Em Lettres Persanes (Cartas Persas) de Montesquieu, publicado em 1722 na França, os personagens persas Usbek e Rica narram em cartas suas impressões de viagem desde a partida da terra natal até a chegada ao destino em Paris, de onde relatam suas experiências na condição de estrangeiros:

 

"Les habitants de Paris sont d'une curiosité qui va jusqu'à l'extravagance. Lorsque j'arrivai, je fus regardé comme si j'avais été envoyé du ciel : vieillards, hommes, femmes, enfants, tout voulaient me voir. Si je sortais, tout le monde se mettait aux fenêtres; si j'étais aux Tuileries, je voyais aussitôt un cercle se former autour de moi; (...) Si j'étais aux spectacles, je voyais aussitôt cent lorgnettes dressées contre ma figure: enfin jamais homme n'a tant été vu que moi. (...) Chose admirable! Je trouvais de mes portraits partout; je me voyais multiplié dans toutes les boutiques, sur toutes les cheminées, tant on craignait de ne m'avoir pas assez vu. (...) Cela me fit résoudre à quitter l'habit persan, et à en endosser un à l'européenne, pour voir s'il resterait encore dans ma physionomie quelque chose d'admirable" (MONTESQUIEU, 1873).

 

           O trecho em destaque é narrado por Rica, persa muçulmano recém- chegado a Paris, que procura detalhar alguns aspectos do olhar estrangeiro em relação à sua aparência física e o quanto isso o destaca como um ser diferente diante dos costumes da civilização ocidental. Rica causa espanto e admiração por ser estrangeiro à medida que isso está evidente no que concerne à estética visual do visitante do oriente.

           Parece-me apreciável a possibilidade de se pensar algumas impressões sobre a imagem de Caetano Veloso enquanto personagem estrangeiro dentro de e de sua terra natal, como aquele que causa estranhamento ao longo de sua participação na trajetória da música brasileira.

           Caetano já teve a alcunha de "príncipe mouro" durante o exílio na Europa devido a fatores de ordem estética. O corpo fala, comunica e faz estranhar, trazendo à tona um pouco da idéia transmitida pelos personagens do romance epistolar de Montesquieu, no que tange ao efeito causado pela aparência de dois estrangeiros de origem árabe nas ruas de uma capital européia. Desde as primeiras aparições públicas do músico brasileiro, o estranhamento foi estabelecido e perdura durante quatro décadas. Baiano moreno de nariz adunco, mulato cabeludo que rebola e canta London, London, poderia perfeitamente tomar a fala do personagem Rica quando este diz: "Si j'étais aux spectacles, je voyais aussitôt cent lorgnettes dressés contre ma figure: enfin jamais homme n'a tant été vu que moi".

           O deslumbramento estético consolidado ao redor da figura de Caetano, dentro e fora do palco, ganhou expansão pelo status de superastro, o que incentivou a criação do ilustre texto "Caetano Veloso enquanto superastro", escrito por Silviano Santiago que observa o seguinte:

 

"Já sabia Caetano que o espontâneo do palco se paga com o extravagante na vida real, pois só o extravagante desperta o comentário, que é o alimento diário do superastro, seu néctar e sua ambrosia, seu pano de prato onde limpa as mãos sujas das canções. O superastro é notícia sem o querer, é seguido sem o saber" (SANTIAGO, 1978, p. 143).

 

              Caetano com roupa de plástico no palco, envolto em peles nas ruas de Londres, de batom. Como observa Silviano, o superastro só precisa ser o mesmo, pois ele já o é fora do palco "e não precisa provar mais nada para poder ser superastro no palco, na tela, no vídeo, no disco" (p. 143). Os personagens Ziggy Stardust e Halloween Jack, encarnados por David Bowie entre 1972 e 1973, teriam superado em excentricidade o tímido espalhafatoso Caetano do final dos anos 60?

            É interessante notar que o músico baiano reúne um conjunto de significações flutuantes que circulam por uma via alternativa, superando a rigidez dos termos binários: masculino/feminino, nacional/internacional, regional/cosmopolita, mesmo/outro, alienado/engajado. Ele é o flâneur urbano do cenário de "Alegria, Alegria". Um estrangeiro na megalópole de "Sampa". Cito dois trechos da canção:

 

 "é que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi

 da dura poesia concreta de tuas esquinas

 da deselegância discreta de tuas meninas

 (...)

 e os novos baianos passeiam em tua garoa

 e os novos baianos te podem curtir numa boa".

