Eu me virava, sonolenta, procurando os comprimidos. Da varanda, na poltrona de palha, nenhuma luz, nem dos barcos, nada, só o clarão da sala, as risadas, os meninos jogando tranca. A dor começou há três semanas. Acordei o Digo no meio da noite, estávamos no sítio, e disse que achava melhor voltarmos. Ele ficou aborrecido (não conseguiu disfarçar), tinha reservado o sábado pra fazer de bicicleta a trilha do morro, e agora isso. Colocamos as malas no carro e saímos. Na estrada, ele me mandava relaxar, dizia que no fundo aquilo era minha culpa: você precisa se alimentar melhor, praticar ioga. Fazer do corpo um instrumento pra expansão da alma. Ligou o som e procurava uma estação quando uma mancha se acendeu no pára-brisa; dei um grito e ele freou (cobri o rosto), o carro travou as rodas e se arrastou até parar, a dois palmos do bicho, que nos encarava, os olhos fundos. As crinas. Um relincho e os cascos; o cavalo retomou o passo, lento — e sumiu.

O resto da viagem foi tenso, silencioso, como se muita coisa tivesse acontecido depressa demais. Quando entramos na cidade, os olhos fundos do bicho ainda voltavam, um par de túneis sob um viaduto, vazios, a madrugada de São Paulo: fui internada com uma infecção no rim. Precisei operar e dois dias depois, por causa de complicações, sofri outra cirurgia. Passei uma semana triste, no apartamento, sem poder andar, até que a Mari teve a idéia de reunir os amigos na casa da praia. Disse que seria bom pra mim, o verão está chegando, as noites têm um vento doce.

Os outros acordam perto das dez. O Digo, basta o sol entrar, ele se mexe, não consegue ficar na cama. Levanta, põe a bermuda e sai pro mar. Enrolada no lençol, eu tento me espreguiçar, mas a cicatriz estica, como se me abrisse um buraco. Tomo um chá, caminho até a varanda e a casa vai ficando vazia. A Lóli e a Ju acenam da escadinha; a Mari passa de biquíni, óculos escuros, levando uma toalha. O pai da Mari é arquiteto. Foi ele quem projetou a casa — o jardim na frente, com uma árvore grande, as samambaias, os canteiros bem-cuidados. A varanda é de tábuas brancas, metodicamente descascadas. Tudo o que parece casual, aqui, é resultado de minuciosas operações: o ar de velho dos móveis, a ferrugem dos remos que decoram a entrada, as lâmpadas sem lustre. Passo a tarde na poltrona de palha, olhando o jardim, tentando ler (um livro sem graça que a Lóli disse que era o máximo, sobre a importância do sono para uma vida feliz) e penso que no mar, lá na frente, nunca acontece nada — quando muito, barcos, mulheres gordas, os catadores de marisco. As ondas são todas iguais, nem fracas nem fortes. Me programo pra não esquecer o horário dos antibióticos, os comprimidos pra febre, mas quase sempre me distraio e o alarme do celular vem me encontrar sozinha num parque, às quatro da manhã, depois de me despedir do Digo e das meninas, me sentindo protegida da vida que tinha nos escolhido e que talvez pudesse ser outra. Mas que não seria. As fugas, os bares, o parque à noite. Chegava uma hora que isso tudo envelhecia também. 

Lá pelas três, o Cao entra — é assim todos os dias, desde que chegamos — e começa a preparar o almoço. Ele some pra cozinha, depois volta (trazendo os copos), some, depois volta (a pilha de pratos). Quando eu penso "garfo", ele surge com um pote de açúcar. Os olhos fechados, eu me concentro: "guardanapo, salada de tomate", e a mesa da varanda se cobre de pão, colher, jarra de suco. Eu nunca adivinho (salmão com gengibre, me diz o Cao), e os outros começam a chegar. Primeiro o Alê, que estende a bermuda numa pedra, depois a Lóli, com o biquíni de zebrinha, segurando os chinelos cor-de-rosa, morta de fome. Os dois se revezam na ducha do jardim, rindo, falando alto — que o mar estava ótimo, que as gaivotas ficam na parte deserta, do outro lado, que a Mari era louca, ficar torrando daquele jeito, naquele sol, que a ducha está quente, que a ducha está fria, que lá na ponta, no costão, o Pedro tinha juntado um monte de tralhas. O Digo encostou, com o maior cuidado, a prancha num canto; a última a chegar foi a Mari. Largou no degrau as raquetes de sebastopol e pediu pro Alê passar hidratante nos ombros dela. Só faltava o Pedro. Um monte de fios, tábuas. Lataria velha, de máquina de lavar. Umas roldanas — a fome cresceu e resolvemos começar sem ele. Ninguém sabia explicar.

