Muros de um antigo castelo mouro no Porto, em Portugal

©ronie prado

 
  
                                                                     
  

 

Washigton Irwing, escritor norte-americano do século XIX, um dos primeiros intelectuais a fazerem o panegírico dos vestígios da civilização árabe na Espanha, à parte suas memórias de um literal "turista aprendiz", escreveu um livro sobre o que teria sido a "retomada" da Península Ibérica aos muçulmanos pelos cristãos e que ainda hoje provoca polêmicas pelo óbvio. É um livro agradável, que se lê com prazer, mas que teria incidido num equívoco que o escritor uruguaio contemporâneo, Eduardo Galeano, insiste em denunciar. Segundo Galeano, os chamados reis católicos, Fernando e Isabel, não retomaram coisa alguma. Depois de setecentos anos, eles simplesmente se fizeram instrumento dos interesses de alguns poucos. A destruição do reino andaluz, ainda que inevitável em virtude da decadência do poder árabe, teria propiciado a implantação de um sistema fundiário, que passou a justificar a expressão "trabalhar como um mouro". Todos os que não tinham como se opor a dominação dos reis católicos, — a quase totalidade da população da Andaluzia — passou a ser considerada indiscriminadamente "moura". Foi como tal que muitos andaluzes passaram a "mourejar ao sol".



Exemplo de azulejaria moura, em Évora, Portugal.
©ronie prado

É uma discussão para historiadores e interessados, que não parece entusiasmar genericamente nem espanhóis, nem portugueses, atualmente "muito bem obrigados" sob o guarda chuva econômico da União Européia. Mas a questão não parece irrelevante. Qualquer pessoa que visite a Espanha ou Portugal terá de concordar com a admiração romântica de Washington Irwing ou com os numerosos artistas, principalmente franceses (Debussy, Ravel, Manet), que há séculos vêm se encantando com os vestígios da cultura moura na Península Ibérica. Os vestígios realmente são muitos e persistem nos palácios, nas igrejas católicas, nos cantos e no caráter dos alentejanos (do lado português), mas principalmente dos espanhóis andaluzes e seus cantos flamencos. É um elogio à cultura muçulmana indiscutivelmente. Nada, contudo, que parece alterar o ânimo de seus compatriotas para que façam qualquer concessão ao islamismo.

Difícil, na verdade, de entender. Uma realidade seria a cidade de Bagdá sob o bombardeio americano, teoricamente a esmagar terroristas, mas também a destruírem o que na Espanha é preservada como o melhor do país; e outra, seria a Bagdá mítica das "Mil e Uma Noites", ou da "Cheherazade", obra orquestral do compositor russo Rimsky Korsakov. Que continuam a encantar leitores de todos os tempos e ouvintes das salas de concerto de todo o mundo; e justamente por evocar a civilização árabe de outros tempos. Por aproximação evidente poder-se-ia incluir nisso o indefectível "Bolero" de Ravel que tem tanto de espanhol,  justamente por ter muito de mouro.

É uma incoerência, deve-se reconhecer: mas isso reporia alguma boa vontade para com a história não oficial, de que Washington Irwing foi, afinal, o desavisado propagador? Eduardo Galeano certamente pensaria que não, mas por razões que ele mesmo não teria como explicar na sua totalidade. Ao que parece, no intrincado mundo da cultura, em todas as épocas, as coisas parece se fazerem com pesos e medidas diferentes, quando não antagônicas. A Alemanha de Hitler não impediu que Stalin ordenasse que a primeira peça a ser executada pela Filarmônica de Leningrado, após a libertação da cidade do cerco alemão (900 mil mortos do lado russo), fosse a abertura "Egmont", de Beethoven "para mostrar que a Alemanha não eram os nazistas".

Complicado justificar qualquer ato do ditador russo, mas seu raciocínio, na época, foi perfeito. "Mutatis, mutandi" alguém dirá, com razão, que tal reflexão talvez pudesse ser aplicado ao Islamismo. Tendo como argumento a maravilhosa catedral de Sevilha, a maior (com exceção da Catedral de São Pedro de Roma), mas provavelmente a mais bela da Europa, haveria quem se lembrasse que ela deve muito mais à cultura árabe do que ao Ocidente.


Catedral de Sevilha, na Espanha.
©ronie prado

 

De fato, ela começou a ser construída sobre uma mesquita muçulmana, do qual foram aproveitados não apenas os alicerces, digamos, materiais, mas também todo os que fazem todo um legado espiritual. Sabe-se que ela foi alterada ao longo dos anos, com o aporte da arquitetura renascentista e barroca — leia-se do Ocidente. Mas o rendado das pedras, a riqueza em literais "arabescos" da sua arquitetura, que dá uma idéia de infinito, fundamentalmente por exibir cada detalhe, cada centímetro como se os artesãos que a construíram tivessem o compromisso de jogarem toda a sua vida no metro quadrado a que se dedicaram, não sugerem que devam pouco, ideologicamente falando, ao castelo mouro que sobreviveu aos tempos, quase a seu lado. E que, milagrosamente, não foi destruído pelos católicos a despeito de sua origem.

É claro que os espanhóis sabem a quem devem a magia da sua cultura. Neste particular são exatamente como quase todos os povos de todas as nações do mundo, incluindo-se aí os brasileiros. Sabemo-nos todos devedores dos negros, dos índios e dos portugueses. Não é, porém, por termos isso muito presente, que a maior parte dos pobres é de origem africana, que os índios vivem como vivem (inclusive na cidade de São Paulo), e que os portugueses são sempre o objeto da nossa última piada. 

Pensando bem, Washington Irwing não fez mais do que contar a versão menos incômoda para os espanhóis e o mundo, mesmo porque as histórias, quando não fantasiosas, sempre refletem preconceitos. Parece provir do mesmo Washington Irwing a história de que quando da queda de Granada, seu último rei muçulmano, Boabdil, el Chico (Boabdil, o Pequeno), ao avistá-la de longe, teria começado a chorar. Ao que sua velha mãe, a Sultana, o censurou: "Choras como mulher, o que não soubeste defender como homem."

 

 

 

 

março, 2008