Absoluta

 

Eu sou uma mulher que pulsa.

E pulsa em mim, além da vida,

a vontade inerente à minha natureza

a vontade pura, transparente, avulsa,

que faz em mim a fera mais temida

e mais pulsante, e de maior beleza.

 

A mulher em mim se descompassa

e o pulso faz-se oculto pela blusa

que tem a cor e o tom da minha pele.

Mulher macia, gesto são, alma devassa,

que perde o rumo, a chave, se põe confusa

no medo enorme de que o sonho se revele.

 

Eu sou uma mulher que se eterniza.

Trago sementes mortas que o beijo ressuscita,

e que germinam paixões, flores e frutos.

Gosto da gota de suor quando desliza

e, quando abro o botão da rosa que me habita,

conto o segredo dos heróis mais dissolutos.

 

 

 

 

 

 

 

 

Céu de Amianto

 

Eles podem nos vigiar e nos seguir

e invadir a nossa casa enquanto dormimos

eles podem nos interrogar

e sentir o cheiro da nossa culpa

eles talvez invadam a nossa privacidade

e nos roubem a alma e o intelecto

e nos roubem os poemas que nos dedicamos

talvez nos levem aprisionados para o calabouço

Eles podem descobrir o nosso segredo

e nos condenar

eles podem sentir inveja da nossa rapidez

porque nós vamos fugir

vamos fugir

até que eles esqueçam nossos nomes

Eles podem perguntar por quê cometemos este delito

e eles nunca entenderão porque não falam a nossa língua

eles nem conhecem nenhum dos prazeres da nossa língua

eles não entendem o que são as delícias

as papoulas, as mariposas,

a vulcânica sensação que temos no perigo.

 

 

 

 

 

 

 

 

Desconcerto

 

Máquina do Sono

Desespero

Infalivelmente sensíveis

Inconfundíveis mamíferos

Mortais

Pontualidade enfadonha

Cálculos exatos

Matemática

Homem, um número.

Pensamento

Coração aberto

Peito enternecido

Fatalidade

Desejo,

Homem financeiro

Rarefeito

Animal pensante

Divisão

Cautela

Homem-inflação,

Dízima periódica

Esperança,   

Profunda lembrança

Pesadelo

Dor no peito

Ferida na alma

Riso na face

Contraste

Lágrima nos olhos

Ferida na pele

Sonho no silêncio

Homem:

Desconcerto.

 

 

 

 

 

 

 

 

Haeresis

 

Fui buscar minhas rimas com o Senhor Inquisidor.

Estavam apreendidas no calabouço,

úmidas, mofadas, completamente à mercê das paredes infectadas

acorrentadas, torturadas porque não confessavam sua culpa.

Foram capturadas enquanto falavam de liberdade.

As minhas rimas eram doces meninas que brincavam inocentemente

e foram acusadas de infringir a lei

pobres meninas diabólicas e tolas

hereges, pecadoras, mantidas incomunicáveis.

Oh, tanto sofri sem as minhas meninas!

Iriam acender a fogueira, avisaram-nas,

e elas, insontes, calaram-se de repente

e se lavaram de pranto e murcharam silenciosamente.

 

"Vim buscar minhas meninas!", eu disse ao Inquisidor.

Arrebatei suas chaves e abri as portas

abjurei-o por caluniar minhas pobres crianças

peguei-as ao colo, sujas, sonolentas,

levei-as para casa, ensinei-lhes a lição,

e lhes abençoei com a eternidade.

"Cada coisa no seu tempo, minhas meninas.

Sejam eternas e venham depois de mim,

fiquem quietas para não despertar o Inquisidor,

e um dia enfim, quando vier o amanhã,

contem para todos o que é a Liberdade."

 

Vamos aguardar o amanhã.

Por enquanto, podemos ser flagrados pelo Inquisidor.

 

 

 

 

 

 

 

 

Insígnia

 

Era aquele o momento da luta. Eu sabia

que de alguma forma me afetaria aquele drama.

Ele chegou num vento, um raio, trovão

tempestade.

Era aquele o sagrado momento em que as espadas

são desembainhadas. A luta acontecia.

Ele tinha um ar de profecia, olhos de promessa

eu perdia a luta e era aprisionada.

 

Era aquele o momento, quando aquele vento

bateu em mim, totalmente materializado.

Eu era uma mulher que me rendia.

O meu passado inteiro era marcado ali num carimbo de brasa

me prometendo que era aquele o meu começo.

 

Eu era uma mulher que amanhecia.

Coloquei em meus próprios pulsos a algema. E ele,

ele acontecia, acontecia.

 

Era aquele o momento da chegada, Alice,

ao infinito País das Maravilhas.

 

 

 

 

 

 

 

 

Mãe na Varanda

 

Foi este vento que me fez te olhar assim.

Este vento soprande em teus cabelos poucos,

enxugando o suor do teu rosto.

Eu aqui, inerte,

te olho como a um anjo:

Contemplação.

Tu, na tua lida,

Nem sequer imaginas que eu,

poeta com olhos da cor dos teus,

te elevo ao altar das divindades

montado só pra ti no templo da memória.

 

Foi este vento que me fez te olhar assim.

Este vento livre como a tua bondade,

forte como a chama que alimentas.

Eu aqui, calada,

te digo muito mais do que preciso:

Veneração.

Tu, na tua rotina,

vives tudo para dar a vida,

e a tua prece implora pela nossa bênção.

