© loredano
 
 
 
 
 
 

 

"Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí à rua, eu o mais encolhido dos caramujos, também eu entrei no préstito, em carruagem aberta, se me fazem favor, hóspede de um gordo amigo ausente; todos respiravam felicidade, tudo era delírio. Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto".

 

Na descrição da alegria popular pela conquista da liberdade, em crônica publicada em 14 de maio de 1893, fica evidente o olhar fascinado de um Machado comprometido com o debate da questão escravocrata. E hoje, exatos 120 anos depois do 13 de maio de 1888, já é mais do que tempo de obrigatória releitura da equivocadissima omissão machadiana em relação à escravidão e à campanha abolicionista, de seu absurdamente propalado "aburguesamento" e  da ridícula "denegação das origens" conferida à sua obra. Os detratores e ressentidos costumam apontar, como uma espécie de carro-chefe crítico, a ausência de um "herói negro" em sua ficção — como se isso fornecesse convincente e taxativo certificado de consciência política, como se fosse elemento imprescindível na construção de romances e contos de qualidade...

 

A tese da "alienação" machadiana desmorona ao se examinar o naipe de contos em que a "iníqua escravidão" é exibida criticamente, nas linhas e entrelinhas, com todos seus horrores; é solapada ao se ler, por exemplo, as crônicas de 18/07/1864, de 04/04/1885, 1º/10/1876, 15/06/1877, 14/07/1878, 1º/11/1883, 23/11/1885, 30/08/1887, 27/09/1887, 11/05/1888, 19/05/1888, 20/05/1888, 27/05/1888, 1º/06/1888, 26/06/1888, 14/05/1893, 04/11/1897 [todas integrantes de minha obra Machado de Assis e a política: crônicas (Senado Federal)]; perde vigor ao se deparar com os poemas "Sabina" (1875) e "13 de maio" (1888), ou ao conhecer a crítica teatral à peça "Mãe" (1860), de José de Alencar, e o texto "O teatro de José de Alencar" (1866); além das referências, citações, comentários e verdadeiros libelos expostos na antológica novela Casa Velha (1885) e  nos romances Ressureição (1872), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878), Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro(1899) — observando-se o quanto o processo histórico que resultou da lei de 1871, assim como suas conseqüências,  encontra-se  no cerne da concepção desses seis  romances — Esaú e Jacó (1904) e no derradeiro Memorial de Aires (1908) — cujo centenário de publicação deve constituir em imperdível oportunidade de, primeiro, conhecer uma obra-prima, das maiores que a literatura brasileira já produziu, além de  acompanhar a encenação da decadência e extinção da própria escravocracia, personalizada no Barão de Santa-Pia, sob uma narrativa revestida de contundente historicidade e, como o condizente  grand finale da obra de um portentoso escritor, finalizada pela mensagem que ressalta o papel político da literatura como guardiã dos fatos passados e da memória coletiva de um país.

 

Este segundo grupo de contos sob a rubrica "Machado e a escravidão" abriga três contos, que têm entre si a particularidade comum de virem à luz pós-1889, vale dizer já implementada a Abolição, num período, portanto, em que as coisas podiam ser ditas mais clara e contundentemente. E a tal, Machado — com sua plena consciência histórica, política e ideológica — não se furtou.

 

"O caso da vara", publicado originalmente na Gazeta de Notícias, 1891, não fosse por seus próprios atributos temáticos e narrativos, constitui  uma das obras mais notáveis, porque emerge com toda a sua contundência em um período digamos pouco fecundo de produção contística de Machado. O conto pode ser lido não só como uma história irônica, cuidadosamente estruturada, de conflitos internos versus ações reais — que são vencidas pela torrente dos seus pensamentos, medos, crueldades e dramas, conduzindo a narrativa até um desfecho enigmático — mas, sobretudo, como uma perturbadora peça dramática com todas as  características da tragédia clássica. Tal como esta, evidencia-se a predileção de Machado de Assis por situações universais que revelam a feição trágicômica do comportamento humano, numa narrativa  carregada de implicações morais.

