©kiriko shirobayashi
 
 
 
 
 


 

Mas qual yoga você pratica?

 

Uma vez tendo começado, prepare-se para ouvir essa pergunta com freqüência. Embora na Índia haja diferentes abordagens do yoga — um mais devocional, outro mais intelectual, etc. — quando se trata de posturas ou asana, estamos provavelmente falando de hatha yoga, que é o que a grande maioria ocidental chama de yoga. Hatha yoga é, grosso modo, um conjunto de técnicas que vão além das conhecidas posturas.

 

Há novos e modernos nomes para hatha yoga, muitos deles frutos de ocidentais ávidos por patentear algo milenar, em híbridos de inglês e sânscrito. Há também outros nomes antigos, com mais propriedade etimológica porém — ghatastha yoga, por exemplo.

 

Para desfazer boa parte dessa confusão, a leitura dos textos clássicos de yoga é o melhor caminho. Abaixo, um breve guia introdutório. As explicações foram compiladas e/ou traduzidas das versões, prefácios e comentários de Alicia Souto, James Mallinson e Brian Dana Akers. As abreviações GHS, HP e ShS referem-se aos textos  clássicos Gheranda Samhita, Hatha Pradipika e Shiva Samhita.

 

 

Hatha Yoga Pradipika

 

Um dos textos mais clássicos de hatha yoga, o Hatha Yoga Pradipika foi escrito no século XV, provavelmente entre os anos de 1600 e 1629, na região de Andhra, pelo yogue Svatmarana (às vezes chamado de Atmarana, o mais perfeito entre os conhecedores de Brahma), embora a edição de Kaivalyadhama o situe entre as metades dos séculos XIV e XVI. É baseado nas próprias experiências do autor e também em outros textos mais antigos. Quase nada se sabe sobre quem o escreveu, exceto que seu nome quer dizer aquele que se delicia em seu/no Atman, e que era um yogue shivaísta de grande reputação, discípulo do Swami Goraknath. Também lhe é atribuído o título de sannyasin como discípulo de Sahajananda. Cabe ainda ressaltar que foi escrito 1500 anos depois dos primeiros textos de yoga, a Bhagavad Gita e os Yoga Sutra, e sua diferença maior em relação àqueles é o grande valor que dá ao guru. A presença do professor, fruto da importância que adquiriu ao longo dos séculos, é bastante ressaltada. Não há iluminação sem guru, chega a afirmar.

 

Denominado por seu autor como Hatha Pradipika e não Hatha Yoga Pradipika, como fizeram comentaristas posteriores, é um texto cheio de metáforas, sinônimos e analogias. Não é uma narrativa moderna. Chega a ser obscuro em alguns momentos e é curioso que o termo pradipika justamente pode ser traduzido como chama, luz ou lâmpada. Podemos dizer que se trata de uma pequena luz/lanterna para o hatha yoga, como prefere Alicia Souto, ou simplesmente uma explicação sobre o tema.

 

Por se tratar de um texto antigo e com diferentes manuscritos, há versões distintas, que apresentam também números diversos de capítulos. Alguns manuscritos enumeram quatro capítulos (India Office Library, Oxford University Library), enquanto outros já publicados se completam num quinto. Há ainda versões de seis e até dez capítulos, sendo que dessa maneira, a quantidade de versos por capítulo também se altera.

 

Segundo o tradutor Brian Dana Akers, a apresentação dos capítulos pode ser assim resumida:

 

a)      no primeiro (asana), Svatmarana saúda seus professores e diz por que está escrevendo tal livro, a quem se destina, onde e como o yoga deve ser praticado. Apresenta quinze asana e recomenda hábitos alimentares;

b)      no capítulo segundo (pranayama), estabelece-se a conexão entre respiração, mente, vida, nadis e prana. São descritos seis karman e oito kumbhaka. A raiz sânscrita an refere-se a respirar;

c)      o próximo diz para que são os mudra e os descreve em número de uma dezena. mud significa regozijar-se ou ser feliz e ra é algo como doar, dar;

d)      no quarto capítulo (nadanusandhana), o autor discute samadhi, laya, nada, dois mudra e os quatro estágios do yoga. nada significa som e nusandhana é ir atrás de.

