© loredano
 
 
 
 
 

 

O conjunto que aqui se engendra é, por definição, bastante peculiar — a começar pelo fato de oferecer uma visão muito especial da ficção machadiana, a qual traz em si um dos elementos primordiais das denominadas três funções históricas da arte literária: a problematização da vida (as outras duas são a edificação moral e o divertimento), exercida/assumida  pela literatura justamente por seu (supremo) papel de interpretação da existência humana por meio da palavra, em especial por força da ausência, na moderna civilização, de valores estáveis de justiça,moral, ética, coesão espiritual, etc. A literatura, inclusive como "resistência" — na expressão cunhada por Alfredo Bosi — à dissolução desses valores.

 

A par de outras relevâncias, a significação maior da obra machadiana  consiste em ter introduzido na literatura brasileira essa visão problematizadora: a grandiosidade de Machado está, entre outros aspectos, justo no fato de inserir nas formas e modos de expressão forjados no Romantismo o aprofundamento filosófico, em sintonia, aliás, com toda a  literatura ocidental do século XIX, com isso, fazendo a literatura brasileira cumprir, por assim dizer, um  papel  sociológico na era pós-romântica.

 

Essa visão problematizadora permeia um número expressivo de contos, mormente, com uma única exceção ("Na Arca", que é de 1878 — época, aliás, do início da metamorfose, consubstanciada no romance Iaiá Garcia), aqueles produzidos na década de 1880, reunidos nas coletâneas Papéis avulsos (1882), Histórias sem data (1884) e Páginas recolhidas (18) — vale dizer, como corolário explícito da célebre inflexão dentro do processo de evolução literária de Machado. Esses contos têm como núcleo um gênero narrativo específico, o conto filosófico, definido como exemplo da "faculdade de decifrar os homens, de decompor caracteres, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo" segundo ele mesmo, Machado.

 

A visão problematizadora contida nesses contos — inédita até então na literatura brasileira e totalmente ausente  nos demais escritores, mesmo os do Realismo — tem como veículo e expressão o pessimismo,  característico da 'índole' (se assim pode-se conceituar) mais do que da obra, do próprio  pensamento  machadiano: pessimismo extrema e diretamente ligado à contemporaneidade de Machado — sempre atento, nunca alheio, às principais questões de seu tempo. Pessimismo, não apenas como simples veleidade filosófica, mas essencialmente 'schopenhauriano',  advindo de suas meticulosas leituras de Schopenhauer e de pensadores franceses do século XVIII — no entanto, com algo mais, tipicamente machadiano: o ceticismo crítico com relação, numa instância,  à sociedade brasileira do século XIX — patriarcal, escravagista, reacionária mesmo — em outra, à própria natureza  humana. Sob as lentes e prismas desse 'pessimismo cético', Machado questiona — com a peculiar e inseparável ironia, sob a qual, aliás, une Schopenhauer a Sterne — o racionalismo então predominante no mundo especialmente a partir de 1870, o pragmatismo científico, os ditames do progresso, a moral  burguesa (e nesse contexto, O alienista constitui o exemplo mais bem acabado, o emblema por excelência da dicotomia entre normalidade e loucura, entre razão e sandice; Simão Bacamarte é a personalização/encarnação de todas as qualidades de um cientista e de todas as vantagens/benesses do progresso; o conto como metáfora de uma sociedade periférica, que procura sua identidade nos contornos, não na essência, das sociedades européias desenvolvidas): Machado como que cria e estabelece um filtro crítico aos valores e ditames da modernidade européia imigrante no Brasil. As profundas transformações da realidade brasileira, inclusive com novas formas e modos de organização social, vistas e tratadas pela "tinta da melancia" combinada com a "pena da galhofa" — embora sob um tom conservador, moderado, conciliador, invariável e deliberadamente ambíguo: Machado critica e  denuncia, mas sem se  comprometer com o que poderia ser a contrapartida, antítese — e nisso aparece e atua seu ceticismo crítico.

 

julho, 2008