O Alê disse que de longe aquele monte de ferro-velho parecia uma torre, um negócio alto mesmo. "Ele trouxe tudo do terreno baldio que fica perto da estradinha", falou. A Lóli jurava que tinha visto um motor. A Mari e a Ju tinham ficado do lado de cá, tomando sol (o rosto escondido entre os cotovelos), e não sabiam de nada, não tinham visto ninguém. Bem cedo, o Cao foi visitar um amigo que trabalhava na cozinha do Bucaneiro Inglês, um hotel lá nas pedras. No caminho, viu o Pedro agachado, na frente das tralhas — latas de tinta vazias, enferrujadas, vigas de madeira. "Ele olhou pra mim daquele jeito, me fez engolir a risada, nunca dá pra saber quando o Pedro tá brincando ou não". A Lóli jurava: vi um motor. O Alê, com a boca cheia de melancia, sugeriu que fôssemos até a praia, ver a coisa de perto. Ninguém se animou muito. A Mari e a Ju se entreolharam, o Cao bocejou.

Passei o resto da tarde pensando naquilo: as quinquilharias na praia, os fios ligando a areia e o alto da torre, cabos de transmissão, muros de lata. Sozinha (os outros tinham entrado, estavam dormindo), eu quase podia ver o amontoado de tralhas. Agora imaginava uma fortaleza: o Pedro no meio das carcaças, concentrado no menor dos barulhos, a ameaça de um caranguejo, o desenho das gaivotas. Se as pontadas fossem um pouquinho mais fracas, se a dor não incomodasse tanto... Pensei em levantar, atravessar o jardim, ir até a praia. De longe, a máquina grosseira se reduziria a uma velha caixa de ferramentas. Mas eu poderia acenar, um aceno breve. Olhei o céu. O vento tinha mudado e as nuvens pendiam escuras, chegavam com as náuseas, o frio, a testa úmida, um breu de tentáculos, peixes, arraias sangrentas. O corte não estava completamente fechado e de tempos em tempos afundava em uma mistura de sangue e água turva. Cortei a gaze, as fitas adesivas. A primeira pancada de chuva sacudiu as vidraças. No branco do curativo eu via o Pedro, entrincheirado, se apoiando nas ripas de ferro, a água entrando pelos sapatos. O abrigo tremendo.

Gritei o nome do Digo — o quarto fica bem atrás da varanda. Gritei de novo, mais uma vez. Ele apareceu na porta, esfregando o rosto, com cara de sono. O Pedro ainda não chegou, eu disse, e já é tarde. O Digo sentou, olhou pro jardim: “Ele deve ter parado no bar do meio, deve estar esperando a chuva passar.” Caía um temporal. Os trovões apagavam o mar, colocavam as ondas numa caixinha de música, dentro de um bolso, dentro de um capote. Tem razão, pensei, o Pedro deve estar no bar do meio, esperando a chuva passar, só isso. Brilharam relâmpagos verdes e frios, claros demais. Na mesa, o Digo cortava o baralho, tirava uma carta de cima, outra de baixo, embaralhava, tirava uma carta de cima, outra de baixo, sem vontade, automático. Passava das oito horas e ficamos assim não sei por quanto tempo, carta de cima, carta de baixo, em silêncio, esquecidos um do outro, o Digo e as cartas, eu e a noite do jardim, ouvindo a água descer pela calha, bater no telhado. Pensei que o repelente estava no fim e que talvez fosse prudente comprar outro; que o Cao tinha prometido preparar arroz com mariscos; e que minhas unhas estavam horríveis; que quando isso tudo acabasse, eu me internaria num spa, com cremes, banhos e massagens.

Até que o barulho veio enorme, inesperado, descomunal.

