As crianças cheirando cola

 

as crianças cheirando cola

vão se espraiando pelas avenidas, aos bandos, com seus cachorros

maltrapilhos, conversando em voz alta e ininteligível, o séqüito bizarro sai

em diligência, alterando o branco e reiterando o escuro as crianças cheirando

cola perdem a virgindade e o amor-próprio nos ladrilhos paulistanos ao seu bel-prazer

libertas da sociedade patriarcal, as crianças cheirando cola bailam em

ritmo de éter, passando rasteiras às ações das ONGs e das gestões municipais as

crianças cheirando cola amanhecem deitadas nas calçadas do centro da

cidade, esquentando-se uma com o calor da outra, os passantes

lançam frutas ou sacos pardos com pão nos corpos angélicos das

crianças adormecidas que cheiram cola, cujos narizes não têm mais o direito

de aspirar o mundo além da boca da garrafa, refratárias, as crianças nômades cheirando

cola criam um problema de paisagem urbana com seus cabelos pixaim de fuligem

acumulada e atitudes subversivas, as crianças cheirando cola grudam-se em portinaris

subterrâneos, sendo logo após descoladas pela manutenção e limpeza dos logradouros

públicos, as crianças cheirando cola por debaixo das pontes movimentadas da cidade são

rechaçadas pelos cidadãos amedrontados e penalizados pela aparência desgrenhada das

crianças cheirando cola em migração sazonal do centro em direção ao oeste da cidade,

expulsas pela guarda metropolitana, infiltrando-se nas ruas residenciais espargindo a

mulatice de seus narizes aspirantes de garrafas pet verdes, as crianças

cheirando cola quebram a tranqüilidade dos bairros classe média, diante das ruas

arborizadas horrorizadas, que abrem passagem tapando o nariz e desviando o

olhar das crianças cheirando cola, crescendo na velocidade da

passagem dos carros, virando moçadinha esperta e graúda as crianças entumescidas cheirando cola

vão procriando fetos viciados, o que já chega a ser caso de saúde pública, até

que, por um passe de mágica, as crianças cheirando cola, não mais tão crianças assim, foram

finalmente desintegradas pela prefeitura a pedido da sociedade civil organizada.

 

 

 

 

 

 

Estacionamento

 

Estaciona

o muro vai se desfazendo

mento

 

Senti

sem um tremor

de abalo prévio

mento

 

Aos golpes da marreta

letras desapareceram

 

Natural teria sido

terremoto

levar tudo abaixo

 

inclusive seus cabelos

 

Fica o esqueleto

a coluna partida

ao meio

 

Se esta

comeu a casa

resta comer a si mesmo

 

 

 

 

 

 

Não me venha falar de flores

 

Não me venha falar de flores,

veludo primaveril,

é pesticida espasmódico para mim.

 

Não posso, não, não poderia,

levar para dentro do quarto    

todas as plantas do jardim      

em suas trímeras junções.

 

Não me venha, não, não me venha,

tocar nessas fragilidades,         

minha montanha de ilusão.

 

 

 

 

 

 

Desconectando...

 

Éramos duas crianças

aprendendo a ver imagens

e a ouvir sons.

 

Escandíamos as mais simples sílabas

em malabarismo de linguagem.

 

Recebíamos com espanto a luz dos raios catódicos do fundo da tela de cristal:

puxa o fio da boca com os dedos,

sua risada ressoa redonda, grande de dentes.

 

Aí, veio o bicho-papão

e tirou nosso ar.

:-(

 

 

 

 

 

 

Galo galã

 

Galo galã,

galo galante galã,

me avermelha

em febre-terçã.

 

Galo galã

galo galante galã,

sintoniza

carícia frisson.

 

(em traje de gala,

bengala escumalha,

espreita a manhã)

 

Galo galã,

galo galante galã,

cantarola

pra sua ardente fã.

 

Galo galante,

meu galo galã

— Chanteclair,

ingênuo garçon.

 

 

 

 

 

 

Planície argentina

 

chuveiro de partículas desintegrando-se na névoa

vacas voam na nevasca

o firmamento

— composição azul —

se desloca

 

 

 

 

 

 

Construção

 

Rompe a manhã

gongo

pedra no invisível

Irrompe drástico

nas suítes inacabadas

Mágico, interrompe a luz

estremecendo em ondas o quarteirão

Rompe ar ressequido, lacre

Transforma espaço vazio em habitável

sombra

 

 

 

 

 

 

Cai catarata

 

cai catarata

véu branco

despenca

em água abismal

penumbra

rebenta

rocha colossal

sedenta

desde tempo abissal

eflúvio

dos rios temporal

cauda de foz

perene canal

resumo de preces

catedral

 

 

Elisa Andrade Buzzo (São Paulo-SP, 1981). Jornalista formada pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Depois de seu primeiro livro de poesias, Se lá no sol (Rio de Janeiro: 7Letras, 2005), seus trabalhos apareceram em diversas antologias no Brasil e exterior como Oitavas (São Paulo: Demônio Negro, 2006), Cuatro poetas recientes del Brasil (Buenos Aires: Black&Vermelho, 2006), Caos portátil, poesía contemporánea del Brasil (Cidade do México: El Billar de Lucrecia, 2007) e Antologia Vacamarela (São Paulo, 2007). Co-edita a revista de literatura e artes visuais Mininas. Na internet, mantém o blogue Calíope e uma coluna no Digestivo Cultural.