versões são apresentadas aqui, pela primeira vez, lado a lado — numa iniciativa inédita, nunca antes efetuada — a propiciar estudos comparativos, cotejamentos e elementos indispensáveis para  reflexões sobre a evolução literária de Machado, que da mesma forma reescreveu e republicou, no caso, alterando os respectivos títulos originais e apenas alguns trechos dos textos, outros cinco contos (vide in Contos de Machado de Assis: Relicários e Raisonnés, p. 150-157), ao passo que nos contos "Mariana" (1871 e 1891) e "Uma visita de Alcebíades" (1876 e 1882) manteve os títulos, mas alterou substancialmente os textos da primeira para a segunda versão.

 

 

novembro, 2008