 

A edição do Lonavla Yoga Institute traz ainda um quinto capítulo, dedicado ao tratamento das alterações provocadas pela prática incorreta de yoga.

 

 

Gheranda Samhita

 

Provavelmente do século XVI, o GHS  (coleção ou compilação de Gheranda) é considerado o mais enciclopédico dos textos clássicos. Apresenta seus ensinamentos em forma de diálogo entre o autor, o sábio Gheranda, de quem pouco ou nada se sabe, e seu discípulo Chanda Kapali. Supõe-se que sejam nomes fictícios.

 

É baseado no Hatha Yoga Pradipika, por isso se considera posterior a ele, e ensina Sete Passos ou sapta sadhana. Enfatiza o aspecto psicológico e espiritual das práticas, sem mencionar os yama e niyama. Embora vise o samadhi, o método ensinado não é o mesmo de Patanjali. O primeiro verso é provavelmente uma interpolação do HP e não consta em alguma edições.

 

Não era um texto muito conhecido no passado. Nos séculos XIX e XX teve suas primeiras publicações e traduções em bengali, alemão, inglês e hindi. A edição crítica de Kayvalyadhama é de 1978, baseada em quatorze manuscritos e outros cinco impressos.

 

Utiliza o termo ghata como unidade psicofísica do homem. ghatastha yoga seria outro nome para hatha yoga. O conceito ghata inclui a mente. Seu método propõe sete processos/práticas: shodhana/satkarma, drdhata/asana, sthairya/mudra, dhairya/pratyahara, laghava/pranayama, pratyaksa/dhyana e nirliptam/samadhi. 

 

No GHS não aparece o composto hatha yoga. O texto traz novas descrições ou informações sobre técnicas já conhecidas e utiliza termos específicos e exclusivos. É mais sistemático do que o HP, com apresentação mais clara e sutil. A seqüência de práticas é diferente do HP.

 

 

a)                Capítulo Primeiro - shodana Kriya

shodana são processos de purificação interna. O GHS apresenta não só a possibilidade de limpeza e reacondicionamento, mas também o fortalecimento, quando compara o corpo humano a uma vasilha de barro, que deve purificar-se e fortalecer-se no fogo do yoga. Os seis processos purificatórios são característicos do yoga, embora apresentem alguma similaridade com os pancha karma do ayurveda. Tanto no HP quanto no GHS os procedimentos de limpeza se apresentam antes ou preparando para os pranayama. Isso indica a importância da realização dos satkriya, especialmente para pessoas com excesso de muco e toxinas. No GHS são descritos treze dhauti, dois basti, um neti, um trataka, um nauli e três kaphalabhati, totalizando 21 kriya. Não são somente limpezas internas. O objetivo é sempre a liberação ou mukti.

 

b)                Capítulo Segundo - asana

Descreve 32 asana. Sabemos que os asana, como posturas, remontam a Mohenjo-Daro e Harappa, provavelmente civilizações pré-arianas na Índia. Os Veda não fazem referências diretas a eles, a não ser pelas indicações do modo de sentar-se. As primeiras Upanishad não os mencionam, e os épicos Mahabharata e Ramayana falam de asana como postura sentada. Considera-se que o número de asana seja incontável, somente Shiva conhece todos. No GHS, a descrição nem sempre coincide com outros textos.

 

c)                 Capítulo Terceiro - mudra

Dentre os textos de hatha yoga, esse é o que apresenta o maior número de mudra (vinte e cinco), em seu capítulo mais longo (cem versos). No HP, o propósito dos mudra é o do despertar da kundalini, já aqui se busca alcançar sthirata (equilíbrio). Nomeia-os também como destruidores de enfermidades, produtores de siddhi (poderes), mukti e elevação do yogue ao mundo espiritual.