A casa tremeu. Na poltrona, enroscada num calafrio, tentando escapar, vi as cartas caírem e o Digo de pé, congelado, olhando pra cima; o céu banhado em fogo. Os outros chegaram correndo, escorregando. Ficamos ali, como se uma onda gigante tivesse nos engolido. Na praia, a chuva pateava, dura e lamacenta, ouvíamos um comboio barulhento de vozes, cascos, ordens numa língua estranha. As nuvens flamejaram — depois, as explosões. Aviões cortaram o céu, descarregando luzes sobre as montanhas. Na água, um clarão de faróis. A Mari começou a chorar, correu e nos abraçamos num canto. Do meio do jardim, uma sombra avançou, trêmula, ofegava e se arrastava, quase sem forças. É o Pedro!, gritou a Lóli, é o Pedro! Ele mancava, o sangue sujo escorrendo pela cabeça. Gemia e sangrava. Não dizia nada, tinha as roupas esfarrapadas, cobertas de pólvora, a boca e os olhos pendiam moles. Atrás dele, homens a cavalo; a tropa brutal abria caminho pisoteando os canteiros.

 

 

[Conto publicado na revista piauí, junho, 2007]

 

 

 

  

 

O Bruno se debruçou sobre a formiga e cercou-a com o anel do Cara Morto. Ela ficou paralisada por um instante, olhou pra cima e escalou o obstáculo com um muxoxo pedante, sem saber que isso lhe custaria a vida. A tragédia era inevitável, eu tinha certeza: se o Cabelo um dia atravessasse (com um muxoxo pedante) o buraco do arame para explorar a parte secreta da plantação, aconteceria alguma coisa terrível — o Bruno pegou o isqueiro e eu olhei pra cima.

Quando tornei a olhar, a formiga gigante tinha morrido em um incêndio criminoso que dizimou também alguns palmos de mato. O Bruno me deu o isqueiro, "pra você".

No duro. Foi a primeira vez que o Bruno me deu alguma coisa. Fiquei tão feliz que até me esqueci da formiga carbonizada. Apertei o isqueiro contra o peito com a respiração de quem sobe à superfície para esquecer o que continua batendo e arranhando lá no fundo. Além do mais as pessoas são feitas de cabeça, tronco e coisas — as coisas se misturam às pessoas, as pessoas se misturam às coisas, confundindo tudo. O isqueiro, por exemplo, era um pedaço vivo do Cara Morto (ou ele era um pedaço morto do isqueiro).

"Encontrou alguma coisa?", o Bruno me perguntou enquanto sacudia um bocado de terra do tênis. Fiz que não com a cabeça, contrariado. Me segurei para não falar das mentiras dele (porque eu sabia de tudo: ele não tinha vasculhado os arredores do laguinho coisíssima nenhuma), muito menos das suspeitas de que o agente Cara Morto pudesse estar vivo. "Não me olha assim", pediu o Bruno, "nada na área do laguinho também", e passou a caminhar em círculos. Tinha os passos pesados de quem sobe uma escada correndo. Ele estava agitado ("você viu o Cabelo?") e eu sabia que escondia alguma coisa. Mostrei um naco de terra para me esquivar da resposta, a terra que eu havia coletado durante todo o dia e armazenado num recipiente especial e indestrutível (também chamado de bolso).

Ele devolveu a encomenda com um movimento zangado e muita poeira se perdeu no espaço entre os nossos dedos. Eu queria mesmo entender o Bruno. Ele parou de rodear a árvore e resmungou, antes de me dar as costas: "Não, você analisa essa amostra, tem uma peneira na casa da árvore, me avisa se encontrar qualquer coisa". Quando ele saiu andando, eu fui atrás. O Bruno deu meia-volta, parou e ergueu a mão para me dizer algo, depois desistiu e continuou a caminhar. Estava indo para o sul, na direção da zona proibida.

Então: se me chamam de formiga e o Cabelo é um tatu-bola, não há como ignorar o fato de que o Bruno é um besouro. Como todos sabem, os besouros são os animais mais inteligentes do reino dos seres vivos. Os besouros carregam uma sabedoria quinze vezes maior que o peso deles, por isso vivem com dor de cabeça. Eles têm uma carapaça tão resistente quanto a testa do Bruno — ninguém entra, ninguém sai. Segundo a comunidade científica, "não há como entender o besouro, senão sendo-o", o que o torna também o bicho mais triste desde aquela lagartixa caolha que encontramos no laguinho há uns dois verões.

Talvez encorajado pelo isqueiro no meu bolso de trás, comecei a seguir o Bruno escondido, imaginando que eu era nada mais que uma formiga gigante.

