O BEIJO

 

sei que faz muito bem

comer um poema toda manhã

caverna-boca aberta a boca é uma caverna

e vale repeti-la e abrir assim caverna

a fim de engolir o vento

este que passa louco disfarçado.

O vento tem cara de reginaldo

tem uma cara também de alicinha

alimenta

e enche de vazio o que já está vazio

e o vazio se torna mais vazio ainda.

Boca minha boca dentro tem um lago

de águas supercristalinas, sonhos fósseis

almas de estalactites

isso tudo ninguém vê

a boca esconde e fecha

e só por meio deste arroto explícito

faz-se perceber das maravilhas

a boca cheia

a boca alheia quanta boca uma caverna tem!

 

 

 

 

 

 

PELA FRESTA

 

No estacionamento há um homem

ele guarda os carros de toda a vizinhança

ele fuma e passa a noite sentado no vazio.

Na árvore da rua um bem-te-vi se aninha,

e dorme e amanhece e grita e canta desesperado no vazio.

Na esquina encolhe-se um cachorro,

ele não late, não corre,

não tem medo dos carros e passa o tempo no vazio.

 

 

 

 

 

 

O LOBO

 

Um lobo-guará

perambula

pela mata

cara vermelha

olhos fugidios

sabe que é de noite

mesmo assim

encrava-se no

escuro.

Deixa marcas

da sua urina

em cada

árvore

ramo

ou pedra

e em cada

caminho

quer dizer

te amo, odeio,

te renego.

Quer também

ser conhecido

pelo odor

quer ser

ouvido.

Este lobo

é um poeta

escreve

versos

com seu

líquido.

Quer ser lido

decifrado

quer ser

reconhecido

 

 

 

 

 

 

BEM-VINDO

Esta é uma gruta

como aquelas grutas sagradas

toda escrita nas paredes

rabiscadas desenhadas

as figuras se desfazem

com o tempo e com as tochas

para lê-las é preciso ter coragem

adentrar o escuro mundo

de palavras gastas carcomidas

e buscar aqui sentido e fogo e também

história

Mortos desmembrados

ossos secos jazem pelos cantos

da linguagem fóssil

Cinzas dentes pedras de carvão

são restos de civilização maldita

Tudo é sombra ocre rocha

estas letras arenitos

nem os séculos transformaram

São eternos seres vivos

Enterrados muito fundo

E não basta olhar pra eles

É preciso devorá-los

 

 

 

 

 

 

CIRCUNSCRITA

 

quero

que ela fale

por si mesma

esta tarde prata

luz descendo ao longe

submundo enegrecido

que chega aos poucos

vindo do fundo.

Quero que ela fale

por si e não me engane,

desfazendo o céu e as nuvens

e as andorinhas tontas.

Que fale suas metas

suas portas, suas tripas

sem precisar de minhas

pinceladas foscas

ou de minhas letras mortas.

Que fale, fale, fale!

Se derrame às pressas

sobre as casas

joão-de-barro

e chicoteie logo

os transeuntes fartos

funcionários públicos

de cueca.

E bata e bata

e lamba as patas

das baratas

e as crianças ditas

sóbrias recatadas

e empregadas limpas

sem grinalda.

Ela

véu de âmbar

luz polar dos sonhos

Ela a tarde sangra

um sacrifício antigo.

Mesmo enjaulada

nos confins dos muros

ela grita

e me acena

e não diz

porcaria nenhuma

do que eu quero que

ela diga

 
 

DA IMPORTÂNCIA DE SER ATORDOADO

 

É tão bom bater a cabeça na parede

Diariamente

Bater a fronte, a nuca

O nariz

Até que os miolos se derramarem

Sem saber quem somos

Ou para onde vamos

Eu bati minha cabeça na parede hoje

 

Você já bateu a sua?

 

Não se acanhe

Todos batem a cabeça na parede

Tem gente que bate escondida

Uma pancada ou duas

Outros batem à vista

De todos

São estes publicamente

Batedores de cabeça

Zonzos seres atordoados

Que não vivem sem

Levar pancadas

Em seus miolos moles

 

Pois então não faça cerimônia

Bata mesmo com vontade

Até perder a noção das coisas

 

 

 

 

 

 

O MANIFESTO DO AMOR

 

Que todos tenham o amor!

Que todos amem

Em corpos, almas, espíritos.

Que cada um tenha a sua

Porção do amor.

Os corpos entrelaçados

Que sejam súbita expressão

Divina do amor —

O braço que só

Procura o abraço forte durante

O sono leve do amor.

Que todos tenham

O amor à sua porta,

Em sua cama

Rua, ou becos.

