Estilo

(de uma entrevista com Tom Waits)

 

I.

 

A maneira pela qual

você faz

uma coisa

é a maneira

pela qual

faz todas as coisas

 

Você lava o carro

do mesmo jeito que

corta o cabelo

anda a cavalo

cria seus filhos

 

Depois dos filhos

todo o resto

fica (muito) fácil.

 

 

II.

 

É como pescar

ou caçar passarinhos

Você cava um buraco

na parede

e espera

que alguém

ou alguma coisa

cave de volta

na sua direção

 

 

III.

 

Como faço

para ter uma voz

assim grave?

 

Grito com a cara no travesseiro

Grito com meus filhos

 

 

[Inédito em livro]

 

 

 

 

 

 

Quando o amor recupera a visão

 

Tão logo alguém se aproxima

joga-se no chão

finge ter sido espancado

roubado até o último vintém

 

Se o ajudam a erguer-se

abraça a alma caridosa

esvaziando-lhe a bolsa

 

O maligno o arrasta

através do fogo

através do vau e do redemunho

do lamaçal e do charco

põe facas em seu travesseiro

ratoeiras em sua sopa

 

Ele também

não faz por menos:

bebe pinga com o cachorro

joga dados viciados

cede o corpo a proxenetas

 

É fustigado nos albergues

nos hospitais públicos

e posto na rua a pontapés

quando o amor

recupera a visão

 

 

 

 

 

 

A imprecadora

 

Sou puta, sim, puta e anti-social

mas chupo o dedo sem unha

com boca de pelúcia

 

Podem vir, que venham

todos os síndicos e o padre viado

fabricante de mendigos

o importador de anões

 

Pode vir a negranhada

os homens-fêmeas

a indiarada, os baianos

judeus, nordestinos

o lixo, a bosta, o esgoto

 

Passaram antraz na minha boca

na minha gengiva

torturaram meu rosto

minha arcada dentária

seios nádegas olhos nariz

queixo pescoço garganta

cérebro ânus vagina

comeram toda a carne do meu corpo

vodu na boca lábios gengiva

 

Enfia o farol na buceta

da puta-mãe de vocês

no cu da puta vaca

da tua mãe-esgoto

 

Sou eu aqui

dormindo na rua

saia verde camisa preta

Todos precisam de mim

 

 

 

 

 

 

Tardo

 

Foi quando notei que a linha

de implantação dos cabelos

nela havia recuado

até o alto do crânio

o que marcava ainda mais

as feições masculinas

o avantajado nariz

 

Os dedos ali na fronte

numa pressão insistente

contra o que parecia

sinal de dor ou cansaço

as unhas muito polidas

sobre a testa oleosa

a distrair nosso olhar

 

Tudo questão de segundos

o tempo de pensar

que algo não ia bem

átimo em que se capta

um som de osso quebrado

cheiro de fruta vencida

 

até que outro passageiro

mais atento e comovido

tocou-lhe o braço e indagou

se ela estava bem

se carecia de ajuda

 

 

 

 

 

 

Maligno

 

marcaram a extração do rosto

 

Tirando o falso incisivo

os dentes na gaze não sangram mais

 

Moscas brotam do ar

e voam baixo

mareadas

 

Por trás da lente rebrilha

o olho do taxidermista

 

Tudo em breve será mais simples:

guardaremos os sapatos

cobriremos os espelhos

e o quisto crescerá no vazio

 

 

[Do livro Baque, 2007]

 

 

 

 
 
 
 

Mais magro

 

Mais magro

Meu amigo está mais magro

Volto a encontrá-lo

dois ou três verões mais tarde

e chego mesmo a dizê-lo:

Você está mais magro.

Problemas de intestino...

responde-me esquivo

... estive pior, agora

voltei a engordar.

Não peço detalhes

mas vejo o ombro mirrado

entre as alças da regata

Evito tocá-lo

pois a mera proximidade física

parece estranha agora

que meu amigo está mais magro

 

Novamente juntos

caminhamos pela orla marítima

Eu lhe recito algum verso

ele me ensina outro insulto

e há quase alegria de trégua

não fosse o fato

dele estar mais magro

 

Se ainda ontem tocassem

os telefones insones

na barra da madrugada

e meu amigo dissesse

palavras de testamento

eu sairia correndo

para deitar-lhe compressas

na testa repartida

 

Se fosse eu o afogado

dentro da onda invisível

de bílis, lua e silêncio

ele pagava o resgate

limpava o sal de meus cílios

me devolvia em segredo

sobre a toalha mais limpa

 