Tentava me guiar pela visão dos pés dele, já que a plantação tinha me passado em altura havia muito tempo. Ia andando de cócoras sem tirar os olhos daquele par de tênis a dezenas de milhos na minha frente; não queria que o Bruno virasse em alguma esquina e eu não soubesse pra onde. Apertei o passo. Eu engatinhava para me desviar dos galhos e folhas, enquanto ele caminhava reto e tranqüilo como um representante da alta nobreza búlgara. Ainda não sabia se a partida do Bruno era uma brincadeira ou se já era hora de começar a me apavorar, também não sabia se ele ia ficar furioso quando descobrisse que eu tinha desobedecido ordens expressas de ir buscar uma peneira. Ora, tinha sido bastante justo livrar-se de um amigo mandando-o ir atrás de uma peneira a quilômetros dali. Sem dúvida, tinha sido um gesto muito elegante despachar alguém com a missão de analisar um monte de terra ou procurar um Cara Morto. Mas eu tinha um isqueiro no bolso e também não pretendia jogar limpo (ajeitei na cabeça meu chapéu imaginário apenas pelo efeito dramático da coisa). Quem sabe o Bruno quisesse ter alguém atrás dele. Isso explicaria por que agora ele tinha começado a contar os passos em voz alta (cento e doze, cento e treze) e de repente parou, provavelmente pelo efeito dramático da coisa.

Eu freei também, com as mãos na terra. Tentei enxergar melhor através das plantas e podia jurar que ele estava pensando com muita força, na medida em que é possível saber quando alguém parou deliberadamente para pensar (com muita força). Então ele continuou: menos cento e oitenta e sete, menos cento e oitenta e seis, menos centeoitentaecinco. Me deu um alívio saber que o Bruno ainda era o Bruno, já que estava fazendo uma contagem regressiva bastante precisa de quantos passos faltavam para completar trezentos. Mesmo assim, a voz dele estava diferente. Por que é que ele não contava nada pra gente?

Meus joelhos raspavam na terra e com a respiração presa eu pensava numa palavra de três sílabas quatro vezes. Depois soltava o ar e voltava a pensar (agora de peito vazio): "cavalo", "barulho", "corrida". Estas eram as minhas preferidas, mas tinham outras. O Chibo falava para eu respirar assim quando estivesse confuso; pulmão cheio, pulmão vazio. Dizia que os intervalos ajudavam a desembaraçar as idéias e desentupir tudo na cabeça da gente. Era verdade, aquilo até que dava certa ordem às coisas. Mas os vazios se enchiam de "cavalo", "barulho", "corrida" e de toda uma turma de velhos apostadores reunidos em volta de um televisor amarelo, gritando com um punhado de dinheiro nas mãos; uma encrenca. Para ser sincero, por mais que meu irmão insistisse, eu quase nunca respirava desse jeito. Porque eu gostava de ser do contra. Mas agora que a plantação avançava sem o Chibo, eu me surpreendia repetindo as manias dele. Cutucar as feridas do joelho, por exemplo — como ele gostava disso. Eu que sempre fui contra fi car mexendo no sangue seco (porque dói), passei de uma hora para a outra a tirar todas as casquinhas dos machucados. Eu tinha medo de que a ausência do Chibo não fosse notada, principalmente por mim. Coloquei um pedaço da ferida na boca e senti um gosto amargo, de cor vermelha; um irmão é um tipo estranho de amigo. É como o nome que a gente tem. Passamos muito tempo sem ligar pra ele, mas de repente a gente nota que tem um nome e o repetimos antes de dormir um milhão de vezes e... quando abri os olhos o Bruno, nenhum sinal do Bruno. Eu tinha perdido a pista dele, mas a zona proibida devia estar perto. Pela escotilha do comando não dava para enxergar nada, o mato empunhava lanças e espadas, riscando e apagando o caminho. Um sopro de corrente marinha me mordeu o rosto. Tirei o isqueiro do bolso e decidi que o maior incêndio da história da plantação estava para começar.

 

 

 

[Trecho de O verão do Chibo (Alfaguara, 2008), em parceria

com a escritora e jornalista Vanessa Barbara]

 

 

 

 

 

 

1.