 

"Mariana", em sua segunda versão — publicado na Gazeta de Notícias, 1891 — com o texto totalmente reelaborado, expressando a maior liberdade então concedida a se escrever sobre o assunto (além do fato de ser publicado no jornal que, por todos os motivos e aspectos, permitia maior 'autonomia' a Machado).

 

"Pai contra mãe", não publicado em periódico, mas sim na coletânea Relíquias de casa velha, 1906, abre-se com  palavras extremamente frias e objetivas, raríssimas vezes empregadas por Machado em sua ficção. É um dos contos mais perturbadores, um grito contra a escravatura, ainda que — e nisso reside sua profunda dramaticidade — seja um grito  abafado,  amordaçado, mas carregado de emoção: um tipo de emoção estritamente pessoal, diga-se, porquanto parece Machado intentar nele exprimir sua própria condição original de mestiço, uma  dramática ambiguidade que, se o perseguiu, segundo algumas interpretações,  durante toda a vida, quase nunca transpareceu na obra literária.

 

É um texto arrepiante na sua violência controlada, na sua perfeita construção da estrutura literária;  quer ensinar-nos o que é o horror da escravatura, mas para chegar a isso utiliza o que há de mais chocante para o leitor: a apresentação do horror como 'normalidade'. Machado avisa desde o primeiro parágrafo, quando interrompe a fria descrição dos instrumentos de tortura, para se dirigir diretamente ao leitor e lembrar que "era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco e alguma vez o cruel". [Mauro Rosso]

 

 

 

 

 

Damião fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto. Não sei bem o ano; foi antes de 1850. Passados alguns minutos parou vexado; não contava com o efeito que produzia nos olhos da outra gente aquele seminarista que ia espantado, medroso, fugitivo. Desconhecia as ruas, andava e desandava; finalmente parou. Para onde iria? Para casa, não; lá estava o pai que o devolveria ao seminário, depois de um bom castigo. Não assentara no ponto de refúgio, porque a saída estava determinada para mais tarde; uma circunstância fortuita a apressou. Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, João Carneiro, mas o padrinho era um moleirão sem vontade, que por si só não faria coisa útil. Foi ele que o levou ao seminário e o apresentou ao reitor:

 

— Trago-lhe o grande homem que há de ser, disse ele ao reitor.

 

— Venha, acudiu este, venha o grande homem, contanto que seja também humilde e bom. A verdadeira grandeza é chã. Moço...

 

Tal foi a entrada. Pouco tempo depois fugiu o rapaz ao seminário. Aqui o vemos agora na rua, espantado, incerto, sem atinar com refúgio nem conselho; percorreu de memória as casas de parentes e amigos, sem se fixar em nenhuma. De repente, exclamou:

 

— Vou pegar-me com Sinhá Rita! Ela manda chamar meu padrinho, diz-lhe que quer que eu saia do seminário... Talvez assim...

 

Sinhá Rita era uma viúva, querida de João Carneiro; Damião tinha umas idéias vagas dessa situação e tratou de a aproveitar. Onde morava? Estava tão atordoado, que só daí a alguns minutos é que lhe acudiu a casa; era no Largo do Capim.

 

— Santo nome de Jesus! Que é isto? bradou Sinhá Rita, sentando-se na marquesa, onde estava reclinada.

 

Damião acabava de entrar espavorido; no momento de chegar à casa, vira passar um padre, e deu um empurrão à porta, que por fortuna não estava fechada a chave nem ferrolho. Depois de entrar, espiou pela rótula, a ver o padre. Este não deu por ele e ia andando.

 

— Mas que é isto, sr. Damião? bradou novamente a dona da casa, que só agora o conhecera. Que vem fazer aqui?

 

Damião, trêmulo, mal podendo falar, disse que não tivesse medo, não era nada; ia explicar tudo.

 

— Descanse, e explique-se.

 

— Já lhe digo; não pratiquei nenhum crime, isso juro; mas espere.

 

Sinhá Rita olhava para ele espantada, e todas as crias, de casa, e de fora, que estavam sentadas em volta da sala, diante das suas almofadas de renda, todas fizeram parar os bilros e as mãos. Sinhá Rita vivia principalmente de ensinar a fazer renda, crivo e bordado. Enquanto o rapaz tomava fôlego, ordenou às pequenas que trabalhassem, e esperou. Afinal, Damião contou tudo, o desgosto que lhe dava o seminário; estava certo de que não podia ser bom padre; falou com paixão, pediu-lhe que o salvasse.

