Peixes, borboletas e asas [ou] conto sem enredo em dois movimentos

 

 

"So make your way on down to the sea
Something has taken you so far from me".

Nick Drake

 

Movimento Um

 

sinto muito pela morte do seu peixe. se fosse dia, ela olharia os olhos dele pelo espelho retrovisor. mas era noite e ela disse apenas pois é, olhando o escuro do caminho desviado, a noite muito negra no anel viário, não sinta, morreu por falta de cidade. fosse outro o lugar, eu o teria salvo com duas gotas de líquido cor-de-rosa. então. ela ficou a pensar que o bicho tinha morrido assim como outras coisas morrem tão fácil, como tudo na sua vida morria, rápido ou lentamente, não importava em que época fosse. o problema era que, com a morte do peixe, um pequenino beta solitário e dourado não mais havia ninguém vivo: o que se movia se tinha ido, restou a água parada e verde que contém seu apartamento e a ela própria.

os problemas da memória. projeção. porque não se ater ao prosaico, mas reverenciar o que só possui a materialidade das nuvens? calcular a distância exata entre o que se é e o que se pensa ser, pensar o distinto e o indistinto dessas duas metades. não saber o limite entre o desejo por um livro ou por um corpo que manuseia livros. era assim que ela o observava, parte de um conjunto de lembranças nem sempre nítidas e nem sempre reversíveis em realidade, seu vulto dentro do carro e seus olhos atrás dos óculos, a sombra roxa permanente no direito.

ele deveria estar ao seu lado no banco da frente, mas insiste em se liquefazer no conjunto de anônimos do banco traseiro, de propósito recusa qualquer tipo de regalia, seja carona vinho seco geléia de pimenta sabonete glicerinado de cereja café na cama amanhecer ao seu lado sobre os lençóis e travesseiros com estampas de borboletas, ensaio de vôo durante o sono.

amar. e não saber o que fazer com o amor. aquele que não poderá dizer-se e isto posto nada mudará por impossível. há uma folha, uma gota d'água, o que fazer com elas: se salvo a folha, a gota se vai, se salvo a gota não faz o menor sentido a folha arrancada de seu galho fatalmente morrerá. puro nonsense. não entender o que leva a existir amor. não entender se de fato amor. apenas achar que se tem um. e ter. sem saber o que fazer com ele. sem ter como fazer algo com ele. não poder dá-lo, não poder fazê-lo valer. não poder fazê-lo, de fato, amor. amor que é toque de corpo de mãos de pêlo sobre a pele. mas que jamais será apenas isso. há um peixe boiando na águas do aquário imóvel a água imóvel a gota imóvel sobre a pequena folha, a vida imóvel nessa noite escura com o carro em movimento.

sua metáfora constante para ele: fantasma que habita os espaços vazios da casa de bonecas, apartamento onde ela mora desde sempre, com o intuito único de brincar de solidão. fantasma que dorme com cara de menino, conversa com o peixe na superfície imóvel da água. abre a geladeira nu e sem frio, implora para ir embora, mas antes quer ouvir o último poema e, descompromissado, adia suas aparições. desaparece cruelmente quando invocado com freqüência. ela gostaria de vê-lo todos os dias. terapia de superexposição produz a banalidade. a percepção do que há de comum no objeto e produz a perda da raridade, da aura. torná-lo comum e corriqueiro, doméstico, familiar e cotidiano e, por isso mesmo, dispensável.

 

 

Movimento Dois

 

saudade das pontas dos seus dedos. asas de borboleta, barbatanas de peixe. é isso que ela diz mal ele aparece na porta da casa nessa noite anterior, lembrando-se de que um dia havia deixado, como pequena sereia, sua linda cauda para trás. as mãos dele são algo independente sentia falta logo se distanciavam da superfície do seu corpo. eram uma maneira de salvar-se. salvar um jeito de perder-se sempre. recordar,  crispar o ar com dentes vazios.

era instigante para ela pensar o conjunto grande e meio desajeitado do corpo dele andar de nadador profissional destacar as mãos para fazê-las pousar delicadamente sobre uma superfície qualquer. não lembrar os olhos sempre meio cansados, as orelhas um pouco abertas, os sintomas de falta de dinheiro e desleixo. de qualquer modo, ela apenas poderia amá-lo naquela cidade, lugar de enfrentamentos constantes e onde tudo se rapta ao controle: lugar de solidões incontáveis, incomunicáveis. ela, cuja beleza sempre envolvia uma certa dose de artifício, de horas de premeditação sem retorno, ela, a das unhas pintadas. recordar seus passos pela casa, a leveza da juventude, o riso só seu mais largo do que as costas, desmontando o quebra-cabeças a fragilidade dela sempre tão bem disfarçada. por que cargas d'água ele vem se está cansado de saber a sempre despedida?

