© loredano
 
 
 
 
 
 

 

 

 

  

 

 

(Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1870)

 

 

I

 

Estando um pouco arrufado com a dama dos meus pensamentos, achei-me eu uma noite sem destino nem vontade de preencher o tempo alegremente, como convém em tais situações. Não queria ir para casa porque seria entrar em luta com a solidão e a reflexão, duas senhoras que se encarregam de pôr termo a todos os arrufos amorosos.

 

Havia espetáculo no Teatro de S. Pedro. Não quis saber que peça se representava; entrei, comprei uma cadeira e fui tomar conta dela, justamente quando se levantava o pano para começar o primeiro ato. O ato prometia; começava por um homicídio e acabava por um juramento. Havia uma menina, que não conhecia pai nem mãe, e era arrebatada por um embuçado que eu suspeitei ser a mãe ou o pai da menina. Falava-se vagamente de um marquês incógnito, e aparecia a orelha de um segundo e próximo assassinato na pessoa de uma condessa velha. O ato acabou com muitas palmas.

 

Apenas caiu o pano houve a balbúrdia do costume; os espectadores marcavam as cadeiras e saíam para tomar ar. Eu, que felizmente estava em lugar onde não podia ser incomodado, estendi as pernas e entrei a olhar para o pano da boca, no qual, sem esforço da minha parte, apareceu a minha arrufada senhora com os punhos fechados e ameaçando-me com olhos furiosos.

 

— Que lhe parece a peça, sr. Amaral?

 

Voltei-me para o lado de onde ouvira proferir o meu nome. Estava à minha esquerda um sujeito, já velho, vestido com uma sobrecasaca militar, e sorrindo amavelmente para mim.

 

— Admira-se de lhe saber o nome? perguntou o sujeito.

 

— Com efeito, respondi eu; não me lembro de o ter visto...

 

— A mim nunca me viu; cheguei ontem do Rio Grande do Sul. Também eu nunca o tinha visto, e no entanto conheci-o logo.

 

— Adivinho, respondi; dizem-me que me pareço muito com meu pai. Conheceu-o, não?

 

— Pudera! fomos companheiros d’armas. O coronel Amaral e o capitão Mendonça passavam no exército por ser a imagem da perfeita amizade.

 

— Agora me recordo de que meu pai me falava muito no capitão Mendonça.

 

— Sou eu.

 

— Falava-me com muito interesse; dizia que era o seu melhor e mais fiel amigo.

 

— Era injusto o coronel, disse o capitão abrindo a caixa de rapé, eu fui mais do que isso, fui o único amigo fiel que ele teve. Mas seu pai era cauteloso, talvez não quisesse ofender ninguém. Era um tanto fraco seu pai; a única rixa que tivemos foi por eu uma noite chamar-lhe tolo. O coronel reagiu, mas convenceu-se finalmente... Quer uma pitada?

 

— Obrigado.

 

Admirou-me que o mais fiel amigo de meu pai tratasse tão desdenhosamente a sua memória, e entrei logo a suspeitar da amizade que os ligara no exército. Confirmou-me esta suspeita a lembrança de que meu pai, quando falava no capitão Mendonça, dizia ser um excelente homem... com uma aduela de menos.

 

Contemplei o capitão enquanto ele sorvia a pitada e sacudia com o lenço a camisa ligeiramente maculada por um clássico e legítimo pingo. Era um homem de boa presença, gesto militar, olhar um tanto vago, barba de fonte a fonte, passando por baixo do queixo, como convém a um militar que se respeita. A roupa era toda nova, e o velho capitão mostrava estar acima das necessidades da vida.

 

A expressão da cara não era má; mas o olhar vago e as sobrancelhas espessas e salientes transtornavam o rosto.

 

Conversamos do passado; o capitão contou-me a campanha contra Rosas, e a parte que nela tomou com meu pai. A sua conversa era animada e pitoresca; lembrava-se de muitos episódios, entremeava tudo com anedotas engraçadas.

 

Ao cabo de vinte minutos o público começou a inquietar-se com a extensão do intervalo e a orquestra dos tacões executou a sinfonia do desespero.

 

Justamente nesse momento veio um sujeito chamar o capitão para ir a um camarote. O capitão quis adiar a visita para outro intervalo, mas, instando o sujeito, cedeu e apertou-me a mão dizendo:

 

— Até já.

 

Fiquei outra vez só; os tacões cederam lugar às rabecas, e ao cabo de alguns minutos começou o segundo ato.

 

Como aquilo para mim não era distração nem ocupação, acomodei-me o melhor que pude na cadeira e cerrei os olhos ouvindo um monólogo do protagonista, que cortava o coração e a gramática.

 

Não tardou que fosse despertado pela voz do capitão. Abri os olhos e vi-o de pé.

 

— Quer saber de uma coisa? perguntou ele. Eu vou cear; acompanha-me?

 

— Não posso, queira desculpar-me, respondi.

 

— Não admito desculpa; faça de conta que eu sou o coronel e digo: Pequeno, vamos cear!

 

— Mas é que eu espero...

 

— Não espera ninguém!

 

O diálogo provocou alguns murmúrios à roda de nós. Vendo a disposição anfitriônica do capitão, achei prudente acompanhá-lo para não dar lugar a uma manifestação pública.

 

Saímos.

 

— Cear a esta hora, disse o capitão, não é próprio de um rapaz como o senhor; mas eu cá sou velho e militar.

 

Não repliquei.

 

A falar verdade eu não tinha preferência pelo teatro nem por coisa nenhuma; queria passar o tempo. Conquanto não me arrastasse nenhuma simpatia para o capitão, a maneira por que me tratava e a circunstância de ter sido companheiro d'armas de meu pai, faziam com que a companhia dele fosse naquele momento mais aceitável que a de outro qualquer.

 

Além destas razões todas, a vida que eu levava era tão monótona que a diversão do capitão Mendonça devia encher uma boa página com matéria nova. Digo a diversão do capitão Mendonça, porque o meu companheiro tinha não sei que no gesto e nos olhos que me parecia excêntrico e original. Encontrar um original ao meio de tantas cópias de que anda farta a vida humana, não é uma fortuna?

 

Acompanhei, portanto, o meu capitão, que continuou a falar durante o caminho todo, arrancando-me apenas de longe em longe um monossílabo.

 

No fim de algum tempo paramos defronte de uma casa velha e escura.