 

— Como assim? Não posso nada.

 

— Pode, querendo.

 

— Não, replicou ela abanando a cabeça; não me meto em negócios de sua família, que mal conheço; e então seu pai, que dizem que é zangado!

 

Damião viu-se perdido. Ajoelhou-se-lhe aos pés, beijou-lhe a mãos, desesperado.

 

— Pode muito, Sinhá Rita; peço-lhe pelo amor de Deus, pelo que a senhora tiver de mais sagrado, por alma de seu marido, salve-me da morte, porque eu mato-me, se voltar para aquela casa.

 

Sinhá Rita, lisonjeada com as súplicas do moço, tentou chamá-lo a outros sentimentos. A vida de padre era santa e bonita, disse-lhe ela; o tempo lhe mostraria que era melhor vencer as repugnâncias e um dia... Não, nada, nunca, redargüia Damião, abanando a cabeça e beijando-lhe as mãos; e repetia que era a sua morte. Sinhá Rita hesitou ainda muito tempo; afinal perguntou-lhe por que não ia ter com o padrinho.

 

— Meu padrinho? Esse é ainda pior que papai; não me atende, duvido que atenda a ninguém...

 

— Não atende? interrompeu Sinhá Rita ferida em seus brios. Ora, eu lhe mostro se atende ou não...

 

Chamou um moleque e bradou-lhe que fosse à casa do sr. João Carneiro chamá-lo, já e já; e se não estivesse em casa, perguntasse onde podia ser encontrado, e corresse a dizer-lhe que precisava muito de lhe falar imediatamente.

 

— Anda, moleque.

 

Damião suspirou alto e triste. Ela, para mascarar a autoridade com que dera aquelas ordens, explicou ao moço que o sr. João Carneiro fora amigo do marido e arranjara-lhe algumas crias para ensinar. Depois, como ele continuasse triste, encostado a um portal, puxou-lhe o nariz, rindo:

 

— Ande lá, seu padreco, descanse que tudo se há de arranjar.

 

Sinhá Rita tinha quarenta anos na certidão de batismo, e vinte e sete nos olhos. Era apessoada, viva, patusca, amiga de rir; mas, quando convinha, brava como diabo. Quis alegrar o rapaz, e, apesar da situação, não lhe custou muito. Dentro de pouco, ambos eles riam, ela contava-lhe anedotas, e pedia-lhe outras, que ele referia com singular graça. Uma destas, estúrdia, obrigada a trejeitos, fez rir a uma das crias de Sinhá Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o moço. Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marquesa, e ameaçou-a:

 

— Lucrécia, olha a vara!

 

A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma advertência; se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o castigo do costume. Damião olhou para a pequena; era uma negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava onze anos. Damião reparou que tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de não interromper a conversação. Teve pena da negrinha, e resolveu apadrinhá-la, se não acabasse a tarefa. Sinhá Rita não lhe negaria o perdão... Demais, ela rira por achar-lhe graça; a culpa era sua, se há culpa em ter chiste.

 

Nisto, chegou João Carneiro. Empalideceu quando viu ali o afilhado, e olhou para Sinhá Rita, que não gastou tempo com preâmbulos. Disse-lhe que era preciso tirar o moço do seminário, que ele não tinha vocação para a vida eclesiástica, e antes um padre de menos que um padre ruim. Cá fora também se podia amar e servir a Nosso Senhor. João Carneiro, assombrado, não achou que replicar durante os primeiros minutos; afinal, abriu a boca e repreendeu o afilhado por ter vindo incomodar "pessoas estranhas", e em seguida afirmou que o castigaria.

 

— Qual castigar, qual nada! interrompeu Sinhá Rita. Castigar por quê? Vá, vá falar a seu compadre.

 

— Não afianço nada, não creio que seja possível...

 

— Há de ser possível, afianço eu. Se o senhor quiser, continuou ela com certo tom insinuativo, tudo se há de arranjar. Peça-lhe muito, que ele cede. Ande, senhor João Carneiro, seu afilhado não volta para o seminário; digo-lhe que não volta...