ela pensa que seu problema era um apenas, não saber o que fazer com as crenças dele, ela que já não acreditava em quase nada. com a ênfase no destino cruzado e no karma, no apaixonamento como condição para qualquer continuidade. real e idealmente, viver era preciso. era preciso escolher o que fazer dos dias, das horas vazias da noite, dos espaços em branco na página que se quer preenchida. era  necessário ofegar para se perceber viva. essa verdade simples.  a confissão. uma vida de mornidão e equilíbrio desnecessário, de falsas e infensas intensidades. aceitar as mãos que se afastam, independentes. quando fecha a porta atrás de si ela sabe que este ele não vai mais voltar. sempre procurar um motivo para não aparecer. ele recusa esse papel, o de personagem de uma história completamente sem ação. células de tensão inexistentes. ela olha a porta fechada. o que assusta é ele apenas mais um. contorce um pouco o corpo, anda alguns passos assim, retorcida atração de circo. ninguém pode esperar tanto. não pode não vai esperar para sempre que ele volte. nem por este nem por qualquer outro esse para sempre sempre muito longo. começa a procurar, olhando as costas no espelho, as pequeninas penas plumas que um dia há tempos ela vira brotando, uma pequena nervura e que decepara afinal o que fazer com elas. o tempo em que não tinha aprendido a ser mutante. mas ainda havia céu acima desse andar. sim, ela ia mesmo querer suas próprias asas, mesmo que o vôo de ícaro. ela ia mesmo querer essas suas asas de volta.

 

para Cristiano

 

 

 
 
 

Zodiacal Lovers [ou] as doze casas da paixão

 

 

"Eu sinto que você é a pessoa

mais parecida comigo que eu conheço

só que do lado do avesso".

Alice Ruiz

 

[áries]

é seu primeiro. vivem às turras mas ele é lindo e loiro e a leva para passear na roda gigante com seu braço firme e ela adora girar feito a louca que não é esquecida do mundo. aos dezoito nada é tão sério e nada é tão grave e nada é tão bélico e nada é tão excesso. punhos cerrados e dedo em riste e ele é seu animalzinho de estimação mas sua lã não é a do velocino de ouro. só quando ela resolve habitar os cômodos da casa de touro é que ele quer voltar com seu sol seu céu seus anéis que não são de saturno. balido doce gentilmente. ela não pode ser diferente. pula o cercado para o lado de lá porque o pasto do vizinho é sempre muito muito verde. superlativamente verde.

 

 

[touro]

é o perfeito. até um dia. o barro de que são feitos chamusca o lençol e o travesseiro o vão das portas e das pernas a tinta dos muros e a poeira do chão. fazem um par. tudo fazem em par. na casa sobre a pedra um mundo outro. ela finalmente ganha de presente as patas traseiras que nunca tem. ela é agora inteira e abandona o velho claudicar. ele é olhos franjados sedosos bovinos cativos da gargalhada ou das emanações sulfurosas da mesma sempre terrível garganta dela. um dia. como todo obstinado, este ele vive de silêncios, rumina por dez anos o capim das horas e a certeza de toda a impossibilidade do eterno. muitos quilômetros distante, ela apenas chora com o olhar fixo e o telefone na mão.

 

 

[gêmeos]

são dois. como não pode deixar de ser. dois que nunca chegam a ser um o que quer que fosse. como não poderia deixar de ser. um quase é, mas não poderia. com o primeiro ela pensar em profundezas ao mesmo tempo que ele ri como se asas ruflassem ao seu redor.  ela tem febre e frio e unhas roxas sempre que o vê mas disfarça muitíssimo bem transformando tudo em literatura. ela lhe dá os livros que não tem ele não lhe dá nada. mesmo que ela lhe agite sua escamada e brilhante cauda de peixe, apesar de duplo, este é fiel e realista. o segundo marca encontros e nunca vai. como não pode deixar de ser. reuniões carro quebrado estágio paciente morto compromissos políticos celular sem bateria, o diabo a quatro. ela em casa, com cara de tacho, olhando o relógio. para este ele, ela não dá nada. nada mesmo. nem suas unhas, nem suas melhores tardes, nem suas mais terrificantes falas e nem seu mais improvável silêncio.

    

 

[câncer]

ciúmes dela que nem é dele. quer casar em uma semana. ele odeia livros mas ri como poucos. faz o corpo dela doer até onde ela nem sabe que existe fundura e rouquidão de cratera. ela quer que acabe logo. quer sempre ir embora e sempre desvia os olhos. ele quer casar em uma noite. ela foge de novo para casa. ela não tem saco algum para gente que choraminga. ela não quer ter que cuidar de pessoa nenhuma. não mais. nunca mais.

 

 

[leão]

em toda a sua vida, jamais quisera coisa alguma com esses moços de cabelo longo.