 

— Vamos entrar, disse Mendonça.

 

— Que rua é esta? perguntei eu.

 

— Pois não sabe? Oh! como anda com a cabeça a juros! Esta é a Rua da Guarda Velha.

 

— Ah!

 

O velho bateu três pancadas; daí a alguns segundos rangia a porta nos gonzos  e nós entrávamos num corredor escuro e úmido.

 

— Então não trouxeste luz? perguntou Mendonça a alguém que eu não via.

 

— Vim com pressa.

 

— Bem; fecha a porta. Dê cá a mão, sr. Amaral; esta entrada é um pouco esquisita, mas lá em cima estaremos melhor.

 

Dei-lhe a mão.

 

— Está trêmula, observou o capitão Mendonça.

 

Eu tremia, com efeito; pela primeira vez surgiu-me no espírito a suspeita de que o pretendido amigo de meu pai não fosse mais que um ladrão, e aquilo uma ratoeira armada aos néscios.

 

Mas era tarde para retroceder; qualquer demonstração de medo seria pior. Por isso, respondi alegremente:

 

— Se lhe parecer que não há de tremer quem entre por um corredor como este, o qual, haja de perdoar, parece o corredor do inferno.

 

— Quase acertou, disse o capitão, guiando-me pela escada acima.

 

— Quase?

 

— Sim; não é o inferno, mas é o purgatório.

 

Estremeci ao ouvir estas últimas palavras; todo o meu sangue precipitou-se para o coração, que começou a bater apressado. A singularidade da figura do capitão, a singularidade da casa, tudo se acumulava para encher-me de terror. Felizmente chegamos acima e entramos para uma sala iluminada a gás, e mobiliada como todas as casas deste mundo.

 

Para gracejar e conservar toda a independência do meu espírito, disse sorrindo:

 

— Está feito, o purgatório tem boa cara; em vez de caldeiras tem sofás.

 

— Meu rico senhor, respondeu o capitão, olhando fixamente para mim, coisa que pela primeira vez acontecia, porque o seu olhar era sempre vesgo; meu rico senhor, se pensa que desse modo arranca o meu segredo está muito enganado. Convidei-o para cear; contente-se com isto.

 

Não respondi; as palavras do capitão desvaneceram as minhas suspeitas acerca da intenção com que ele ali me trouxera, mas criaram outras impressões; suspeitei que o capitão estivesse doido; e o menor incidente confirmava-me a suspeita.

 

— Moleque! disse o capitão; e, quando o moleque apareceu, continuou: prepara a ceia; tira vinho da caixa nº 25; vai; quero tudo pronto em um quarto de hora.

 

O moleque foi executar as ordens de Mendonça. Este, voltando-se para mim, disse:

 

— Sente-se e leia alguns destes livros. Vou mudar de roupa.

 

— Não volta ao teatro? perguntei eu.

 

— Não.

 

 

II

 

Poucos minutos depois caminhávamos para a sala de jantar, que ficava nos fundos da casa. A ceia era farta e apetitosa; no centro campeava um soberbo assado frio; pastelinhos, doces, velhas botelhas de vinho, completavam a ceia do capitão.

 

— É um banquete, disse eu.

 

— Qual! é uma ceia ordinária... não vale nada.

 

Havia três cadeiras.

 

— Sente-se aqui, disse-me ele indicando a do meio, e sentando-se ele próprio na que ficava à minha esquerda. Compreendi que havia mais um conviva, mas não perguntei. Também não era preciso; daí a poucos segundos saía de uma porta em frente uma moça alta e pálida, que me cumprimentou e se dirigiu para a cadeira que ficava à minha direita.

 

Levantei-me, e fui apresentado pelo capitão à menina, que era filha dele, e acudia ao nome de Augusta.

 

Confesso que a presença da moça me tranqüilizou um pouco. Não só deixara de estar a sós com um homem tão singular como o capitão Mendonça, mas também a presença da moça naquela casa indicava que o capitão, se era doido como eu suspeitava, era ao menos um doido manso.

 

Tratei de ser amável com a minha vizinha, enquanto o capitão trinchava o peixe com uma habilidade e destreza que bem indicavam a sua proficiência nos misteres da boca.

 

— Devemos ser amigos, disse eu a Augusta, pois que nossos pais o foram também.

 

Augusta levantou para mim dois belíssimos olhos verdes. Depois sorriu e abaixou a cabeça com ar de casquilhice ou de modéstia, porque ambas as coisas podiam ser. Contemplei-a nessa posição; era uma formosa cabeça, perfeitamente modelada, um perfil correto, uma pele fina, cílios longos, e cabelos cor de ouro, áurea coma, como os poetas dizem do sol.

 

Durante esse tempo Mendonça tinha concluído a tarefa; e começava a servir-nos. Augusta brincava com a faca, talvez para mostrar-me a finura da mão e o torneado do braço.

 

— Estás muda, Augusta? perguntou o capitão servindo-a de peixe.

 

— Qual, papai! estou triste.

 

— Triste? Então que tens?

 

— Não sei; estou triste sem causa.

 

Tristeza sem causa traduz-se muitas vezes por aborrecimento. Eu traduzi assim o dito da moça, e senti-me ferido no meu amor-próprio, aliás sem razão fundada. Para alegrar a moça tratei de alegrar a situação. Esqueci o estado do espírito do pai, que me parecia profundamente abalado, e entrei a conversar como se estivesse entre amigos velhos.

 

Augusta pareceu gostar da conversa; o capitão também entrou a rir como um homem de juízo; eu estava num dos meus melhores dias; acudiam-me os ditos engenhosos e as observações de algum chiste. Filho do século, sacrifiquei ao trocadilho, com tal felicidade que inspirei o desejo de ser imitado pela moça e pelo pai.

 

Quando a ceia acabou reinava entre nós a maior intimidade.

 

— Quer voltar ao teatro? perguntou-me o capitão.

 

— Qual! respondi.

 

— Quer dizer que prefere a nossa companhia, ou antes... a companhia de Augusta.

 

Esta franqueza do velho pareceu-me um pouco indiscreta. Estou certo de que fiquei rubro. Não aconteceu o mesmo a Augusta, que sorriu dizendo:

 

— Se assim é, não lhe devo nada, porque eu também prefiro agora a sua companhia ao melhor espetáculo deste mundo.