 

d)                Capítulo Quarto - pratyahara

Contenção dos sentidos, que produz um estado de calma. Destrói inimigos, como o desejo.

 

e)                Capítulo Quinto - pranayama

Produz leveza. pranayama se refere ao controle do prana, compreendendo aqui prana como respiração. Esse tema é relevante desde tempos muito antigos. No GHS são descritas oito formas de pranayama, assim como no HP, mas há diferenças entre algumas delas. O texto detalha quando e onde deve praticar-se, a influência das estações do ano, da dieta e dos alimentos.

 

f)                  Capítulo Sexto - dhyana

Há três níveis de dhyana no GHS. O primeiro ou sthula baseia a meditação sobre um objeto concreto, real ou imaginário. jyoti baseia a concentração na luz e suksma, o terceiro, em Brahma (como a deusa Kundalini) e é a forma mais sutil. O objetivo da meditação é a percepção direta do atman, e é um passo antes do samadhi.

 

g)                Capítulo Sétimo - samadhi

Aqui aparece como sinônimo de raja yoga. São descritos seis tipos de samadhi. Através do samadhi se chega a mukti ou liberação. A importância do guru é aqui destacada para se chegar a esse estado.

 

 

Shiva Samhita

 

Foi composto há mais de 500 anos (provavelmente entre 1300 e 1500 d.C.). Seu nome significa a Coleção (de versos) de Shiva e é endereçado a Parvati. É o mais extenso dos três textos aqui tratados. Seu conteúdo é mais filosófico, provavelmente influenciado pelo Vedanta.

 

As menções, no seu quinto capítulo, ao Rio Ganges, Prayaga (hoje Allahabad), Varana e Asi nos levam a crer que foi composto nessa região. Seu autor ou compilador, entretanto, permanece desconhecido. A tradução mais conhecida para o inglês foi feita por Chandra Vasu, em 1914. A única tradução crítica é de Kayvalyadhama, de 1999, baseada em treze manuscritos e três outras publicações.

 

É uma compilação eclética de ensinamentos de yoga, e por essa condição, também se contradiz. Coletados em épocas diferentes, os capítulos citam temas e acabam, às vezes, não os desenvolvendo. Encontram-se também instruções distintas sobre um mesmo assunto.

 

Apesar desses problemas, o ShS é único dentre os textos de yoga. Ao contrário dos outros, não apresenta um caminho de quatro, sete ou oito passos. As visualizações corpóreas e as técnicas de mantra do capítulo cinco parecem ter forte influência tântrica da tradição de Sri Vidya. Não faz menção à escola Natha de yogues, tida como precursora no hatha yoga.

 

Mallinson explica os capítulos da seguinte maneira:

 

"O primeiro capítulo começa com a declaração de que há um conhecimento verdadeiro e eterno, e prossegue mencionando vários métodos de liberação e pontos de vista filosóficos (...) A maior parte do capítulo é uma exposição da filosofia não dualista do Vedanta, no estilo do Tantra da escola do Sul  de Sri Vidya. O segundo capítulo descreve os equivalentes em nosso corpo do macro e microcosmos, os nadi ou canais, o fogo interno, e os trabalhos de jiva, ou princípio vital".

 

Já o terceiro capítulo descreve quatro asana, a importância do guru  e os quatro estágios do yoga, dentre outros aspectos. O quarto detalha onze mudra.

 

"O quinto capítulo é o mais longo e diverso. Descreve os obstáculos à liberação, os quatro tipos de aspirantes, a técnica mágica de contemplar a sombra, o som interno, centros esotéricos e energias no corpo, incluindo kundalini e os sete lótus, o rei dos reis das yogas, e um mantra cuja repetição conduz (...) a absorção no absoluto".

 

 

 

Referências

 

 

julho, 2008