© loredano
 
 
 
 
 
 
 

 

Como mencionado, essas histórias foram geradas e publicadas num período crucial da vida literária de Machado, época do início da 'metamorfose', anunciador do 'grande salto' que viria ao final dessa década e início de 1880 — que tanto intriga e instiga os estudos e os especialistas machadianos. Na verdade, iniciado ainda no ano de 1871 — condizente, de resto, com as próprias metamorfoses políticas, institucionais e sociais, experimentadas pela sociedade brasileira (para os historiadores, um período emblematicamente representativo das nuances e injunções  da história do  Brasil do século XIX, porquanto, traz em seu bojo uma crise de solução quase impossível na  sucessão de fatos importantes) —  exatamente em 1878 acirrou-se, pode-se dizer, o processo de transição.

 

A evolução literária machadiana desenvolveu-se ao longo de sua vida literária (e pessoal) como um processo, um todo coerente e consistente — obediente a escalas e estágios, por certo, como o é todo processo — mediado por um período de marcante inflexão que antecede o que se convencionou denominar 'o grande salto', a grande mudança. Inflexão que, a par de contribuir positivamente para a análise e interpretação adequadas da trajetória machadiana, em contrapartida, serve para sedimentar um conceito, ou avaliação, de muitas formas discutível:  a divisão da obra — ficcional e não-ficcional — de Machado em duas fases, o 'aprendizado' versus a 'maturidade', a 'formação'  versus  a 'radicalização' [e eu, em particular, compartilho inteira e incondicionalmente com a idéia do crítico e ensaísta Silviano Santiago, no sentido de, uma vez por todas, procurar reformular o conceito estabelecido sobre tal dicotomia, simplesmente porque a obra machadiana submete-se a estruturas básicas que se superpõem, se interligam e se renovam "como um todo coerentemente organizado (...) à medida que seus textos se sucedem cronologicamente certas estruturas primárias e primeiras se desarticulam e se rearticulam sob forma de estruturas diferentes, mais complexas e mais sofisticadas"; na verdade, a estética ficcional e não-ficcional e o pensamento literário machadianos não podem nem devem ser tão facilmente  encaixados nesses dois blocos distintos, até porque se desenvolvem e se coadunam concomitantemente, seguindo, ambos, vis a vis, a mesma linha no decorrer de toda a sua carreira, apenas sedimentando-se e amadurecendo consistentemente pós-1880 e nas obras seqüentes]. O fato de ser  discutível considerar  a obra machadiana catalogada em duas 'fases' não implica necessariamente em renegar a existência,  como em todo processo, de  escalas e estágios, com nítidos pontos de inflexão, ou de mais intensa transição.

 

Pode até ser que  os experimentos de Machado com a técnica narrativa tenham se  colocado num cenário de 'crise dos 40 anos' — como (para mim, equivocadamente) sustentam certos estudiosos — ou pela mudança no estrato social — segundo o ensaísta Valentim Facioli (o que também eu contesto, pelo menos em parte);  mas parece-me que se deve muito mais à sua lucidez com relação ao momento histórico-político-social, a  não mais comportar tipo, forma e estética de ficção ainda marcada de valores da primeira metade do século XIX, pós-Independência, plena de Romantismo, e a consciência da necessidade de mudança. Machado percebeu nitidamente a necessidade de fazer algo mais diferenciado — no plano estritamente literário, tanto do Romantismo ainda vigente (para ele, já "acabado") quanto do  Realismo-Naturalismo, que então impunha narrativas e descrições ao mesmo tempo minuciosas e contundentes da vida real, via de regra, surpreendendo (e muitas vezes assustando) o público-leitor; no plano histórico, em função da própria mutação política e social que o país  experimentava.

 

Muito contribuíram, apesar das alterações no próprio contexto histórico-político-social (e a ocorrência de uma incipiente, tímida, tolerância, sem chegar à liberalização, nos costumes), de outro, o próprio domínio por parte de Machado sobre os recursos ficcionais do subterfúgio, da dissimulação, da sutileza, da sátira e da ironia (exercitados, na verdade, desde seu primeiro livro publicado, Queda que as mulheres têm para os tolos, 1861): temas até então sequer insinuados, quiçá mencionados, poderiam — pelo final da década de 1870/início de 1880 — ser, pelo menos, sugeridos e esboçados: mesmo porque audácia e ousadia para tocar em assuntos sensíveis e tratar de questões polêmicas Machado desde sempre revelou — assim como criar e dar à luz narrativas exóticas, insólitas, estranhas, começando por seus títulos...

 

setembro, 2008