 

A franqueza de Augusta admirou-me ainda mais que a de Mendonça. Mas não era fácil mergulhar-me em reflexões profundas quando os belos olhos verdes da moça estavam pregados nos meus, parecendo dizer-me:

 

— Seja amável como até agora.

 

— Vamos para a outra sala, disse o capitão levantando-se.

 

Fizemos o mesmo. Dei o braço a Augusta, enquanto o capitão nos guiava para outra sala, que não era a de visitas. Sentamo-nos, menos o velho, que foi acender um cigarro numa das velas do candelabro, enquanto eu lançava um olhar rápido pela sala, que me pareceu de todo ponto estranha. A mobília era antiga, não só no molde, senão também na idade. No centro havia uma mesa redonda, grande, coberta com um tapete verde. Numa das paredes havia pendurados alguns animais empalhados. Na parede fronteira a essa havia apenas uma coruja, também empalhada, e com olhos de vidro verde, que, apesar de fixos, pareciam acompanhar todos os movimentos que a gente fazia.

 

Aqui voltaram os meus sustos. Olhei, entretanto, para Augusta, e esta olhou para mim. Aquela moça era o único laço que havia entre mim e o mundo, porque tudo naquela casa me parecia realmente fantástico; e eu já não duvidava do caráter purgatorial que me fora indicado pelo capitão.

 

Estivemos silenciosos alguns minutos; o capitão fumava o cigarro passeando com as mãos atrás das costas, posição que pode indicar a meditação de um filósofo ou a taciturnidade de um néscio.

 

De repente parou defronte de nós, sorriu, e perguntou-me:

 

— Não acha formosa esta pequena?

 

— Formosíssima, respondi.

 

— Que lindos olhos, não são?

 

— Lindíssimos, com efeito, e raros.

 

— Faz-me honra esta produção, não?

 

Respondi com um sorriso aprovador. Quanto a Augusta, limitou-se a dizer com adorável simplicidade:

 

— Papai é mais vaidoso do que eu; gosta de ouvir dizer que sou bonita. Quem não sabe disso?

 

— Há de notar, disse-me o capitão sentando-se, que esta pequena é franca de mais para o seu sexo e idade...

 

— Não lhe acho defeito...

 

— Nada de evasivas; a verdade é essa. Augusta não se parece com as outras moças que pensam muito bem de si, mas sorriem quando lhes fazem algum cumprimento, e franzem o sobrolho quando não lhos fazem.

 

— Direi que é uma adorável exceção, respondi eu sorrindo para a moça, que me agradeceu sorrindo também.

 

— Isso é, disse o pai; mas exceção completa.

 

— Uma educação racional, continuei eu, pode muito bem...

 

— Não só a educação, tornou Mendonça, mas até a origem. A origem é tudo, ou quase tudo.

 

Não entendi o que queria dizer o homem. Augusta parece que entendeu, porque entrou a olhar para o teto sorrindo maliciosamente. Olhei para o capitão; o capitão olhava para a coruja.

 

Reanimou-se a conversa por espaço de alguns minutos, ao cabo dos quais o capitão, que parecia ter uma idéia fixa, perguntou-me:

 

— Então acha esses olhos bonitos?

 

— Já lho disse; são tão formosos quanto raros.

 

— Quer que lhos dê? perguntou o velho.

 

Inclinei-me dizendo:

 

— Seria muito feliz em possuir tão raras prendas; mas...

 

— Nada de cerimônias; se quer, dou-lhos; senão, limito-me a mostrar-lhos.

 

Dizendo isto, levantou-se o capitão e aproximou-se de Augusta, que inclinou a cabeça sobre as mãos dele. O velho fez um pequeno movimento, a moça ergueu a cabeça, o velho apresentou-me nas mãos os dois belos olhos da moça.

 

Olhei para Augusta. Era horrível. Tinha no lugar dos olhos dois grandes buracos como uma caveira. Desisto de descrever o que senti; não pude dar um grito; fiquei gelado. A cabeça da moça era o que mais hediondo pode criar imaginação humana; imaginem uma caveira viva, falando, sorrindo, fitando em mim os dois buracos vazios, onde pouco antes nadavam os mais belos olhos do mundo. Os buracos pareciam ver-me; a moça contemplava o meu espanto com um sorriso angélico.

 

— Veja-os de perto, dizia o velho diante de mim; palpe-os; diga-me se já viu obra tão perfeita.

 

Que faria eu senão obedecer-lhe? Olhei para os olhos que o velho tinha na mão. Aqui foi pior; os dois olhos estavam fitos em mim, pareciam compreender-me tanto quanto os buracos vazios do rosto da moça; separados do rosto, não os abandonara a vida; a retina tinha a mesma luz e os mesmos reflexos. Daquele modo as duas mãos do velho olhavam para mim como se foram um rosto.

 

Não sei que tempo se passou; o capitão tornou a aproximar-se de Augusta; esta abaixou a cabeça, e o velho introduziu os olhos no seu lugar.

 

Era horrível tudo aquilo.

 

— Está pálido! disse Augusta, obrigando-me a olhar para ela, já restituída ao estado anterior.

 

— É natural... balbuciei eu; vejo coisas...

 

— Incríveis? perguntou o capitão esfregando as mãos.

 

— Efetivamente, incríveis, respondi; não pensava...

 

— Isto é nada! exclamou o capitão; e eu folgo muito que ache incríveis essas coisas poucas que viu, porque é sinal de que eu vou fazer pasmar o mundo.

 

Tirei o lenço para limpar o suor que me caía em bagas. Durante esse tempo Augusta levantou-se e saiu da sala.

 

— Vê a graça com que ela anda? perguntou o capitão. Aquilo tudo é obra minha... é obra do meu gabinete.

 

— Ah!

 

— É verdade; é por ora a minha obra-prima; e creio que não há que dizer-lhe; pelo menos o senhor parece estar encantado...

 

Curvei a cabeça em sinal de assentimento. Que faria eu, pobre mortal sem força, contra um homem e uma rapariga que me pareciam dispor de forças desconhecidas aos homens?

 

Todo o meu empenho era sair daquela casa; mas por maneira que os não molestasse. Desejava que as horas tivessem asas; mas é nas crises terríveis que elas correm fatalmente lentas. Dei ao diabo os meus arrufos, que foram a causa do encontro com semelhante sujeito.