 

— Mas, minha senhora...

 

— Vá, vá.

 

João Carneiro não se animava a sair, nem podia ficar. Estava entre um puxar de forças opostas. Não lhe importava, em suma, que o rapaz acabasse clérigo, advogado ou médico, ou outra qualquer coisa, vadio que fosse; mas o pior é que lhe cometiam uma luta ingente com os sentimentos mais íntimos do compadre, sem certeza do resultado; e, se este fosse negativo, outra luta com Sinhá Rita, cuja última palavra era ameaçadora: "digo-lhe que ele não volta". Tinha de haver por força um escândalo. João Carneiro estava com a pupila desvairada, a pálpebra trêmula, o peito ofegante. Os olhares que deitava a Sinhá Rita eram de súplica, mesclados de um tênue raio de censura. Por que lhe não pedia outra coisa? Por que lhe não ordenava que fosse a pé, debaixo de chuva, à Tijuca, ou Jacarepaguá? Mas logo persuadir ao compadre que mudasse a carreira do filho... Conhecia o velho; era capaz de lhe quebrar uma jarra na cara. Ah! se o rapaz caísse ali, de repente, apoplético, morto! Era uma solução — cruel, é certo, mas definitiva.

 

— Então? insistiu Sinhá Rita.

 

Ele fez-lhe um gesto de mão que esperasse. Coçava a barba, procurando um recurso. Deus do céu! um decreto do papa dissolvendo a Igreja, ou, pelo menos, extinguindo os seminários, faria acabar tudo em bem. João Carneiro voltaria para casa e ia jogar os três-setes. Imaginai que o barbeiro de Napoleão era encarregado de comandar a batalha de Austerlitz... Mas a Igreja continuava, os seminários continuavam, o afilhado continuava, cosido à parede, olhos baixos, esperando, sem solução apoplética.

 

— Vá, vá, disse Sinhá Rita dando-lhe o chapéu e a bengala.

 

Não teve remédio. O barbeiro meteu a navalha no estojo, travou da espada e saiu à campanha. Damião respirou; exteriormente deixou-se estar na mesma, olhos fincados no chão, acabrunhado. Sinhá Rita puxou-lhe desta vez o queixo.

 

— Ande jantar, deixe-se de melancolias.

 

— A senhora crê que ele alcance alguma coisa?

 

— Há de alcançar tudo, redargüiu Sinhá Rita cheia de si. Ande, que a sopa está esfriando.

 

Apesar do gênio galhofeiro de Sinhá Rita, e do seu próprio espírito leve, Damião esteve menos alegre ao jantar que na primeira parte do dia. Não fiava do caráter mole do padrinho. Contudo, jantou bem; e, para o fim, voltou às pilhérias da manhã. À sobremesa, ouviu um rumor de gente na sala, e perguntou se o vinham prender.

 

— Hão de ser as moças.

 

Levantaram-se e passaram à sala. As moças eram cinco vizinhas que iam todas as tardes tomar café com Sinhá Rita, e ali ficavam até o cair da noite.

 

As discípulas, findo o jantar delas, tornaram às almofadas do trabalho. Sinhá Rita presidia a todo esse mulherio de casa e de fora. O sussurro dos bilros e o palavrear das moças eram ecos tão mundanos, tão alheios à teologia e ao latim, que o rapaz deixou-se ir por eles e esqueceu o resto. Durante os primeiros minutos, ainda houve da parte das vizinhas certo acanhamento; mas passou depressa. Uma delas cantou uma modinha, ao som da guitarra, tangida por Sinhá Rita, e a tarde foi passando depressa. Antes do fim, Sinhá Rita pediu a Damião que contasse certa anedota que lhe agradara muito. Era a tal que fizera rir Lucrécia.

 

— Ande, senhor Damião, não se faça de rogado, que as moças querem ir embora. Vocês vão gostar muito.

 

Damião não teve remédio senão obedecer. Malgrado o anúncio e a expectação, que serviam a diminuir o chiste e o efeito, a anedota acabou entre risadas das moças. Damião, contente de si, não esqueceu Lucrécia e olhou para ela, a ver se rira também. Viu-a com a cabeça metida na almofada para acabar a tarefa. Não ria; ou teria rido para dentro, como tossia.