 

Os vidros separavam as cabines, elas eram numeradas, e enquanto esperava o clique do outro lado, a voz do pai ou da mãe, Lucio observava o homem de bata colorida que falava de pé três aquários à esquerda — o homem alto, negro, mexendo os maxilares. É de algum lugar da África, pensou. A boca grudada no telefone, parece que fala pra dentro, ouve por longos minutos, sem dizer nada, só concorda, acenando com a cabeça. Na calçada em frente, a tarde tinha acabado; da cabine seis atravessava os vidros uma voz de mulher, rouca, numa língua nova, provavelmente a língua dos turcos. Mirko havia dito que aquele era o bairro turco. "Alô, mãe?". Lucio chegara a Berlim pela manhã, visitou Alexanderplatz, passou por monumentos cujo nome ignorava. "Dois ou três mil, acho que sim, o suficiente". Tinha procurado a torre de TV, almoçou numa praça com um chafariz, perto de uma estátua, na frente de um prédio que devia ter uns quinhentos anos. "Não fui ainda. O curso vai bem. Praticamente fluente. Sou quase um francês! E Paris, nossa, é um assombro". Os cabelos despenteados e um caderno debaixo do braço, Lucio prestava atenção na fachada do supermercado do outro lado da rua. Respondia automático às perguntas da mãe — "tá", "pode deixar". O homem de bata seguia falando quase sem mover os lábios, deve estar se desculpando, encarou Lucio e aquilo era realmente desafiador: ele e o africano de bata, separados pelos vidros, duelando. Lucio encontrou um ponto, um adesivo no vidro, desviou os olhos: "Tá, qualquer coisa eu procuro ele. Se você depositar amanhã, consigo sacar amanhã mesmo. Tá. Manda um beijo pra ele. Outro".

 

Mirko acenou da única janela acesa, a mais alta de um prédio de quatro andares numa espécie de pequeno condomínio. Pediu pra que Lucio esperasse. Lucio ficou no pátio, no centro do quadrado de prédios, estava com dor nas costas e deixou a mochila no chão. Ouviu um eco (primeiro longe, sem forma), são os degraus, é um par de tênis e há intervalos entre os lances de escada; divertiu-se imaginando as paredes cortadas, como numa grande casa de bonecas. Mirko era amigo de um amigo. Lucio não o conhecia, só tinham trocado alguns e-mails. Mirko disse que ele poderia ficar o quanto quisesse, mostrou o apartamento ("aqui é o banheiro, a cozinha; tem um colchão na sala"). Lucio largou de novo a mochila, perto do sofá. Não falava bem inglês; entender era mais fácil. "Moro sempre nos últimos andares", Mirko disse, "nos apartamentos mais altos". O barulho de um copo, um talher, alguém caminhando, Lucio se aproxima da janela da sala, olha a vista: deve ser fácil enlouquecer, à noite, quando se vive sozinho. "O prédio da frente costumava ser maior", interrompeu Mirko. "Uma bomba durante a guerra decepou a parte de cima, no térreo morava um alfaiate judeu, ele ficou refugiado ali, não podia sair. Hoje, a família do alfaiate é dona do conjunto e aluga os apartamentos; o preço é baixo, a vizinhança até que não é má".

Desceram o quarteirão, o frio fazia Lucio encolher-se no cachecol, nas luvas, os lábios desaparecendo. "E isso nem é o inverno ainda", Mirko riu. "No inverno Berlim é outra cidade, fica linda e irreconhecível por causa da neve". Mirko parou na frente de um prédio escuro e manchado. Tocou a campainha do interfone. A primeira impressão é de um lugar residencial, não há letreiro, nem barulho. No escuro, subiram a escada, dobraram num corredor, alguém atrás do olho mágico abriu a porta. Entraram em uma sala esfumaçada, com música, mesas, pessoas bebendo e falando (conversam incrivelmente baixo). A janela, grande e horizontal, apontava para um viaduto. "Pede uma dessas salsichas", disse Mirko, mostrando o cardápio. Sentado, os cotovelos no balcão, Lucio fez sinal para a garçonete, balbuciou "água tônica"; indicou a figura no papel, uma salsicha com curry, enrolada num pão fino e cebolas. Mirko pediu uma bebida que tinha um nome que Lucio não entendeu. Também não entendia por que as pessoas bebiam. Não conseguia. Odiava cerveja, e depois do primeiro gole o vinho sempre lhe parecia amargo, sentia a garganta fechar. "Viajou muito até agora?", Mirko quis saber. Lucio desenlaçou o cachecol do pescoço. "Não, só Londres, fiquei mais em Londres. Antes estive em Paris, mas me senti morto, então decidi sair. Conheci uma menina, uma inglesa, ela disse que me apresentaria um pessoal em Londres, uma turma de desenhistas. Cara, ela era linda. Na Inglaterra a gente se encontrou algumas vezes, depois ela sumiu, acho que voltou pra França".