 

Parece que o capitão adivinhara aquelas minhas reflexões, porque continuou, depois de algum silêncio:

 

— Deve estar encantado, ainda que um tanto assustado e arrependido da sua condescendência. Mas isso é puerilidade; nada perdeu em vir aqui, antes ganhou; fica sabendo coisas que só mais tarde saberá o mundo. Não lhe parece melhor?

 

— Parece, respondi sem saber o que dizia.

 

O capitão continuou:

 

— Augusta é a minha obra-prima. É um produto químico; gastei três anos para dar ao mundo aquele milagre; mas a perseverança vence tudo, e eu sou dotado de um caráter tenaz. Os primeiros ensaios foram maus; três vezes saiu a pequena dos meus alambiques, sempre imperfeita. A quarta foi esforço de ciência. Quando aquela perfeição apareceu caí-lhe aos pés. O criador admirava a criatura!

 

Parece que eu tinha pintado o pasmo nos olhos, porque o velho disse:

 

— Vejo que se espanta de tudo isto, e acho natural. Que poderia o senhor saber de semelhante coisa?

 

Levantou-se, deu alguns passos, e sentou-se outra vez. Nesse momento entrou o moleque trazendo café.

 

A presença do moleque fez-me criar alma nova; imaginei que fosse ali dentro a única criatura verdadeiramente humana com quem me pudesse entender. Entrei a fazer-lhe sinais, mas não consegui ser entendido. O moleque saiu, e fiquei a sós com o meu interlocutor.

 

— Beba o seu café, meu amigo, disse-me ele, vendo que eu hesitava, não por medo, mas porque realmente não tinha vontade de tomar coisa nenhuma.

 

Obedeci como pude.

 

 

III

 

Augusta tornou à sala.

 

O velho voltou-se para contemplá-la; nenhum pai olhou ainda para sua filha com mais amor do que aquele. Via-se bem que o amor era realçado pelo orgulho; havia no olhar do capitão uma certa altivez que em geral não acompanha a ternura paterna.

 

Não era um pai, era um autor.

 

Quanto à moça, parecia também orgulhosa de si. Sentia bem quanto o pai a admirava. Conhecia que todo o orgulho do velho estava nela, e por compensação todo o orgulho dela estava no autor dos seus dias. Se a Odisséia tivesse a mesma forma, teria o mesmo sentir, quando Homero a contemplasse.

 

Coisa singular! Impressionava-me aquela mulher, apesar da sua origem misteriosa e diabólica; eu sentia ao pé dela uma sensação nova, que não sei se era amor, se admiração, se fatal simpatia.

 

Quando fitava os olhos dela dificilmente podia afastar os meus, e contudo já tinha visto os seus lindíssimos olhos nas mãos do pai, já tinha contemplado com terror os buracos vazios como os olhos da morte.

 

Ainda que lentamente, adiantava-se a noite; ia amortecendo o ruído de fora; entrávamos no silêncio absoluto que tão tristemente quadrava com a sala em que me eu achava e os interlocutores com quem me entretinha.

 

Era natural retirar-me; levantei-me e pedi licença ao capitão para sair.

 

— Ainda é cedo, respondeu.

 

— Mas eu voltarei amanhã.

 

— Voltará amanhã e quando quiser; mas por hoje é cedo. Nem sempre se encontra um homem como eu; um irmão de Deus, um deus na terra, porque eu também posso criar como ele; e até melhor, porque eu fiz Augusta e ele nem sempre faz criaturas como esta. Os hotentotes, por exemplo...

 

— Mas, disse eu, tenho pessoas que me esperam...

 

— É possível, disse o capitão sorrindo, mas por agora não há de ir...

 

— Por que não? interrompeu Augusta. Acho que pode ir, com a condição de que volta amanhã.

 

— Voltarei.

 

— Jura-me?

 

— Juro.

 

Augusta estendeu-me a mão.

 

— Está dito! disse ela; mas se faltar...

 

— Morre, acrescentou o pai.

 

Senti um calafrio ao ouvir a última palavra de Mendonça. Entretanto, saí, despedindo-me o mais alegre e cordialmente que pude.

 

— Venha à noite, disse o capitão.

 

— Até amanhã, respondi.

 

Quando cheguei à rua respirei. Estava livre. Acabara-se-me aquela tortura que nunca havia imaginado. Apressei o passo e entrei em casa, meia hora depois.

 

Foi-me impossível conciliar o sono. A cada instante via o meu capitão com os olhos de Augusta nas mãos, e a imagem da moça flutuava entre o nevoeiro da minha imaginação como uma criatura de Ossian.

 

Quem era aquele homem e aquela menina? A menina era realmente um produto químico do velho? Ambos mo haviam afirmado, e até certo ponto tive a prova disso. Podia supô-los doidos, mas o episódio dos olhos desvanecia essa idéia. Estaria eu ainda no mundo dos vivos, ou começara já a entrar na região dos sonhos e do desconhecido?

 

Só a fortaleza do meu espírito resistiu a tamanhas provas; outro, que fosse mais fraco, teria enlouquecido. E seria melhor. O que tornava a minha situação mais dolorosa e impossível de suportar era justamente a perfeita solidez da minha razão. Do conflito da minha razão com os meus sentidos resultava a tortura em que me eu achava; os meus olhos viam, a minha razão negava. Como conciliar aquela evidência com aquela incredulidade?

 

Não dormi. No dia seguinte saudei o sol como um amigo ansiosamente esperado. Vi que estava no meu quarto; o criado trouxe-me o almoço, que era todo composto de coisas deste mundo; cheguei à janela e dei com os olhos no edifício da câmara dos deputados; não tinha que ver mais; eu estava ainda na terra, e na terra estava ainda aquele maldito capitão e mais a filha.

 

Então refleti.

 

Quem sabe se eu não podia conciliar tudo? Lembrei-me de todas as pretensões da química e da alquimia. Ocorreu-me um conto fantástico de Hoffmann em que um alquimista pretende ter alcançado o segredo de produzir criaturas humanas. A criação romântica de ontem não podia ser a realidade de hoje? E se o capitão tinha razão não era para mim grande glória denunciá-lo ao mundo?

 

Há em todos os homens alguma coisa da mosca do carroção; confesso que, prevendo o triunfo do capitão, lembrei-me logo de ir agarrado às abas da sua imortalidade. Era difícil crer na obra do homem; mas quem acreditou em Galileu? quantos não deixaram de crer em Colombo? A incredulidade de hoje é a sagração de amanhã. A verdade desconhecida não deixa de ser verdade. É verdade por si mesma, não o é pelo consenso público. Ocorreu-me a imagem dessas estrelas que os astrônomos descobrem agora sem que elas tenham deixado de existir muitos séculos antes.

