Variações para um trompete

(ao som de Flamenco Sketches)

 

Havia um tempo que era morto como uma ferida no corpo da vida ou uma formiga calma e gorda desmaiada no fundo de um copo d'água.

 

vaga entre os ombros da multidão,

estacionamento livre para aviões no meio-fio das avenidas,

fonte subterrânea de alcaçuz sem mosca zunindo,

amor que fosse só sol

e língua e vento na cortina.

E toda espécie de violação de lógica ou do cardápio do almoço de domingo.

 

 

E na mortidão do tempo havia

uma grande capacidade de improviso.

 

  
 
 
 

 

Contra-a-partida

 

Subi no poste e gritei: A NOITE É DESMESURADA COMO UMA MULHER

MUITO GORDA VESTIDA DE VERMELHO.
Me olharam com olhos de português de caravela, e eu senti que havia perdido para um

país qualquer da Ásia um dos redemoinhos que trago no peito.
(Murchei como murcha uma libélula nos dentes de Irene)
Tirei a laranja do pé, amaciei a casca rugosa na mão, cheirei aquela nuvem cítrica com

o nariz gelado. Pus na língua, e nada mais era que um grande limão.
(No viés que me importa, a casca era eu)

 

Repulso alvo, juízo, constancia.
Caravela, casca de limão, gata parida.
Tautologia não rebato, faço.

 

Falo atravessando na contramão, na contramaré, no contra do contra, e faço um discurso

de palanque:
Establishment, samsara, hermenêutica. Tudo isso eu cravo os dentes e caio envenenada.
Abro-te as pernas feito uma mênade.
Ou uma anêmona, cheia de tentáculos em torno da boca.

 

 

(imagens ©leander)
 

 

 

A anatomia às 3 da madrugada

 

Da voz revolve um corpo de voz, possível de amaciar, tocar, filtrar, comer.
Do ouvido se faz uma
ár
vo
re
de
flo
res

equilibrada numa corda de circo, capaz de despetalar com vento ou palavra que saia ardida da garganta;
ou garganta que se faça pó;
ou pó que se faça gosto de abandono na estrada, um jipe velho arranca à frente e a poeira cor de laranja se mistura ao suor do rosto e do pescoço.
da boca se faz um receptor de língua estrangeira,

algo como "hear me talking to ya",

ou "loves you, porgy",

e vindas de lá, coisas incompreensíveis serão sempre ouvidas.

Ex.: grunhido, ronco, estertor.
o olho transforma-se em câmera dos laboratórios dos físicos, ou em microscópios de partículas, ou apenas são esquecidos ou entreabertos.
aos dedos é dada a honra da caminhada, dançarinos de passodoble ou de tango,

e para todos os efeitos gramaticais, o eu e o tu não tem que virgular.

 

 

 
 
 
 
 
Julya Vasconcelos (Recife-PE, 1984). Em 2007, foi a mais jovem premiada na Bolsa Funarte de Criação Literária pelo livro Agudo como mordida. Terceiro lugar no Concurso Maximiano Campos pelo conto "Saibro na pele". De temperamento manso que vez em quando tende ao estridente, quebra taças e arruma a casa, nesta ordem. Jornalista, faz prosa, poesia e trailer de cinema. Tem Sol em Libra, Lua e ascendente em Câncer. É uma das Escritoras Suicidas. Blogue: Um Tango Vai Melhor que um Blues.