 

Uma avenida larga, ela fica mais larga à noite, atravessar leva meses, anos, séculos. Depois do bar, Mirko e Lucio ficaram assim, andando a esmo pela cidade. Prédios, parques, pontes. "Conheci o seu amigo, o Antonio, no ano passado, quando fiquei uns dias em São Paulo", Mirko tira um cigarro do bolso. "Eu fazia parte de um grupo de performance. Ganhamos um prêmio do governo pra fazer intervenções em museus da América do Sul". A palavra "intervenções" soa importante. Então era aquilo que os jovens vanguardistas europeus faziam, "intervenções". Lucio pensou que se morasse na Alemanha poderia ganhar uma bolsa para desenhar — e apenas desenhar. Passaria as noites nos bares, desenhando, conheceria mulheres formidáveis. Não precisaria trabalhar. De certa forma, agora também não precisava. Tinha abandonado o curso de francês, em Paris, justamente porque achava que era perda de tempo. Ora, estava na Europa. Não poderia gastar suas energias em salas de aula. Mirko era um artista de verdade, Mirko tinha os cabelos nos ombros, uma elegância de pássaro. Certamente freqüentava os lugares certos, as pessoas certas. Atravessaram uma praça, Mirko perguntou: "até quando você fica aqui?". Lucio pensou em dizer que nunca mais deixaria Berlim, tinha encontrado o seu lugar no mundo. Mas só conseguiu gaguejar uma frase amassada: "Acho que, mais uns dias, depende". "Hm, é que estou planejando uma viagem para o interior, uma cidade nas montanhas. Não quer vir?".

 

 

[Esboço do início de um roteiro de graphic novel,

ainda sem título, a ser publicada em 2009]

 

 

 

 

 

 

 

Em Londres, mulher-tapete celebra o Cara

 

Não sobrou nenhum pino. Enquanto a gerente de vendas Lisa Jones, 25 anos, vibra e abraça as amigas, Will Russell, 31, aperta o botão da máquina e, sem remorso, invalida o strike. "Pisou na marca!", avisa, fulminante. Lisa tenta se justificar, mas Russell se mostra irredutível: "Isso não é o Vietnã, dear. Isso é boliche, há certas regras". O pessoal em volta ri. A frase é do filme favorito de Russell e das 500 pessoas que lotam as 28 pistas do Tenpin Bowling, no bairro de Acton, em Londres: O Grande Lebowski, de Ethan e Joel Coen.

Em 2002, o americano Will Russell e um amigo, Scott Shuffitt, 34, tiveram a idéia de criar uma festa para celebrar a comédia noir dos irmãos Coen. A primeira edição foi realizada na cidade dos dois, Louisville, Kentucky, num boliche cujos donos eram batistas. Segundo Russell, no local não era permitido beber ou blasfemar, "o que, convenhamos, atrapalhava. Afinal, no filme os personagens falam fuck (ou alguma variação) exatamente 251 vezes". Ainda assim, apesar da compostura evangélica, os 35 amigos convidados para a maratona — que incluía a exibição do filme, concurso de fantasia e competição de perguntas e respostas inspirados no Grande Lebowski — se multiplicaram, e a festa acabou atraindo 150 lebowskianos ortodoxos. Um ano depois, a revista americana Spin indicava o festival como "um dos dezenove eventos mais legais do verão". A terceira festa, em junho de 2004, juntou mais de 4 mil Achievers — ou Conquistadores —, como se autodenominam os fãs, numa das muitas piadas com que se divertem. Reuniões já foram organizadas em Seattle, Los Angeles, Nova York e Las Vegas, e neste mês de março, em Chicago, a festa comemora os dez anos de lançamento do filme.