 

Razões de coronel ou razões de cabo de esquadra, o certo é que eu as dei a mim próprio e foi em virtude delas, não menos que pela fascinação do olhar da moça, que eu lá me apresentei em casa do capitão à rua da Guarda Velha apenas anoiteceu.

 

O capitão estava à minha espera.

 

— Não saí de propósito, disse-me ele; contava que viesse, e queria dar-lhe o espetáculo de uma composição química. Trabalhei o dia todo para preparar os ingredientes.

 

Augusta recebeu-me com uma graça verdadeiramente adorável. Beijei-lhe a mão como se fazia antigamente às senhoras, costume que se trocou pelo aperto de mão, aliás digno de um século grave.

 

— Tive saudades suas, disse-me ela.

 

— Sim?

 

— Aposto que as não teve de mim?

 

— Tive.

 

— Não acredito.

 

— Por quê?

 

— Porque eu não sou filha bastarda. Todas as outras mulheres são filhas bastardas, eu só posso gabar-me de ser filha legítima, porque sou filha da ciência e da vontade do homem.

 

Não me admirava menos a linguagem que a beleza de Augusta. Evidentemente era o pai quem lhe incutia semelhantes idéias. A teoria que ela acabava de expor era tão fantástica como o seu nascimento. O certo é que a atmosfera daquela casa já me punha no mesmo estado que os dois habitantes dela. Foi assim que alguns segundos depois repliquei:

 

— Conquanto eu admire a ciência do capitão, lembro-lhe que ainda assim ele não fez mais do que aplicar elementos da natureza à composição de um ente que até agora parecia excluído da ação dos reagentes químicos e dos instrumentos de laboratório.

 

— Tem razão até certo ponto, disse o capitão; mas acaso sou eu menos admirável?

 

— Pelo contrário; e nenhum mortal até hoje pode gabar-se de ter ombreado com o senhor.

 

Augusta sorriu agradecendo-me. Notei mentalmente o sorriso, e parece que a idéia transluziu no meu rosto, porque o capitão, sorrindo também, disse:

 

— A obra saiu perfeita, como vê, depois de muitos ensaios. O penúltimo ensaio era completo, mas faltava uma coisa à obra; e eu queria que ela saísse tão completa como a que o outro fez.

 

— Que lhe faltava então? perguntei eu.

 

— Não vê, continuou o capitão, como Augusta sorri de contente quando lhe fazem alguma alusão à beleza?

 

— É verdade.

 

— Pois bem, a penúltima Augusta que me saiu do laboratório não tinha isso; esquecera-me incutir-lhe a vaidade. A obra podia ficar assim, e estou que seria, aos olhos de muitos, mais perfeita do que esta. Mas eu não penso assim; o que eu queria era fazer uma obra igual à do outro. Por isso, reduzi outra vez tudo ao estado primitivo, e tratei de introduzir na massa geral uma dose maior de mercúrio.

 

Não creio que o meu rosto me traísse naquele momento; mas o meu espírito fez uma careta. Estava disposto a crer na origem química de Augusta, mas hesitava ouvindo os pormenores da composição.

 

O capitão continuou, olhando ora para mim, ora para a filha, que parecia extasiada ouvindo a narração do pai:

 

— Sabe que a química foi chamada pelos antigos, entre outros nomes, ciência de Hermes. Acho inútil lembrar-lhe que Hermes é o nome grego de Mercúrio, e mercúrio é o nome de um corpo químico. Para introduzir na composição de uma criatura humana a consciência, deita-se no alambique uma onça de mercúrio. Para fazer a vaidade dobra-se a dose do mercúrio, porque a vaidade, segundo a minha opinião, não é mais que a irradiação da consciência; à contração da consciência chamo eu modéstia.

 

— Parece-lhe então, disse eu, que homem vaidoso é aquele que recebeu uma grande dose de mercúrio no seu organismo?

 

— Sem dúvida nenhuma. Nem pode ser outra coisa; o homem é um composto de moléculas e corpos químicos; quem os souber reunir tem alcançado tudo.

 

— Tudo?

 

— Tem razão; tudo, não; porque o grande segredo consiste em uma descoberta que eu fiz e constitui por assim dizer o princípio da vida. Isso é que há de morrer comigo.

 

— Por que não o declara antes para adiantamento da humanidade?

 

O capitão levantou os ombros desdenhosamente; foi a única resposta que obtive.

 

Augusta tinha-se levantado e foi ao piano tocar alguma coisa que me pareceu ser uma sonata alemã. Eu pedi licença ao capitão para fumar um charuto, enquanto o moleque veio receber ordens relativas ao chá.

 

 

IV

 

Acabado o chá, disse-me o capitão:

 

— Doutor, preparei hoje uma experiência em honra sua. Sabe que o diamante não é mais que o carvão de pedra cristalizado. Há tempos tentou um sábio químico reduzir o carvão de pedra a diamante, e li num artigo de revista que conseguiria apenas compor um pó de diamante, e nada mais. Eu alcancei o resto; vou mostrar-lhe um pedaço de carvão de pedra e transformá-lo em diamante.

 

Augusta bateu palmas de contente. Admirado dessa alegria súbita, perguntei-lhe sorrindo a causa.

 

— Gosto muito de ver uma operação química, respondeu ela.

 

— Deve ser interessante, disse eu.

 

— E é. Não sei até se papai era capaz de me fazer uma coisa.

 

— O que é?

 

— Eu lhe direi depois.

 

Dai a cinco minutos estávamos todos no laboratório do capitão Mendonça, que era uma sala pequena e escura, cheia dos instrumentos competentes. Sentamo-nos, Augusta e eu, enquanto o pai preparava a transformação anunciada.

 

Confesso que, apesar da minha curiosidade de homem de ciência, dividia a minha atenção entre a química do pai e as graças da filha. Augusta tinha efetivamente um aspecto fantástico; quando entrou no laboratório respirou largamente e com prazer, como quando se respira o ar embalsamado dos campos. Via-se que era o seu ar natal. Travei-lhe da mão, e ela com esse estouvamento próprio da castidade ignorante, puxou a minha mão para si, fechou-a entre as suas, e pô-las no regaço. Nesse momento passou o capitão ao pé de nós; viu-nos e sorriu à socapa.

