Às margens do São Francisco, antigas grutas de um majestoso afloramento calcário foram apropriadas por sertanejos... há muito tempo. Firmava-se ali um território sagrado, onde signos identitários permanecem vivos no imaginário de milhares de brasileiros.

O sincretismo deu origem à imagem de um Cristo ladeado por Maria, sua mãe e, sob seus pés, cactos. Cactos do sertão da seca e do sol, da súplica e da prece. Coroa de Frade.

Oferendas, promessas e penitências, imagens e relíquias da cristandade dão vida ao santuário.

A prece de joelhos, o interior e o recolhimento da gruta.

O beijo selado da confidência e as velas do lusco-fusco.

Tudo isso se mescla com a pobreza contrita dos fiéis.

Nesse lugar, uma reminiscência dos primórdios das civilizações não poderia se ausentar: o comércio. A venda de símbolos religiosos antigos e novos, alguns quase heréticos, outros pós-modernos.

Mas na Bahia, como se a tudo subsistisse, as fitinhas de proteção, as que amarramos nos punhos, parecem querer perpetuar as lembranças do senhor bom Jesus da Lapa, a baixo preço.

 

 

 

 

 

Uma antiga democracia percorre o comércio de mercadorias primevas.

Os bens postos à venda aproximam produtor e consumidor. Muitos são bens da terra.

Às vezes um labirinto de barracas, lonas e tabuleiros abriga muita gente fisicamente próxima. Um labirinto que não confunde nem separa, a todos une. Equaliza.

Às vezes, ao longo da rua, os sobrados do povo tornam-se imperceptíveis porque à sua frente perfilam, a perder de vista, umas coladas às outras, tendas e... chapéus, balaios, panos, baldes, panelas, bacias, sacarias, gêneros, cerâmicas, esteiras e uma infinidade de objetos de palha.

Crianças, carroças, cachorros. Um frete de bode? As carnes de bode ao sol de Remanso.

Mas o especialíssimo emaranhado de pencas de alhos, cebolas e bananas é fina estética.

Enquanto isso, um torreão medieval como se assistisse a tudo, mantém-se solene, mas ignorado pela profusão de garrafas com porções de variada cor na rua do Pé do Morro de Bom Jesus.

É quando o crucificado, a senhora santíssima de Aparecida, os papagaios e as carrancas abrasileiram a feira.

Enquanto cavalos e jegues descansam junto com seus condutores, estirados nas carroças.

As tradicionais feiras do nordeste ainda fazem parte da paisagem do sertão do São Francisco.

 

 

 

 

 

Às margens do São Francisco, um barro argiloso especial pode se transformar em belas peças de artesanato após muito trabalho, disciplina e convivência coletiva nos ateliês, nos espaços de mestres e aprendizes; homens e mulheres a dividir ofícios que ainda passam de pai para filho. Ainda.

Antes do cozimento, depois que as mãos modelaram no torno e cinzelaram as formas básicas, um burrico triste quase ganhou vida, e no barquinho, a carranca de proa cor de barro, pálida, não assusta nem afugenta os maus espíritos.

Após o pincel irradiar a cor, carranquinhas de bocas muito abertas ostentam línguas vermelhas e carapaças. Do lado, moringas de galinha assistem ao ensaio de pequenos cangaceiros da terra de Lampião em cordéis, em legiões coloridas de vermelho, azul e ocre, onde não pode faltar a sanfona, o triângulo e a zabumba.

Escultura de impressionar gringos. Arte sacra de primeira nos rincões do São Francisco.

Um dragão nos calcanhares de um São Jorge nordestino.

O santeiro, artista da madeira e da cerâmica, dá vida ao barro para a apreciação dos curiosos e para a venda aos estrangeiros endinheirados.

 

 

 

 

 

Ali onde a água não chega, uma palhoça, um pau a pique, um rancho. Um casebre acima não está a salvo das águas altas do de vez em quando.

Os barrancos e as ilhas perenes e intermitentes do curso grosso do rio formam um mesmo conjunto de lugares. Neles o barco atraca, o peixe é preparado e se pratica alguma agricultura itinerante.

Nos barrancos a vegetação suporta a rede e o rancho, abriga os homens do rio. Sob a lona preta: roupas, varais, panelas, apetrechos e caixas de isopor com gelo e peixe.

Velas ainda içadas, emendadas, coloridas. Velas arriadas, barcos enfileirados.

As erosões nos barrancos arrasaram, aplainaram e permitiram fincar, em curvas de nível, uma sucessão de paus na areia. As cordas faziam o resto; amarravam as embarcações, parecia um pequeno porto.

Antes de Sobradinho havia mais barrancos, mais vida nas margens, mais gente de um lado e do outro do rio. Outra geografia se impôs na vida dos antigos barranqueiros das proximidades de Casa Nova, Sento Sé, Remanso, Pilão Arcado e Sobradinho.

Antigos povoados só eram acessíveis pelo rio. Diante da luz elétrica o isolamento diminuiu. A paisagem do povoado deixa entrever a igreja do Santo Antônio, a bicicleta, a criança correndo, cercas rústicas, a gaiola e o passarinho, o cachorro e o porco de rua.

 

 

 

 

 

Às margens do São Francisco, nas proximidades de povoados e cidades muita gente trabalha duro. Sozinhos ou em grupos, sintonizam gestos das mãos, ombros, pernas, pés e semblantes.

Entre os homens, a vista do capitão da embarcação alcança as frentes e aguça o leme. Horas longas, dias de toc toc entre idas e vindas. No ancoradouro, a ponte e a tábua, a carga e a descarga. É hora de limpar e reparar, olhar o motor, o óleo e o gelo. Ir ao bar, pesar e avaliar. Aprovisionar.

Não faltam cocos, morangas e bananas. De mão em mão a melancia vai de uma a outra margem, rio acima, rio abaixo.

Lá longe o rio e a montanha, cá perto a enxada e a terra.

Entre as mulheres, as facas descamam, cortam e limpam peixes entre a água e a areia. Suas pernas e braços seguram, levantam, ensaboam, lavam, torcem, separam e juntam. Nas praias de areia do rio quase azul a roupa vai ficando branca. À tardinha, resta alguma roupa a torcer, na hora que o sol alivia.

 

 

 

 

 

Durante muito tempo vilas e povoados das margens do São Francisco ficaram isolados, mergulhados no esquecimento da subsistência, dependentes dos recursos do grande rio.

Juntamente com os antigos vaqueiros, outros homens rudes, calejados na dureza da pesca, extrativismo e pequena agricultura, sumiram no tempo. Alguns tornaram-se lendários diante das temeridades da água ou das terras conflagradas do cangaço. Brasileiros do longe, dos matos e caatingas, de tribos sobreviventes, dos quilombos dispersos. Caboclos e mulatos, cabras e fazendeiros das posses e das sesmarias, das terras indivisas, dos barrancos do sertão sem fim.

Uma vela ao Bom Jesus, a carranca na proa, a visão da onda na paz das águas, o telúrico e a ternura da companheira, o respeito às horas do rio, o mergulho do sol quente, a terra firme, o remanso e o anzol, o cigarro de palha. São muitas as verdades dos negros, mulatos e brancos, do povo moreno do Vale do São Francisco.

 

 

Ralfo Matos. Professor do Curso de Geografia do Instituto de Geociências da UFMG, pesquisador da área de Ciências Sociais Aplicadas, com experiência em estudos de populaçâo, migração, urbanização, planejamento urbano, economia regional e geografia histórica. Vive em Belo Horizonte.