 

 

[virgem]

um dia descobre que os pés dela têm o cumprimento exato de seu membro virilis. está paralisado. não pode conviver com essa coincidência inusitado acontecimento que só há uma vez em cada vida quando há na vida de alguém. não sossega enquanto não esquadrinha cada detalhe da pele meio áspera, com método calcula a disposição dos pequenos dedos e a periculosidade das unhas. ela é tão pequena mas acostumada com tanta esquisitice. ela vive de escrever essas esquisitices e dormita enquanto ele procura de novo a fita métrica. mais uma vez chega em casa depois de horas. virgo intacta.

 

 

[libra]

são dois. como não poderia deixar de ser. não equilibram a balança. como não poderia deixar de ser. ela quer que lhe digam o que é o que não é. ela, a devoradora de certezas. este agora lhe diz, oh, por favor, deixe o tempo. o tempo diz tudo. ela não sabe a espera. nunca soube da indecisão que teme mas o deixa devorá-la em território privado. e adora. este ele só volta quando quer e ela nem tem idéia de onde é sua casa mas sempre lhe tira os sapatos e diz pronto agora você está nu. o outro ela tem quatorze anos e se beijam embaixo da bandeira do brasil na escola secundária. não sabe que ele voltará aos dezenove e que novamente aos trinta. nada nessa vida é mesmo para se saber.

 

 

[escorpião]

ela observa suas pinças. sempre odeia que a prendam. sejam do tipo que for as cadeias. mas lá já está o ferrão e ela jaz ferida de morte sobre a cama.

 

 

[sagitário]

imagina ela nunca que estará em um site de relacionamento. até dizem que todos que se inscrevem têm problemas. sério. mas está e ele. baixinho e duas filhas adolescentes. volta para o vinho por sua causa. é capaz de fazer tudo por ela, este arqueiro. até atirar na própria pata. ela não quer nada de graça assim tão fácil apaixonamento de encomenda com dia hora minuto segundo marcado para disparar a seta e cravar o flanco desavisado. volta para casa. sua memória sem querer esquece e-mail celular telefone fixo rosto cheiro voz saliva e todas as letras que componham a palavra lembrança.

 

 

[capricórnio]

ele a olha como se nada fosse acontecer o incandescente coração obscurecido pela fina bem-formada camada de gelo. ele sabe o que têm em comum e isso o assusta deveras. o que não impede. a resistência necessária. fica de longe porque tem nome de leão. o que não impede. trocam fagulhas olhares e punhados de terra um sobre o túmulo seco do outro. ele não precisa de ninguém. ela tampouco. são lacunares. são perfeitos. mas ele não sabe.

 

 

[aquário]

não há lugar nem pudor no apartamento de paredes verdes. a cidade longa e longe. ela adora as pontas dos dedos dele ele adora a pele do corpo dela, as luas negras. ela quer escrever. ele quer saber tudo sobre a vida. lêem poemas às três da manhã. corpo a corpo ondas de lava na sacada. às vezes ele é de água e a cada manhã dissolve, calma e irreversivelmente, todo o desejo e o gozo escuro da noite. ele anda pela casa. quer saber o que ela pensa. ele a adora porque ela o adora porque ele sabe muito fazê-la rir. por várias luas gastam o tempo em um jogo bastante esquisito. às vezes ele é de ar e a cada manhã transmutado em vento sopra-se todo sobre ela. ela é de terra e pelo vão da porta a pequena montanha transformada em diáfano pó.

 

 

[peixes]

eu vi seus olhos, isso leva uma vida para esquecer mas não há tempo agora você vem comigo um outro dia. essa a fala a idéia fixa daquele que quer reinventar um falo adormecido um casamento que já nem existe mas que ainda. nadar. não morrer na praia. não morrer de modo algum ante a carne que é de outra. ela não é boa, nem má. é humana. não quer mais. não é por isso. não é mesmo. ela até desfalecera de agudo gozo. este também é de água, e ela detesta a lama das maledicências. ordena que ele nade de volta para seu calmo leito, conjugal aquário. acabadas as casas novas, resta mesmo apenas revisitar as antigas.

 
 
 
(imagens ©paul taylor)

 

Luciana Borges. Tendo surgido no chuvoso mês de janeiro, é do signo de capricórnio, o que lhe dá, entre tantas ambigüidades, patas firmes na terra, mas também uma escamada e instável cauda de peixe. Desde muito tempo se lembra de inventar histórias, modo mais fácil que encontrou de des|conhecer o mundo. Sempre escreveu como amadora, em todos os sentidos que essa palavra possa assumir. Tende a falar e rir alto, apesar do humor um tanto corrosivo. Invariavelmente, possui um senso de sinceridade suicida. É professora de literatura no Campus da UFG em Catalão, cidade onde nasceu e, salvo por um breve hiato, sempre morou, estudou, escreveu e aprendeu a gostar da literatura. Já publicou textos em coletâneas e revistas, mas nenhum livro. Troca o dia pela noite. Odeia que a acordem. Adora cinema. Escreve, na Palávoraz - Literatura e Afins, a coluna "Cabra com cauda de peixe".