 

Tu, neste vento, pareces renovada

Porque ele, como tu, é um Sopro do Infinito.

Eu fico aqui em paz, pela paz que tu repassas.

Tu, firme como as árvores altas;

Tu, eterna como a vida;

Tu, mãe que labora na varanda.

 


 
 

 

 

 

 
 
 

Nudez

 

Sem palavras.

Atira a toalha no escuro

E quebra o primeiro silêncio.

 

Sem palavras.

Contempla o luzir das estrelas

E analisa o reflexo.

 

Sem palavras.

Ignora os defeitos de humano

E se deleita no sonho.

 

Sem palavras.

Desata os desejos da carne

E transcende a noite.

 

Sem palavras.

Declara paixão ao delírio

E se derrama em versos.

 

 

 

 

 

 

 

 

O Humano

 

Não era esperado, mas tinha chegada

Não era sentido, mas tinha presença

Não era ouvido, mas tinha palavra

Não era nutrido, mas tinha fraqueza

Não era oprimido, mas tinha receio

Não era espancado, mas tinha ferida

Não era humilhado, mas tinha rancores

Não era notado, mas tinha beleza

Não era encarado, mas tinha sorriso

Não era escolhido, mas tinha planos

Não era indagado, mas tinha idéias

Não era enfrentado, mas tinha coragem

Não era afagado, mas tinha lágrimas

Não era bandido, mas tinha revoltas

Não era entendido, mas tinha esperança.

 

Não era nada, nada.

Mas era um homem.

 

 

 

 

 

 

 

 

O Último Suspiro

 

Um grito,

um eco.

Silêncio:

paz.

Por dentro,

quem grita

se agita:

tormento.

Silêncio...

Socorro:

um grito,

um eco.

Tudo passa:

fumaça.

Por dentro,

quem grita

palpita:

Vida.

Mas só o grito.

Mas só o eco.

Mas só um Sopro,

infinito.

Na alma,

quem grita

levita.

(Silêncio).

 

Outra vez,

outra vida.

 

 

 

 

 

 

 

 

Óxido-Redução

 

A nossa biologia é uma grande química

talvez uma física,

transmissão involuntária de cargas avassaladoras.

Toda clorofila se transmuda em caroteno

(alteração estrutural enrubescendo o mundo)

pigmentação da pele de repende enrubescida.

A nossa química é uma grande biologia,

permutação de cromossomos semelhantes,

enlace genético e outra vez involuntário

Tudo do nada, essa coisa inexplicável de alma gêmea

átomos  opostos, prótons, elétrons,

cadeias orgânicas perfeitas,

elementos inéditos, deliciosa sensação de conhecê-los.

A nossa física é uma quase matemática

expressão alfanumérica, triplas incógnitas,

e este desenfreado impulso de resolução;

corrente magnética, um misto de todas as ciências,

progesterona exalando pelos poros,

alguma lógica, alguma fantasia,

tempestade de hormônios, choque térmico.

A nossa química se mistura à refração da luz,

teus olhos nos meus olhos, velocidade de propagação,

simetria de imagens, vibração de cordas tensas,

uma verdadeira melodia.

Ah, a nossa ciência é um hemisfério tropical,

uma ilha caribenha, um sol, um frio, não sei,

talvez um verdadeiro paraíso da geografia.

 

 

 

 

 

 

 

 

Profecia da Invencibilidade Poética

 

Quero que desprezem a Poética até o último instante.

Quero que zombem, que maltratem essa arte.

Quero que a limária das palavras seja tripudiada,

que edifiquem cemitérios com obras de redondilhas.

Quero que proibam a disseminação da rima,

que gargalhem quando passar o poeta.

Que destruam qualquer gene desse vício,

que desiludam um a um os novos aprendizes.

E então, quando tudo acabar,

e cada um dos homens de ferro estiver só,

nascerá neles uma inconsciente risca de Poesia.

Restará para eles uma profunda solidão,

que é irmã gêmea da Poesia.

Restará o desejo pelo que eles não foram,

que é o desabafo na Poesia.

Restará o escárnio pelos que foram Poetas,

que é o ponto crítico da Poesia.

Restará só a lembrança de um peito de aço,

que é o Refúgio na Poesia.

E quando cada certeza se tornar um delírio

(apenas a miragem de uma luz inexistente

imaginada na escuridão do derradeiro),

restará apenas o Medo.

E o Último dos Homens de Ferro se tornará Poeta,

cultivando em seu medo a mais sublime Poesia.

 

 

 

 

 

 

 

 

Uma Mulher

 

Uma mulher quieta em frente ao espelho

se põe bonita

observa a roupa, a cintura,

amarra uma fita

no cabelo.

Uma mulher sente o ego vivo

em frente ao espelho

lápis nos olhos

um pouco de batom vermelho

nada demasiadamente chamativo.

Uma mulher exageradamente discreta

se sente perfeita

escolhe um perfume, ajeita

sua postura

tudo para parecer correta

e talvez um pouco aventureira.

Uma mulher quer um braço que a receba

e tem uma pressa infinita.

Toda mulher quando se põe bonita

espera por um homem que a perceba.
 
 
 
(imagens©elena filatov)

 

Patrícia Moresco. (Francisco Beltrão-PR, 1983). Tem trabalhos publicados nos livros de cinco edições do Concurso Francisco Beltrão de Literatura, sendo que, por 4 vezes, foi premiada na categoria Poesia. Mantém um blog com poesia e fotografias no endereço www.soprodepoesia.blogspot.com.