 

             Esses dois últimos versos, mesmo que por uma alusão lúdica, parecem mesmo desenhar a jornada de um personagem maometano quando descobre pela primeira vez a fog londrina.

             O superastro que desfila entre os trilhos urbanos é o mesmo que vai atrás do trio elétrico (ou em cima), que passeia pelas ladeiras do Carnaval em "Chuva, suor e cerveja", e que vira mulata na canção "Eu sou neguinha".

             Passando rapidamente por Freud, pois aqui não pretendo me aprofundar nos mares da psicanálise, quero apenas buscar um entendimento da categoria do unheimlich (estranho familiar).

            Segundo Freud, o estranho seria uma categoria de coisas assustadoras, algo familiar e conhecido que foi reprimido e quando retorna traz em si um elemento que amedronta, causando estranhamento em seu retorno, "pois esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente" (FREUD, 1974, p. 301).

          Sendo assim, em anos de domínio ditatorial militar, por mais que o mundo todo atravessasse um período de inovações artísticas, com o advento do pós-modernismo, e que mudanças de atitude fossem coisas esperadas, um mulato cabeludo com corpo de faquir que revisitava o que era tido como cafona, mesclando a idéia do brega com acordes dissonantes da guitarra elétrica, valorizando ícones da indústria pop, acreditando em um avanço cosmopolita da música brasileira sem que houvesse necessariamente um parti pris político (aspectos que inegavelmente ofendiam a esquerda engajada) e abrindo caminho para um diálogo com a indústria musical sem perder o rigor crítico e provocativo da arte, evidentemente causava um efeito de estranhamento diante dos costumes da sociedade de então. Era uma novidade: Carmem Miranda, elemento familiar que fora recalcado, retorna com guitarra em atos circences sob uma capa de parangolé, bebendo Coca-Cola.

          Procuro tratar de impressões que caracterizam o aspecto estrangeiro em Caetano, e que fazem dele o mesmo. Claro que tal efeito é manifestado de maneiras variadas ao longo de quarenta e poucos anos de carreira, mas, ainda com Silviano, o superastro é o mesmo.

           A língua inglesa sempre apareceu como elemento catalisador responsável por um efeito polissêmico garboso nas composições do músico. Ele sempre se anunciou como estrangeiro, mesmo nos temas onde se diz mais baiano possível. O tom mulato foreigner marca seu trabalho. Portanto, em You don't know me, faixa do disco Transa, de 1972, ele canta:

 

"You don't know me

Bet you'll never get to know me

You don't know me at all

(.)

Nasci lá na Bahia de mucama com feitor

O meu pai dormia em cama, minha mãe no pisador"

 

    Possivelmente, isto seria o grito da herança escravagista em busca da democracia racial que toma a fala e avisa ao mundo, em inglês, sobre a impossibilidade e a imprudência que é tentar classificar um mestiço. O colonizado supera o colonizador, o escravo vence o senhor.

               O disco A Foreign Sound, lançado pelo cantor em 2004, recebeu algumas críticas pelo fato de ter sido todo um kit de regravações de compositores norte-americanos, tais como Cole Porter, Bob Dylan (com a música "It's all right, Ma", de onde veio o título do disco), Nirvana, entre outros. As claves tênues de guitarra ao fundo unidas a instrumentos orquestrais declaram uma pequena provocação: o superastro é extravagante sem o querer, e o que pode ser uma coincidência pode transformar-se em um divertido ato provocador.

                Em entrevista publicada na edição de agosto de 2006 da Revista Cult, Caetano declara o seguinte quando a entrevistadora afirma que, em plena onda antiamericana, ele lançou o CD A Foreign Sound: "Fiquei muito contente com essa coincidência. Foi a única coisa de que eu gostei muito no CD. (...) Mas a coincidência de ser no ápice do antiamericanismo internacional foi um aspecto que me pareceu interessante".

 É interessante notar que nos últimos momentos da música "Baby", escrita por Caetano em 1967, ao fundo da voz de Gal Costa ele cantarola: "Please, stay by me, Diana", que é verso da música de Paul Anka, cantada na íntegra em A Foreign Sound. Dessa vez, nos últimos acordes de Diana, Caetano cantarola: "Baby, I love you", refrão de sua composição de 1967.

