Uma fila de xepeiros na coluna da praia. Sentados em bancos de concreto com ferros expostos; todos aplicadinhos, servindo-se de benzina aromatizada com Babaloo, esperando o helicóptero do Pink Floyd dentro de suas cabeças. É o pulso batendo forte, seqüenciado pelo vapor de benzina tuti-fruti; the happiest days of our lives, na praia. É só morder o lenço embebido. A língua coça, saliva. O ar entra frio. E um raio quente corre pelas costas. Poderia ir embora se quisesse. Mas ainda havia juventude, linda e rápida, explodindo no céu. Dizer uma coisa dessas sem papel, só bebendo; ela escutou e sorriu. Disse que era de Recife. O cabelo cheirava a mar. Prolonguei o beijo no rosto pra sentir mais.

 

Você deve achar que sou maníaco, mas tudo bem; esses tipos não deixam a barba por fazer e são bem tímidos. Ganhei sua atenção; sorriu novamente. A outra baixou os olhos e conferiu minha roupa de grife. Gostou da minha higiene burguesa. Abriu um sorriso condescendente, curto, pois o vento apertou o tecido contra o seu corpo. A camisetinha simples desenhou os seios. O vento incomodava. Parece que queriam mostrar, expostas ali, na praia; porém, muito encabuladas. Afastei o cabelo pra ver sua boca. Ela mordia uma cereja sem nenhuma sensualidade. Comia igual criança; envergonhada, olhando-me de soslaio, permitindo-se tocar. Cinqüenta centavos pela cereja. Vodka russo-brasileira no copo, puro gelo.

 

Peguei as duas nas mãos pra ninguém mais oferecer bebida. Passamos por um quinteto, daqueles com nariz canela de pedreiro; fungando, fungando, bem agitados. Exibiam uma caixinha vermelha que abria num só clique, com espelhinho no centro; pra nervosos. "Estamos com ele", disseram as duas. Confirmei nos olhos sem nada dizer. E se não caminhasse esperando sem fugir, não ouviria o "tá tranqüilo" deles. Elas gostaram, pois ninguém costumava defender. História repetida, decorada, uma só tinha a outra; mas tá tranqüilo: da janela podemos ver a juventude; pólvora derretendo poeira de ferro, chuva de prata. Vinte minutos prometidos pela Prefeitura. Elas riram. Antes da xepa de beijo; antes dos corredores poloneses de macho, vamos pra lá. E prometi mais. A janela foi feita assim, com pé baixo, pra ficar olhando da cama, apoiando a cabeça nas mãos. Saímos. Elas orando, agradecendo proteção, e eu, agradecendo Suzana. Escutamos o vidro rachar nos baques que vinham da praia. Fogos de artifício iniciados. E agora?

 

Ficamos sérios. A pele brilhava pedindo toque, trabalho estético. Exibiram os pés sobre a cama, nus. Tudo bem. Vocês têm o que aprender; não mexam em gaveta e não peçam cigarro. Cerveja? Comprarei. Tudo que quiserem, peçam. Jamais peguem e esqueçam dentro de suas bolsas. Desci as escadas olhando através dos comongós. Os viciados estavam lá. Mortos. Bocas cinzentas com visgo nos cantos. Azedos. Joguei uma bomba relógio no colo deles; disse que era um xepeiro dessas com cicatrizes no ventre; cicatrizes de cesárea; esbarrei no quinteto, na esquina do prédio. "Putas?", insistiram. Batuquei no balcão. Desviei da sova na carne cinzenta, fofa; da boca encaixada na quina de granito, em ângulo perfeito para ser estourada por coices sucessivos na nuca. Assim, com o maxilar pendurado no pescoço, servindo de adorno ou medalhão, indica a raça que fala o que quer pela boca, sempre aberta. Todos mortos. Inclusive eu. Mereceria por ter dito aquilo; por agradecer a inexistência de deus e a Suzana a ser feita. Evitei a briga desfazendo das duas. Mas o cheiro insistia. Aquilo estava grudado nas paredes do bar. O cheiro indicava o banheiro. Poderia amontoá-los ali dentro. Na porra deles.

Antes de virar a chave da porta, deixei as bebidas no capacho como um leiteiro. Queria minha redenção. Ainda estão no bar do chinês. O que vejo é um orogotango de camiseta dizendo "ao menos está trabalhando" para um menino mosqueado. Envelhecido aos dez anos, roxo e cinza, com o nariz na altura do short; "ao menos está trabalhando", repete. Vejo graxa além das tiras de couro. Que cena estranha: engraxe de sandália. E meu futuro perigoso. Encurvado, não fica na linha de tiro. Por isso o engraxe. Estão me cercando. Mudei de cena pedindo refrigerante. Um soco-no-olho puxou conversa; "é pra dá-cu otário"; li em seus olhos. Estufou o peito triangular, oco, puro osso, e me ofereceu o queixo. Mas só perguntou "qual a diferença?"; o açúcar, respondi. As escamas do macaco branco são repulsivas.

 

Debaixo do manto grisalho há feridas. Pelo jeito que falei, acha que sou do ramo; que agencio. Um cheiro apodrece o lugar. Nossa comunhão: as rodelas de limão no meu copo são as mesmas do mictório; o líder abriu a porta do banheiro. "Pura amônia", disse o químico deles. Entraram os dois, o menino e o macaco branco. O resto do grupo esperava por mim. Mas o final estava controlado na praia. As rosas de prata explodiram sobre o mar. E nenhum abraço. Nenhum voto. Todos fascinados com as explosões da Prefeitura. "Então, vão à merda", mas só acenei; como fiz na rua, confirmando nos olhos.

 

Voltei pensando no garoto de joelhos. Ele reza. Suga. Depois apóia as mãos na privada, cospe, e se levanta. Meu futuro é subir as escadas e trancar as portas. Brindei sozinho. Suzi e Ana: minhas cerejas. Namoram as rosas de prata sobre o mar. E mesmo sem espelho, retocam o batom maquinalmente admirando a juventude explodir no céu. Tudo já é muito bonito. Suzi e Ana. Poderia ir embora se quisesse. Poderia não classificá-las nos jornais como a Suzana; atiçando o imaginário com duas; mas, não. Entro no quarto e digo um feliz ano novo. Não escutam. Os fogos abafam. Mas sabem do seu futuro ali.

 

 

(imagem ©f. culk)

 

 

 

 

Diogo Costa. Vive em Salvador-BA. Autor, entre outros de Gol de dedão (Antologia de Contos Prêmio Waly Salomão, 2006) e Espírito de porco (Antologia de Contos da Univap, 2005). Edita o blogue Mastigando Línguas.