Que cada ser vivente possa

Ver o amor chegar e

Sem lhe conhecer

Dizer: te amo.

E no meio dessa noite

Amantes só sussurrem: prometa que não

Vai me abandonar.

Que todos conheçam o que é o

Amor e não receiem

Se lhes amam sem o tempo

Que se atribui ao amor.

Que uma semana seja

A eternidade inteira

Em cada beijo, olhar, palavra, abraço.

E que ninguém não se envergonhe nunca

De ser o gozo de paixão

Que se avoluma.

Que o amor faça de estranhos

Íntimos amigos

Como se o fossem

Há mil anos.

Que todos tenham o amor

Por toda a vida

E que não deixem de amar

E serem amados

 

 

 

 

 

 

POEMA RANÇOSO

 

Nas ruas encontro poemas

Versos-dejetos

verso excremento.

Na boca de lobo faminta

palavras e rimas se biodeflagram

felizmente

jogadas

das janelas dos prédios

mofadas

tem cheiro de viadutos

versos

saprófitos

versos bolores

levarão trezentos anos

para se desintegrarem.

Ao lixo não se misturam

não podem ser reciclados

apenas um pequeno toque

dos olhos

e reluzem como plásticos

monumentos

que nem os ratos

mastigam

que nem as traças

desejam

 

 
 

 

RESSUSCITA-TE

 

Procurando

A porta?

 

Eu também

 

Você e eu

Janela de árvore

Fechadura de cometa

Recinto de amianto

A paisagem

É esquisita

Somos alicesnopaísdasmaravilhas

Procurando

A bendita

Palavra salva-vida

Caída

Desmaiada

Desfalecida

Que nos salve

Que nos ressuscite

Com seu beijo

De língua

 

 

 

 

 

 

DOS LÍQUIDOS

 

desligo o rádio

declaro silêncio

então vejo 

um líquido

negro imperfeito

na xícara branca

pressinto receio

que seja café

 

há muito

não vejo o tempo

parado assim

no cafezinho

seja meio

seja inteiro

existe um desterro

um aniquilamento

na superfície

dos líquidos

e na gosma

de todos os fluidos

 

sim, paramos

o mundo

na orla do lago

na curvas do oceano

caixas d'água

garrafas, represas

tanques de praça

poças de sangue

 

 

 

 

 

 

MANIFESTO SONOLENTO

 

vamos mudar o mundo

com um vil manifesto

escrito às avessas

nesta pobre manhã fria!

recobrando as forças

vamos erigir terríveis

estandartes e palavras

des-ordem

pelo fim do agouro

pelo fim da cacofonia

pelo fim do ano

e também dos meses

vamos mudando o país

a começar pelas calças

e pela camisa

a cor do sabonete

a novela das oito

hoje mesmo

de manhãzinha

enquanto o sol

se alegra no horizonte

vamos dizer ao sol

não muito obrigado

preferimos a lua

e  muito bom senso

enquanto o café

está morno

vamos evitar

dizer bom-dia

vamos mudar tudo

principalmente

a política

que deixará de

ser doença

passando a ser

religião

pela re-democracia

pela re-beldia

pela re-velia

pela importação

de cachaça

transformemos pois

sem mais

nem menos

românticos

gigantes

tiranos

futebolistas

pastores

estadistas

poetas

professores

manequins

operários

em antigos

personagens

de folhetins

manuscritos.

Que haja luz

nas trevas

dos sonâmbulos

e dos deprimidos

dos retângulos

e dodecaedros.

Que haja luz

como devia

 

 

 

 

 

 

CIDADE

 

música atropelo

a cidade espera

 

música assobio

música estampido

 

pé de carambola

roças de cimento

espera o céu antigo

espera o céu dizendo:

somos todos

répteis volúveis

arrastando 

o tempo.

 

espera

diademas de perfumes

rosas defumadas

um sonho acalentado e

nada!

e mais nada

que se possa por nos livros.

 

estas sombras da cidade

são de graça

são terrores que se esperam

nas calçadas e na face

os postes-luz esperam

vaga-lumes e outras vagas

céu de estrelas céu de estrume

e satélites de alumínio

espera

humilde praça

humilde redemoinho

de fumaça

 
 
 
(imagens ©rubinos)
 

 

Fernando Stratico. Nascido e criado no norte do Paraná, é dramaturgo, poeta e professor. Entre suas peças teatrais estão as infanto-juvenis O sonho de um mar, O gato errado e O velho e o ouro. Escreveu os livros de poesia inéditos Toda escrita e Cupins devorados. É docente do Departamento de Música e Teatro da Universidade Estadual de Londrina.