         A língua espanhola também pontua o artista enquanto brasileiro agregado à cultura latino-americana, fixando a idéia de pertencimento do Brasil à América, apesar de ser lembrado como um enorme país continente de língua portuguesa quase à deriva no atlântico, como uma peça descolada em relação aos países vizinhos e aos que se estendem até o hemisfério norte. O disco Um caballero de fina estampa nos faz lembrar o quanto parecemos estrangeiros, apesar de ser tão familiar o fato de compartilharmos o mesmo espaço continental e o semelhante processo de colonização, seguindo a trilha desde a África, atravessando o Atlântico até chegar aqui.  Na capa do disco ao vivo, Caetano aparece composto em fina estampa, roupa e cabelo adequados, acima de um fragmento de mural pintado pelo artista mexicano Diego Rivera, que atualmente está exposto no teatro do City College of San Francisco. Nada mais apropriado e cosmopolita para traduzir o grande melting-pot que é a América. A postura do caballero se aproxima a do homem cordial, de Sérgio Buarque de Hollanda: de fino trato, que logo procura criar uma atmosfera de intimidade com os elementos pan-americanos. Guiado pelo coração, cordial, deseja ser acolhido pela transição cultural americana. Será que o estrangeiro gigante brasileiro tem medo de ficar sozinho?

 O outro no mesmo. O músico é mutante e muda de cara e de roupa para manter-se diferente, com o intuito de sobreviver pela renovação, sendo o mesmo, pois permanece estrangeiro como antes.

 "Você nem vai me reconhecer / quando eu passar pó você" são os primeiros versos da música intitulada "Outro", do disco , de 2006. Como primeira faixa, pretende-se afirmar que o mesmo trocou de roupa. Não que isso seja uma novidade total. Há tempos que Caetano não se apresenta em roupas plásticas. O tempo passa e é claro que os conceitos mudam.

 

          recebeu críticas boas e ruins. Falou-se que Caetano está muito diferente, com um som mais agressivo, roqueiro e jovial para se aproximar do público mais jovem e, digamos, mais erótico.

          Isso causou estranhamento. Talvez o público esperasse alguma coisa mais próxima à trilha sonora das novelas globais, mas o que se ouve são os primeiros acordes de guitarra de "Take a walk on the wild side", de Lou Reed, no iniciozinho do principal hit de , "Não me arrependo".

          É verdade que o som atrai o público mais jovem. O cenário, composto por três jovens músicos comandados por Caetano que veste blusão de malha, jaqueta e calça jeans com tênis colorido, é sugestivo. No Circo Voador, em dezembro do ano passado, na segunda noite de show, o público era predominantemente formado por jovens universitários que acompanharam a apresentação do cantor cantando todas as letras das faixas do novo disco. Em noite de estréia no Vivo Rio, no último mês de março, os jovens que ocupavam a área da pista cantavam muito mais do que o pessoal da área VIP. Isso é um fato.

         Mas não acredito que o estranhamento causado pelo artista, durante uma turnê, seja maior do que há anos atrás. O som é pesado no palco, é diferente. Porém é mais provável que o estardalhaço em relação às inclinações estéticas dentro do trabalho recente do músico tenha sido gerado em maior parte pela mídia e pela crítica. O público gosta e aplaude a diferença, simplesmente. Quem não gosta, deixa claro e pronto. Ora, músicas com letras que possuem algum conteúdo de teor sexual não são, de forma alguma, novidade na carreira do músico. Uma palavrinha aqui e ali no texto não o torna mais erótico nem mais provocativo do que já era.

           Acredito que Caetano seja estrangeiro hoje, assim como já o era quando chegou ao Rio de Janeiro acompanhando Maria Bethânia na primeira metade dos anos 60, antes mesmo de qualquer performance no palco como cantor e, um tempinho depois, como um dos representantes do movimento tropicalista.

        

No momento atual, o artista sobressai pela economia. O que havia de mais, em relação à estética visual, foi suprimido. E é nessa supressão que se esconde o extravagante, pois o superastro não precisa provar nada para o ser no palco, porque ele é a própria performance. Agora ele está roxo, velho e feio, e assim sendo, é um dândi do lirismo e um democrático tecno-artesão universal.

A malha e o jeans despojados e artificialmente informais são a estampa da fantasia. Isso o torna, de certa maneira, inadequado, quero dizer, fora do alcance da previsibilidade da crítica e também do público.  