 

— Vê, disse-me ela inclinando-se ao meu ouvido, meu pai aprova.

 

— Ah! disse eu, meio alegre, meio espantado de ver aquela franqueza da parte de uma menina.

 

No entanto, o capitão trabalhava ativamente na transformação do carvão de pedra em diamante. Para não ofender a vaidade do inventor fazia-lhe eu de quando em quando alguma observação, a que ele respondia sempre. A minha atenção, porém, estava toda voltada para Augusta. Não era possível ocultá-lo; eu já a amava; e por cúmulo de ventura era amado também. O casamento seria o desenlace natural daquela simpatia. Mas deveria eu casar-me, sem deixar de ser bom cristão? Esta idéia transtornou um pouco o meu espírito. Escrúpulos de consciência!

 

A moça era um produto químico; seu único batismo foi um banho de súlfur. A ciência daquele homem explicava tudo; mas a minha consciência recuava. E por quê? Augusta era tão bela como as outras mulheres — talvez mais bela —, pela mesma razão que a folha da árvore pintada é mais bela que a folha natural. Era um produto de arte; o saber do autor despojou o tipo humano de suas incorreções para criar um tipo ideal, um exemplar único. Ar triste! era justamente essa idealidade que nos separaria aos olhos do mundo!

 

Não sei dizer que tempo gastou o capitão na transformação do carvão; eu deixava correr o tempo olhando para a moça e contemplando os seus belos olhos em que havia todas as graças e vertigens do mar.

 

De repente o cheiro acre do laboratório começou a aumentar de intensidade; eu que não estava acostumado senti-me um pouco incomodado, mas Augusta pediu-me que ficasse ao pé dela, sem o que teria saído.

 

— Não tarda! não tarda! exclamou o capitão com entusiasmo.

 

A exclamação era um convite que nos fazia; eu deixei-me estar ao pé da filha. Seguiu-se um silêncio prolongado. Fui interrompido no meu êxtase pelo capitão, que dizia:

 

— Pronto! aqui está!

 

E efetivamente trouxe um diamante na palma da mão, perfeitíssimo e da melhor água. O volume era metade do carvão que servira de base à operação química. Eu, à vista da criação de Augusta, já me não admirava de nada. Aplaudi o capitão; quanto à filha, saltou-lhe ao pescoço e deu-lhe dois apertadíssimos abraços.

 

— Já vejo, meu caro sr. capitão, que deste modo deve ficar rico. Pode transformar em diamante todo o carvão que lhe parecer.

 

— Para quê? perguntou-me ele. Aos olhos de um naturalista o diamante e o carvão de pedra valem a mesma coisa.

 

— Sim, mas aos olhos do mundo...

 

— Aos olhos do mundo o diamante é a riqueza, bem sei; mas é a riqueza relativa. Suponha, meu rico sr. Amaral, que as minas de carvão do mundo inteiro, por meio de um alambique monstro, se transformam em diamante. De um dia para outro o mundo caía na miséria. O carvão é a riqueza; o diamante é o supérfluo.

 

— Concordo.

 

— Faço isto para mostrar que posso e sei; mas não o direi a ninguém. É segredo que fica comigo.

 

— Não trabalha então por amor à ciência?

 

— Não; tenho algum amor à ciência, mas é um amor platônico. Trabalho para mostrar que sei e posso criar. Quanto aos outros homens, importa-me pouco que saibam ou não. Chamar-me-ão egoísta; eu digo que sou filósofo. Quer este diamante como prova da minha estima e amostra do meu saber?

 

— Aceito, respondi.

 

— Aqui o tem; mas lembre-se sempre que esta pedra rutilante, tão procurada no mundo, e de tanto valor, capaz de lançar a guerra entre os homens, esta pedra não é mais que um pedaço de carvão.

 

Guardei o brilhante, que era lindíssimo, e acompanhei o capitão e a filha que saíam do laboratório. O que naquele momento me impressionava mais que tudo era a moça. Eu não trocaria por ela todos os diamantes célebres do mundo. Cada hora que passava ao pé dela aumentava a minha fascinação. Sentia invadir-me o delírio do amor; mais um dia e eu estaria unido àquela mulher irresistivelmente; separar-nos seria a morte para mim.

 

Quando chegamos à sala, o capitão Mendonça perguntou à filha, batendo uma pancada na testa:

 

— É verdade! Não me disseste que tinhas de pedir-me uma coisa?

 

— Sim; mas agora é tarde; amanhã. O doutor aparece, não?

 

— Sem dúvida.

 

— Afinal, disse Mendonça, o doutor há de acostumar-se aos meus trabalhos... e acreditará então...

 

— Já creio. Não posso negar a evidência; quem tem razão é o senhor; o resto do mundo não sabe nada.

 

Mendonça ouvia-me radiante de orgulho; o seu olhar, mais vago que nunca, parecia refletir a vertigem do espírito.

 

— Tem razão, disse ele, depois de alguns minutos; eu estou muito acima dos outros homens. A minha obra-prima...

 

— É esta, disse eu apontando para Augusta.

 

— Por ora, respondeu o capitão; mas eu medito coisas mais pasmosas; por exemplo, creio que descobri o meio de criar gênios.

 

— Como?

 

— Pego num homem de talento, notável ou medíocre, ou até num homem nulo, e faço dele um gênio.

 

— Isso é fácil...

 

— Fácil, não; é apenas possível. Aprendi isto... Aprendi? não, descobri isto, guiado por uma palavra que encontrei num livro árabe do século décimo-sexto. Quer vê-lo?

 

Não tive tempo de responder; o capitão saiu e voltou daí a alguns segundos com um livro in-fólio na mão, grosseiramente impresso em caracteres árabes feitos com tinta vermelha. Explicou-me a sua idéia, mas por alto; eu não lhe prestei grande atenção; os meus olhos estavam embebidos nos de Augusta.

 

Quando sai era meia-noite. Augusta com voz suplicante e terna disse-me:

 

— Vem amanhã?

 

— Venho!

 

O velho estava de costas; eu levei a mão dela aos meus lábios e imprimi-lhe um longo e apaixonado beijo.

 

Depois saí correndo: tinha medo dela e de mim.

 

V

No dia seguinte recebi um bilhete do capitão Mendonça, logo de manhã.