O Grande Lebowski chegou aos cinemas na primavera de 1998 e foi um grande fracasso. Crítica e (algum) público se perguntavam que raio de história policial à la Raymond Chandler era aquela — são os próprios irmãos Coen quem reivindicam essa filiação. Em vez de um detetive, quem seguia as pistas e tentava desvendar o mistério era um hippie de meia-idade, desempregado, pacifista, ex-ativista político, fã da banda californiano-ecológico-antiguerra-do-Vietnã Creedence Clearwater Revival e jogador de boliche. Seu nome era Jeffrey Lebowski, ou melhor, The Dude, como preferia ser chamado: "O Cara".

Interpretado por Jeff Bridges, Dude é um sujeito tranqüilo que passa boa parte do filme metido num roupão de banho, fumando maconha e bebendo white Russian, um drinque para destemidos à base de licor de café, leite e vodca. A paz do Cara é desafiada quando o confundem com outro Jeffrey Lebowski, um velho milionário cuja voluptuosa namorada foi seqüestrada porque deve dinheiro a um magnata da indústria pornô de Los Angeles. Para alegria de Russell e Shuffitt, o filme traz também uma gangue de alemães niilistas, uma marmota selvagem e aforismos sem juízo ditos por um caubói de bigode e voz profunda. Verdades eternas do tipo "Um dia agüentamos a barra; no outro, a barra cai em cima da gente".

O casal Sam Chase, 30, e Frances Macklon, 27, saiu de Brighton, no sul da Inglaterra, para vir à Lebowski Fest de Londres. Ele está vestido como uma grande fita K7. No seu lado A, lê-se: "Creedence Clearwater Revival"; no lado B, "No fucking Eagles music", referência aos Eagles, banda que o Dude abomina. Frances está fantasiada de tapete. "É uma homenagem", explica ela, por entre os mosaicos de camurça que emolduram o seu rosto. "No filme eles roubam o tapete da sala do Dude, mijam no tapete". Dude é muito apegado a esse tapete e passará o resto do filme tentando recuperá-lo. Brandindo uma bola de boliche, Frances protesta: "Essa agressão não vai ficar assim, man!" (Mais uma frase do Cara, no caso, em alusão a um discurso de Bush-pai contra Saddam Hussein. O Grande Lebowski se passa em 1991, em plena Guerra do Golfo.)

Passa das onze da noite. O quiz, com perguntas do calibre de "Qual o número de pistas do Hollywood Star Lanes, o boliche do filme?", está prestes a terminar, abrindo alas para o concurso de melhor fantasia. No bar, um imprevisto: o leite acabou. "Isso é realmente undude" ("anticara"), resmunga Frances Tapete. Sem leite, nada de white Russians. "Foram os irlandeses, bastardos!", amaldiçoa Russell. "O gerente do boliche subestimou o fígado deles". Uma correria ao supermercado mais próximo restabelece os estoques da bebida. "É, parece mesmo um encontro de fãs de Jornada nas Estrelas", concorda Scott Shuffitt. "A diferença é que aqui nós temos mulheres e álcool, e ninguém fala palavras do tipo 'klingon'".

Esse culto, responsável pela sobrevida do filme, traduz o amor de gente como Russell e Shuffitt pelo personagem de Jeff Bridges. "O Dude é uma pessoa verdadeira, simples, sem máscaras. Põe a amizade acima do dinheiro e do poder. Ele é só um cara, mais nada", explica Russell, no melhor estilo ONG. "Para muita gente, o Dude talvez seja um perdedor, porque não se importa com sucesso e dinheiro. Mas para nós ele é um herói. Um cara que não se vendeu ao sistema e não está trabalhando oito horas por dia numa empresa. O que ele quer é tomar banho de banheira, jogar boliche com os amigos e, de vez em quando, ajudar uma lady-friend a procriar. Não tem nada de errado nisso".

O vencedor do concurso de fantasia ganha um troféu dourado com asas. O eleito é um grego caracterizado como o homônimo de Dude, o velho milionário Jeffrey Lebowski, na cadeira de rodas que usa ao longo de todo o filme. Antes do fim do evento, ainda dá tempo de um homem ficar nu em plena pista de boliche. "É por isso que eu amo essa festa!", diz Shuffitt, quase emocionado. "Ela me lembra que eu sou apenas um cara tentando pegar o meu tapete de volta".

 

 

[Reportagem publicada na revista piauí, março, 2008]

 

 

Emilio Fraia (1982). Escritor e jornalista. Escreve para as revistas piauí e Trip, entre outras. De 1999 a 2005, editou a revista literária Givago. O verão do Chibo (Alfaguara, 2008) é o seu primeiro livro.