         O músico baiano Tom Zé escreveu uma carta aberta dirigida ao cantor, publicada recentemente no jornal O Globo, acusando de traição o autor de . O conteúdo não deixa muito evidente o motivo da revolta de Tom Zé. Ele inicia assim: "Prezado senhor Caetano: Estou revoltado. És o que és, grande traidor. O senhor é um suicida". As críticas de Tom Zé recaem sobre a performance de no palco, chamando Caetano de Quinta Besta do Apocalipse. A idéia de apocalipse quereria sugerir que o conterrâneo estaria derrubando todo o conceito que teria sido construído e elevado pela estética tropicalista? Não fica claro nem vou me aventurar em alguma tentativa de interpretação. Mas é exatamente esse tipo de incômodo, engolido e regurgitado por Tom Zé, que alimenta a notoriedade do superastro.

         está longe de ser o melhor trabalho de Caetano. É mesmo tão diferente quanto parece, ou é o último suspiro do artista para se manter na condição de super-astro?

 

  Cito Julia Kristeva:

 

"(...) o estrangeiro começa quando surge a consciência de minha diferença e termina quando nos reconhecemos todos estrangeiros, rebeldes aos vínculos e às comunidades.

 

O "estrangeiro", que foi o "inimigo" nas sociedades primitivas, pode desaparecer nas sociedades modernas?" (KRISTEVA, 1994, p.9).

 

O caráter do diferente torna-se algo complicado em dimensões coletivas. Todos se tornam estrangeiros para si próprios e ponto final. Sendo assim, nada mais é diferente, tampouco na arte?

Como parece querer prevenir o texto de Kristeva, é preciso ser cuidadoso para tratar do tema. Aqui, o objeto de estudo é um artista com uma longa trajetória na história da cultura brasileira, alguém que (des)organizou um movimento e (des)orientou muitos carnavais. Se nos tempos modernos nenhuma manifestação artística pode ser tida como revolucionária e inovadora, é interessante prestar atenção na contribuição do amadurecimento da obra de alguns artistas que pensam o Brasil e comunicam o que pensam através de novas representações de idéias que podem sugerir mudanças positivas rumo a um canal aberto para formas mais competentes no caminho da democracia  brasileira.  Ou será que isso tudo é uma grande balela?

Sendo ou não um intelectual, Caetano nos aponta algumas direções. Ou será que não aponta nada? Será que é mesmo necessário cobrar de um músico uma postura intelectual atuante? Mas acredito que toda a graça esteja no entre-caminho das relações que o artista estabelece com a sociedade. Músico intelectual, pseudo que canta seus questionamentos de natureza antropológica e escreve com rigor peculiar a verdade tropical que assombra o mundo, ele está no espaço do suplemento, um excesso que derruba a hierarquia dos termos, no movimento do jogo, dentro de uma perspectiva derridiana. Caetano é cordialmente e ordinariamente estrangeiro em sua terra natal. A instabilidade entre os conceitos faz o poeta. Para finalizar cito um trecho do texto "Fichus", de Jacques Derrida, onde ele afirma que a arte encontra uma resposta ou uma possível saída para o não do filósofo clássico. Quando este diz não,

 

"Tout autre, mais non moins responsable, serait peut-être la réponse du poète, de l'écrivain ou de l'essayiste, du musicien, du peintre, du scénariste de théâtre ou de cinéma. Voire du psychanaliste. Ils ne diraient pas non mais oui, peut-être, parfois. Ils diraient oui, peut-être parfois" (DERRIDA, 2002, p.13).

 

é a forma diminutiva de você e a letra inicial de Caetano. O outro no mesmo.

 

 

 

 

Referências Bibliográficas

 

 

março, 2008

 

 

 

 

 

Elisa Kozlowsky. Graduada em letras (português/francês) pela Universidade Federal Fluminense. De dezembro de 2001 a fevereiro de 2002  acompanhou as aulas do seminário Obstetrices de la Littérature, ministrado pela escritora franco maghrebina Hélène Cixous, no Collège International de Philosophie, em Paris. Em 2006, defendeu a dissertação de mestrado em literaturas francófonas na Universidade Federal Fluminense. Atualmente, é doutoranda em literatura brasileira da Faculdade de Letras da PUC-Rio, desenvolvendo o projeto: "O pensamento crítico do músico-intelectual contemporâneo".