 

Saíram as vizinhas, e a tarde caiu de todo. A alma de Damião foi-se fazendo tenebrosa, antes da noite. Que estaria acontecendo? De instante a instante, ia espiar pela rótula, e voltava cada vez mais desanimado. Nem sombra do padrinho. Com certeza, o pai fê-lo calar, mandou chamar dois negros, foi à polícia pedir um pedestre, e aí vinha pegá-lo à força e levá-lo ao seminário. Damião perguntou a Sinhá Rita se a casa não teria saída pelos fundos; correu ao quintal, e calculou que podia saltar o muro. Quis ainda saber se haveria modo de fugir para a Rua da Vala, ou se era melhor falar a algum vizinho que fizesse o favor de o receber. O pior era a batina; se Sinhá Rita lhe pudesse arranjar um rodaque, uma sobrecasaca velha... Sinhá Rita dispunha justamente de um rodaque, lembrança ou esquecimento de João Carneiro.

 

— Tenho um rodaque do meu defunto, disse ela, rindo; mas para que está com esses sustos? Tudo se há de arranjar, descanse.

 

Afinal, à boca da noite, apareceu um escravo do padrinho, com uma carta para Sinhá Rita. O negócio ainda não estava composto; o pai ficou furioso e quis quebrar tudo; bradou que não, senhor, que o peralta havia de ir para o seminário, ou então metia-o no Aljube ou na presiganga. João Carneiro lutou muito para conseguir que o compadre não resolvesse logo, que dormisse a noite, e meditasse bem se era conveniente dar à religião um sujeito tão rebelde e vicioso. Explicava na carta que falou assim para melhor ganhar a causa. Não a tinha por ganha; mas no dia seguinte lá iria ver o homem, e teimar de novo. Concluía dizendo que o moço fosse para a casa dele.

 

Damião acabou de ler a carta e olhou para Sinhá Rita. "Não tenho outra tábua de salvação", pensou ele. Sinhá Rita mandou vir um tinteiro de chifre, e na meia folha da própria carta escreveu esta resposta: "Joãozinho, ou você salva o moço, ou nunca mais nos vemos". Fechou a carta com obreia, e deu-a ao escravo, para que a levasse depressa. Voltou a reanimar o seminarista, que estava outra vez no capuz da humildade e da consternação. Disse-lhe que sossegasse, que aquele negócio era agora dela.

 

— Hão de ver para quanto presto! Não, que eu não sou de brincadeiras!

 

Era a hora de recolher os trabalhos. Sinhá Rita examinou-os; todas as discípulas tinham concluído a tarefa. Só Lucrécia estava ainda à almofada, meneando os bilros, já sem ver; Sinhá Rita chegou-se a ela, viu que a tarefa não estava acabada, ficou furiosa, e agarrou-a por uma orelha.

 

— Ah! malandra!

 

— Nhanhã, nhanhã! pelo amor de Deus! por Nossa Senhora que está no céu.

 

— Malandra! Nossa Senhora não protege vadias!

 

Lucrécia fez um esforço, soltou-se das mãos da senhora, e fugiu para dentro; a senhora foi atrás e agarrou-a.

 

— Anda cá!

 

— Minha senhora, me perdoe! tossia a negrinha.

 

— Não perdôo, não. Onde está a vara?

 

E tornaram ambas à sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando e pedindo; a outra dizendo que não, que a havia de castigar.

 

— Onde está a vara?

 

A vara estava à cabeceira da marquesa, do outro lado da sala. Sinhá Rita, não querendo soltar a pequena, bradou ao seminarista:

 

— Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor?

 

Damião ficou frio... Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, tinha jurado apadrinhar a pequena, que, por causa dele, atrasara o trabalho...

 

— Dê-me a vara, sr. Damião!

 

Damião chegou a caminhar na direção da marquesa. A negrinha pediu-lhe então por tudo o que houvesse mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso Senhor...

 

— Me acuda, meu sinhô moço!

 

Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa, pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita.              

 

FIM

 

 

 

 

junho, 2008