 

Grande notícia! Trata-se da nossa felicidade, da sua, da minha e da de Augusta. Venha à noite sem falta.

Não faltei.

 

Fui recebido por Augusta, que me apertou as mãos com fogo. Estávamos sós; ousei dar-lhe um beijo na face. Ela corou muito, mas retribuiu-me imediatamente o beijo.

 

— Recebi hoje um bilhete misterioso de seu pai...

 

— Já sei, disse a moça; trata-se com efeito da nossa felicidade.

 

Passava-se isto no patamar da escada.

 

— Entre! entre! gritou o velho capitão.

 

Entramos.

 

O capitão estava na sala fumando um cigarro e passeando com as mãos nas costas, como na primeira noite em que o vira. Abraçou-me, e mandou que me sentasse.

 

— Meu caro doutor, disse-me ele depois que nos sentamos ambos, ficando Augusta de pé encostada à cadeira do pai; meu caro doutor, raras vezes a fortuna cai a ponto de fazer a completa felicidade de três pessoas. A felicidade é a mais rara coisa deste mundo.

 

— Mais rara que as pérolas, disse eu sentenciosamente.

 

— Muito mais, e de maior valia. Dizem que César comprou por seis milhões de sestércios uma pérola, para presentear Sevília. Quanto não daria ele por essa outra pérola, que recebeu de graça, e que lhe deu o poder do mundo?

 

— Qual?

 

— O gênio. A felicidade é o gênio.

 

Fiquei um pouco aborrecido com a conversa do capitão. Eu cuidava que a felicidade de que se tratava para mim e Augusta era o nosso casamento. Quando o homem me falou no gênio, olhei para a moça com olhos tão aflitos, que ela veio em meu auxilio dizendo ao pai:

 

— Mas, papai, comece pelo principio.

 

— Tens razão; desculpa se o sábio faz esquecer o pai. Trata-se, meu caro amigo — dou-lhe este nome —, trata-se de um casamento.

 

— Ah!

 

— Minha filha confessou-me hoje de manhã que o ama loucamente e é igualmente amada. Daqui ao casamento é um passo.

 

— Tem razão; amo loucamente sua filha, e estou pronto a casar-me com ela, se o capitão consente.

 

— Consinto, aplaudo e agradeço.

 

Preciso acaso dizer que a resposta do capitão, ainda que prevista, encheu de felicidade o meu coração ambicioso? Levantei-me e apertei alegremente a mão do capitão.

 

— Compreendo! compreendo! disse o velho; já passaram por mim essas coisas. O amor é quase tudo na vida; a vida tem duas grandes faces: o amor e a ciência. Quem não compreender isto não  é digno de ser homem. O poder e a glória não impedem que a caveira de Alexandre seja igual à caveira de um truão. As grandezas da terra não valem uma flor nascida à beira dos rios. O amor é o coração, a ciência a cabeça; o poder é simplesmente a espada...

 

Interrompi esta enfadonha preleção acerca das grandezas humanas dizendo a Augusta que desejava fazer a sua felicidade e ajudar com ela a tornar tranqüila e alegre a velhice do pai.

 

— Lá por isso não se incomode, meu genro. Eu hei de ser feliz, quer queiram quer não. Um homem de minha têmpera nunca é infeliz. Tenho a felicidade nas mãos, não a faço depender de vãos preconceitos sociais.

 

Poucas palavras mais trocamos neste assunto, até que Augusta tomou a palavra dizendo:

 

— Mas, papai, ainda lhe não falou das nossas condições.

 

— Não te impacientes, pequena; a noite é grande.

 

— De que se trata? perguntei eu.

 

Mendonça respondeu:

 

— Trata-se de uma condição lembrada por minha filha; e que o doutor naturalmente aceita.

 

— Pois não!

 

— Minha filha, continuou o capitão, deseja uma aliança digna de si e de mim.

 

— Não lhe parece que eu possa?...

 

— É excelente para o caso, mas falta-lhe uma pequena coisa...

 

— Riqueza?

 

— Ora, riqueza! isso tenho eu de sobra... se quiser. O que lhe falta, meu rico, é justamente o que me sobra.

 

Fiz um gesto de compreender o que ele dizia, mas simplesmente por formalidade, porque eu não compreendia nada.

 

O capitão tirou-me do embaraço.

 

— Falta-lhe gênio, disse.

 

— Ah!

 

— Minha filha pensa muito bem que a descendente de um gênio, só de outro gênio pode ser esposa. Não hei de entregar a minha obra às mãos grosseiras de um hotentote; e posto que, na planta geral dos outros homens, o senhor seja efetivamente um homem de talento — aos meus olhos não passa de um animal muito mesquinho —, pela mesma razão de que quatro candelabros alumiam uma sala e não poderiam alumiar a abóbada celeste.

 

— Mas...

 

— Se lhe não agrada a figura, dou-lhe outra mais vulgar: a mais bela estrela do céu nada vale desde que aparece o sol. O senhor será uma bonita estrela, mas eu sou o sol, e diante de mim vale tanto uma estrela como um fósforo, como um vaga-lume.

 

O capitão dizia isto com um ar diabólico, e o olhar mais vago que nunca. Receei que realmente o meu capitão, apesar de sábio, tivesse um acesso de loucura. Como sair-lhe das garras? e teria eu ânimo de fazê-lo diante de Augusta, a quem me prendia uma simpatia fatal?

 

Interveio a moça.

 

— Bem sabemos de tudo isto, disse ela ao pai; mas não se trata de dizer que ele nada vale; trata-se de dizer que há de valer muito... tudo.

 

— Como assim? perguntei.

 

— Introduzindo-lhe o gênio.

 

Apesar da conversa que a este respeito tivemos na noite anterior, não compreendi logo a explicação de Mendonça; mas ele teve a caridade de me expor claramente a sua idéia.

 

— Depois de profundas e pacientes investigações, cheguei a descobrir que o talento é uma pequena quantidade de éter encerrado numa cavidade do cérebro; o gênio é o mesmo éter em porção centuplicada. Para dar gênio a um homem de talento basta inserir na referida cavidade do cérebro mais noventa e nove quantidades de éter puro. É justamente a operação que vamos fazer.

 

Deixo a imaginação do leitor calcular a soma de espanto que me causou este feroz projeto do meu futuro sogro; espanto que redobrou quando Augusta disse:

 

— É uma verdadeira felicidade que papai houvesse feito esta descoberta. Faremos hoje mesmo a operação, sim?

