A CALIGRAFIA DAS MEMÓRIAS

 

A caligrafia das memórias

preenche compulsivamente

as linhas dos meus sentires

como se de um reflexo azul mar

se tratasse

ou como a mão levantada

onde perdido estivesse o adeus

 

a caligrafia das memórias

suspende-me em ascese

 

pedra onde assento o infinito.

 

 

Lisboa, 30 de Dezembro de 2007

 

 

 

 

 

 

*

quando voam as palavras

desenharei da insónia o rosto?

 

 

Lisboa, 1 de Dezembro de 2007

 

 

 

 

 

 

*

De noite as lágrimas são orvalho

com que acarinho os mortos

os meus. Tantos.

 

Fonte onde agarro a vida.

 

 

Lisboa, 4 de Novembro de 2007

 

 

 

 

 

 

DE VIGIA

 

Porque é o teu dia

o mar encapelou

e as gaivotas poisaram

no velho muro das arribas

atentas      expectantes

curvadas sobre o teu banho

como se o equinócio lhes tivesse trazido

a promessa dos dias

rentes à bruma

quando a chuva lava

todos os labirintos.

 

Porque é o teu dia

eu esperei-te, Pai.

 

 

Ericeira, 1 de Outubro de 2007

 

 

 

 

 

 

*

os figos amadurecem

na memória

quando da capa rota

se soltam os rasgões

e as lembranças

e o mel escorre dos bibes

 

como se de um intervalo se tratasse.

 

 

Ericeira, 2 de Outubro de 2007

 

 
 
 

 

 
 
 

COMO UM CASTIGO

 

Quando as tuas mãos rolarem

as palavras como seixos

ouvirás a melodia

o som do mar

ou será do grito?

 

Só contam as palavras na tua mão

as que abarcares e rolares

despreza as que tombarem

a ganância não as engrandecerá

as mais pequenas permitir-te-ão

ampliá-las

com a leveza da brisa

ou a finura da bruma

e quando órfãos      quase vazias

mudá-las-ás de lugar

num fervor só teu

isento de enredos ou de modas.

 

Descobrirás então as tuas  palavras

e com elas escreverás uma canção

de amor

simples como o primeiro beijo

clara como a neve sobre as árvores

livre

porque saberás

como Sisífo

que a montanha é obstinadamente íngreme

e por ela rolarás cada palavra   

na quotidiana emenda da harmonia.

 

 

Lisboa, 5 de Outubro de 2007

 

 

 

 

 

 

*

encosto o ouvido à tela

emudeço.

 

 

Barcelona, Museu Picasso, 17 de Outubro de 2007

 

 

 

 

 

 

PROPOSITADAMENTE SEM TÍTULO

 

não sei das sombras

das verdadeiras

conheço aquelas onde respiro

ou as outras por onde meço o sol

mas das sombras

das reais

não lhe conheço o contexto

é temente que as percorro

quando o azul as domina

e no insólito do instante me trazem

a projecção de um sonho ou de um assobio

vivo-as temerosa e incrédula

como, quando criança,

os pirilampos enchiam de fantasia e medos

as noites de maresia

 

não sei das sombras

quando para além de mim

o ruído instala as dúvidas

na frágil teia do dia-a-dia.

 

 

Ericeira, 15 de Setembro de 2007

 

 

 

 

 

 

PARA SEMPRE

 

Como num soluço

a solidão

 

passadas as framboesas

perdidos os aloendros

só o malmequer

na cozinha junto ao sol

permanecia

 

malmequer

bem me quer

muito

pouco

nada

 

sorriu

 

ainda ouvia murmurar

deste poema o título.

 

 

Lisboa, 7 de Agosto de 2007

 

 

 

 

 

 

 

*

e eu que das árvores não sei o nome

soletro-lhes as folhas

 

como numa impressão digital.

 

 

Lisboa, 20 de Agosto de 2007

 

 

 

 

 

 

INTROSPECÇÃO

 

Convoco-te, dualidade

por entre os labirintos da noite

face a face

deslocaremos as peças

deste xadrez sem futuro

de balizas temporais

 

díptico de extremos exangues

 

Convoco-te, dualidade

na planura do tempo

a alba se cumprirá.

 

Lisboa, 22 de Junho de 2007

 

 

 

 

 

 

TERIA DE SER DITO

 

não te direi dos portais

— não caberias entre paredes —

guardei-te lugar no pequeno jardim

onde o céu era promessa de além

o lago a casa onde moraríamos

e o ocre da terra os retalhos

que à fome serviríamos

 

entretanto

— quando o silêncio planasse —

na geografia das árvores

desenharíamos

com a sanguínea da vida

o rio sem foz

onde nos unimos.

 

Lisboa, 12 de Abril de 2007

 

 

 

 

 

CONVERSANDO A SÓS COMIGO

 

perco-me em mim e no nada

sou um labirinto de memórias

onde o fio se perdeu

suspeito até que Ariadne não exista

nem eu

nem o tempo

e o local seja apenas o espaço

onde me confesso.

 

Lisboa, 26 de Abril de 2007

 

 

 

 

 

 

O REMANESCENTE DA ARTE DE FLORENÇA

 

há a cor e um contorno

há o panejamento e uma sombra

há a luz e um olhar

há a ânsia e um flagelo

há o êxtase e uma agonia

há o sublime e

esta pequenez de mim.

 

 

Florença, 8 de Março de 2007

 

 

 

 

 

 

NA COR ALARANJADA DO SONO

 

belisca-me a noite por ceder

são os enredos desenraizados

é o bater da chuva no pátio ao lado

é o sono espreitando apressado

e o rasgar do sabor de saber-te

 

aquele instante em que te olhando

me sei.

 

 

Florença, 19 de Março de 2007

 

 

 

 

 

 

*

é aqui que bebo

o sol

a sina

o sal

 

e a ternura dos teus afagos.

 

 

Lisboa, 8 de Fevereiro de 2007

 

 

 

 

 

 

*

A noite não traz as encostas

nem os lírios

tão pouco as escarpas

onde seca o rio

e se de madrugada

corre a bruma

é um espasmo de verde

no sabor da aurora.

 

Oculta-se nas jeiras a claridade.

 

 

Lisboa, 16 de Fevereiro de 2007

 

 

 

 

 

 

*

são de seda e de vento as tuas crinas

indomável o teu porte

quando ante todos e tudo

és a concisão da palavra

liberdade

 

só o incauto julga o poder pelas rédeas.

 

 

Lisboa, 10 de Janeiro de 2007

 

 

 

 

 

 

ENCOSTANDO O OUVIDO À NOITE

 

Se tu soubesses da solidão das palavras

enrolarias o silêncio

na noite sem pirilampos

 

depois

como numa prece

 

ouvirias do mar o canto.

 

 

Lisboa, 22 de Janeiro de 2007

 
(imagens©nikx)
 

 

 

HELENA Faria MONTEIRO. Professora aposentada, é uma amante das letras desde criança. Os seus poemas encontram-se publicados em algumas antologias portuguesas e brasileiras. Nos Poetas de Orpheu tem publicado o seu único livro a solo — Desfolhando lugares. Alguns dos seus escritos e poemas encontram-se espalhados em páginas da Net e em diversos blogues. Edita os blogues Linha de Cabotagem, Traços e Cores e Alicerces. Vive em Lisboa, Portugal.