Mas hoje estamos exaustos

um dreno em nossa bondade:

minha boca tem dentes

e meu amigo

está mais magro

 

 

 

 

 

 

Mãe

 

Então me informaram

que os pertences da paciente

um par de brincos mais um colar

deveriam ser retirados

poisquem se fira

ou fira os outros

em tal estado

 

Minha mãe suplica:

precisa de talismãs

pra passar a noite fora de casa

assim ficará protegida

O Inimigo não a tocará

 

Expliquei-lhes que não era caso

para um tal rigor

Minha mãe não era disso

estava muito triste

e confundida

 

A funcionária assentiu a contragosto

 

Devolveram-lhe as bijuterias

assinei o termo de responsabilidade

e ainda pude ver os enfermeiros chegando

antes de ser forçado a sair

 

 

 

 

 

 

Pai

 

Desempregado há três anos

no país do futuro

 

Batendo perna nas ruas

com o mostruário de meias

 

Adivinhando

o signo da morena

o ascendente da loira

 

Jogando xadrez

assobiando um samba

colecionando borboletas

descobrindo a fórmula exata

da tinta para balão

(tinta que não racha

sobre a pele inflável)

 

Contra as recomendações médicas

filando cigarro

fazendo piada com a perna

que pode ser amputada

louvando as próteses modernas

dizendo que morre antes disso

que não vai dar trabalho

que some de casa

vai pro asilo

 

Meu pai de novo ao volante

guiando o negro Landau

 

O velho e bom batmóvel

rodando sem freio ou cinto

o vento de Gotham no rosto

minha cabeça no banco de couro

 

Meu pai cantando alto

limpo e bonito como ele

numa estrada clara

sem pedágio

ou limite de felicidade

 

 

 

 

 

 

Prometeu

 

o fogo roubado

não é senão

a branquinha humilde:

brasa solitária

entre os carvões da vida

 

a ira divina

é pouco mais

que a recusa do garçom

em servir

a enésima dose

fiado

 

o castigo

este sim

tem a grandeza do mito:

a cirrose vulturina

com a família nas garras

da Previdência

 

 

 

 

 

 

Gerenciamento anti-stress

 

Imagine um córrego

pássaros cantando

e o vento fresco da montanha

no céu de um azul limpíssimo

Aqui nada pode aborrecê-lo

Ninguém alcança esse lugar secreto

sem passagem para o mundo

 

A queda d'água

enche o ar de sons gentis

A água é transparência absoluta

 

Agora, sim, pode-se ver o rosto

daquele cuja cabeça

você comprime sob a água

 

 

 

 

 

 

Calçada

 

depois que ele

entrou no prédio

e fechou a porta

a calçada partiu novamente

a toda velocidade

 

conduziu o vento

até a estação mais próxima

contornou cinco mendigos

e os respectivos cachorros

lavou o chão do último bar

 

foi morrer muito adiante

no muro da praça deserta

onde a fome devasta a fronte

de um camundongo cego

 

 

[Do livro Novo endereço, 2002]

 

 

 
 
 
 

A rosa púrpura do Cairo

 

One thing is certain and the rest is Lies.

The flower that once has blown for ever dies.

Omar Khayyám / Edward Fitzgerald

 

Ontem nalgum

(deu na tevê)

subúrbio do Cairo

circuncidaram Hedla

aos dez anos

Sem medo a jovem

abriu as pernas

(para a lei

não para o amor)

e o cutelo

sem éter

seu clitóris

mastigou

 

Pode a família

erguer-se em cantos

crescer em preces

de vão louvor

Pode a família

o comércio

a imprensa

contra o cio

balbuciar

Pode o camelo

gastar a lágrima

que há meses

vinha poupando

Pode o deserto

alagar

sem que Hedla se levante

 

Três dias na cama

três dias para que se erga

e feche as coxas

após o saque

(caso não morra de infecção)

 

Três dias

para que o mundo

esqueça

o que se faz

às meninas pobres do Cairo:

deusas eunucas

nos haréns do aquém

 

 

[Do livro Sistema de erros, 1996]

 

 

 

(imagens ©levko)

 

 

 

  

 

Fabio Weintraub (São Paulo-SP, 1967). Poeta, editor, ensaísta e psicólogo. Publicou Toda mudez será conquistada (1992); Sistema de erros (1996, Prêmio Nascente 1994); Novo endereço (2002, Prêmios Cidade de Juiz de Fora/Murilo Mendes 2001 e Casa de las Américas 2003); Baque (2007).
 
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