 

Seriam dois loucos? ou andaria eu num mundo de fantasmas? Olhei para ambos; ambos estavam risonhos e tranqüilos como se houvessem dito a coisa mais natural deste mundo.

 

Tranqüilizou-se-me o ânimo a pouco e pouco; refleti que era um homem robusto, e que não seria um velho e uma moça débil que me haviam de forçar a uma operação que eu considerava um simples e puro assassinato.

 

— A operação será hoje, disse Augusta depois de alguns instantes.

 

— Hoje, não, respondi; mas amanhã a esta hora com toda a certeza.

 

— Por que não hoje? perguntou a filha do capitão.

 

— Tenho muito que fazer.

 

O capitão sorriu com ar de quem não engolia a pílula.

 

— Meu genro, eu sou velho e conheço todos os recursos da mentira. O adiamento que nos pede é uma evasiva grosseira. Pois não é muito melhor ser hoje um grande luzeiro da humanidade, um êmulo de Deus, do que ficar até amanhã simples homem como os outros?

 

— Sem dúvida; mas amanhã teremos mais tempo...

 

— Eu apenas lhe peço meia hora.

 

— Pois bem, será hoje; mas eu desejo simplesmente dispor agora de uns três quartos de hora, findos os quais volto e fico à sua disposição.

 

O velho Mendonça fingiu aceitar a proposta.

 

— Pois sim; mas para ver que eu não me descuidei do senhor, ande cá ao laboratório ver a soma de éter que pretendo introduzir-lhe no cérebro.

 

Fomos ao laboratório; Augusta ia pelo meu braço; o capitão caminhava adiante com uma lanterna na mão. O laboratório estava iluminado com três velas em forma de triângulo. Noutra ocasião perguntaria eu a razão daquela disposição especial das velas; mas naquele momento todo o meu desejo era estar longe de semelhante casa.

 

E contudo uma força me prendia, e dificilmente poderia eu arrancar-me dali; era Augusta. Aquela moça exercia sobre mim uma pressão a um tempo doce e dolorosa; sentia-me escravo dela, a minha vida como que se fundia na sua; era uma fascinação vertiginosa.

 

O capitão sacou de um caixão de madeira preta um frasco contendo éter. Disse-me ele que havia no frasco, porque eu não vi coisa nenhuma, e fazendo esta observação, respondeu-me ele:

 

— Pois precisa ver o gênio? Afirmo-lhe que há aqui dentro noventa e nove doses de éter, as quais, juntas à única dose que a natureza lhe deu, formarão cem doses perfeitas.

 

A moça pegou no frasco e o examinou contra a luz. Pela minha parte, limitei-me a convencer o homem por meio da minha simplicidade.

 

— Afirma-me, disse-lhe eu, que é gênio de primeira ordem?

 

— Afirmo-lho. Mas por que se há de fiar em palavras? O senhor vai saber o que é.

 

Dizendo isto puxou-me pelo braço com tamanha força que eu vacilei. Compreendi que era chegada a crise fatal. Procurei desvencilhar-me do velho, mas senti cair-me na cabeça três ou quatro gotas de um líquido gelado; perdi as forças, fraquearam-me as pernas; cai no chão sem movimento.

 

Aqui não poderei descrever cabalmente a minha tortura; eu via e ouvia tudo sem poder articular uma palavra nem fazer um gesto.

 

— Queria lutar comigo, maganão? dizia o químico; lutar com aquele que te vai fazer feliz! Era ingratidão antecipada; amanhã tu me hás de abraçar contentíssimo.

 

Voltei os olhos para Augusta; a filha do capitão preparava um longo estilete, enquanto o velho tratava de introduzir sutilmente no frasco um finíssimo tubo de borracha destinado a transportar o éter do frasco para o interior do meu cérebro.

 

Não sei que tempo durou a preparação do meu suplício; sei que ambos se aproximaram de mim; o capitão trazia o estilete e a filha o frasco.

 

— Augusta, disse o pai, toma cuidado não se derrame éter nenhum; olha, traz aquela luz; bem; senta-te aí no banquinho. Eu vou furar-lhe a cabeça. Apenas sacar o estilete, introduze-lhe o tubo e abre a pequena mola. Bastam dois minutos; aqui tens o relógio.

 

Ouvi aquilo tudo banhado em suores frios. De repente os olhos foram-se-me enterrando; as feições do capitão assumiram proporções descomunais e fantásticas; uma luz verde e amarela enchia todo o quarto; pouco a pouco os objetos iam perdendo as formas, e tudo em volta de mim ficou mergulhado numa penumbra crepuscular.

 

Senti uma dor agudíssima no alto do crânio; corpo estranho penetrou até o interior do cérebro. Não sei de mais nada. Creio que desmaiei.

 

Quando dei acordo de mim o laboratório estava deserto; pai e filha tinham desaparecido. Pareceu-me ver em frente de mim uma cortina. Uma voz forte e áspera soou aos meus ouvidos:

 

— Olá! acorde!

 

— Que é?

 

— Acorde! quem tem sono dorme em casa, não vem ao teatro.

 

Abri de todo os olhos; vi em frente de mim um sujeito desconhecido; eu achava-me sentado numa cadeira no teatro de S. Pedro.

 

— Ande, disse o sujeito, quero fechar as portas.

 

— Pois o espetáculo acabou?

 

— Há dez minutos.

 

— E eu dormi esse tempo todo?

 

— Como uma pedra.

 

— Que vergonha!

 

— Realmente, não fez grande figura; todos que estavam perto riam de o ver dormir enquanto se representava. Parece que o sono foi agitado...

 

— Sim, um pesadelo... Queira perdoar; vou-me embora.

 

E saí protestando não recorrer, em casos de arrufo, aos dramas ultra-românticos: são pesados demais.

 

Quando ia pôr o pé na rua, chamou-me o porteiro, e entregou-me um bilhete do capitão Mendonça. Dizia assim:

 

Meu caro doutor. — Entrei há pouco e vi-o dormir com tão boa vontade que achei mais prudente ir-me embora pedindo-lhe que me visite quando quiser, no que me dará muita honra.

10 horas da noite.

 

Apesar de saber que o Mendonça da realidade não era o do sonho, desisti de o ir visitar. Berrem os praguentos, embora — tu és a rainha do mundo, ó superstição.

 

 

 

FIM

 

 

 
novembro, 2008