Soneto a um rapaz republicano

 

"Uma chama nada perde

Quando doa um pouco de si

Mas sim, multiplica sua centelha de vida..."

—T. P.

 

 

Hoje o caminho onde piso é de estrelas:

Nos beijos de calma, posso mordê-las.

Ao toque, enfim, sugar-lhes calor.

Enxurrada de pétalas de flor!

 

Há espelho por entre o brilho e cor,

No qual me vejo em delírio Maior.

— Que lindo barco encostado no meu...

O olhar exato, minha cisma colheu?

 

Sua Revolução na minha cintura

Testas unidas, ligações traçadas:

Anestesiado sono, feito prece...

 

Tenho as mãos da mais doce criatura,

Nos longos cabelos, embaraçadas...

Recostada no teu peito, toda paz acontece.

 

 

 

 

 

 

Poemeto mais doce do Brasil

 

                                Para Rosany Souza

 

Mas hoje haverá um doce poemeto!

Gosto de baunilha e caldo de cana,

Da língua paulista à pernambucana.

 

Bem açucarado como um dueto

Universal, de homens e mulheres,

Fora das gavetas: facas, colheres!

 

Ponha adoçante no café amargo

Derrame muito mel sobre o encargo

Ponha a cereja de Palas em Argo!

 

Maria-mole não é rapadura.

Lambe os dedos e chupa a ditadura,

Que o Brasil engoliu a dentadura...

 

 

 

 

 

 

Novos Versos Valentinianos

 

A casca fibrosa

Do figo que se parte

Em dois

No fálico desabrochar

Que alimenta

 

O cordão gelatinoso

Do umbigo que se parte

Em dois

No tácito desgrudar

Que sedimenta

 

A flecha ardida

Do cupido que nos une

Em um

No cálido sangrar

Que sacramenta

 

O cálice lustroso

Do vinho que se parte

Em dois

No fático tilintar

Que experimenta

 

O lacre espaçoso

Da vida que se parte

Em dois

No clássico limiar

Que reinventa.

 

 

 

 

 

 

Partitura

 

Rupturas

Partidas duras

Na partitura da vida

 

 

 

 

 

 

Verde-Paris

 

Trago nas pupilas

O resíduo arsênico

Do seu inebriante olhar

 

Eu que nunca estive na França

Sei que nem por lá não há

Um mais iluminado lugar

Que duas pontas de lança

 

Ah, os teus cítricos olhos!

De uma verdura tão embólica

Querendo a mistura diabólica

Das harpas angélicas

Dos tridentes bélicos

 

Anjos e demônios estéreis

Histéricos

Abandonando os broquéis

Desnudando sexos

Para abraços esféricos

 

Se consomem no rarefeito

Do defeito

De um rombo

Na chama

Desta cama

Verde-Paris.

 

 

 

 

 

 

Moda de Trova Moderna

 

Esbarro no delinear corporal da cidade:

Barbas, colônias, músculos, vaidade.

Retribuindo olhar Casmurro

Aos incansáveis sorrisos.

O cheiro da noite me lambe a testa

A hora é tarde, cedo para festa.

Gosto da linha da bossa nova

E da agulha do samba velho,

A coserem meu ritmo retalho.

O ópio do ótimo,

Que é íntimo-óbvio, onde andas?

Exista, mesa filosófica ébria!

(Intensa e não-virtual,

Seja feita nossa eventual comédia...)

Pernoitar em lugares onde ninguém dorme!

Mordiscar a lua, compenetrada, enorme!

E o cigarro distraindo as mãos

Obstinadas em segurar os traços vãos,

Sob a face una de ângulos ideais.

Transitar em, por entre a gente, largamente.

No ósculo das malícias liberais.

O tilintar da urina em cervejar no vaso,

Ah, a vida privada! Presidente de si! Rainha!

Mas é de romper e dói essa alegria de ser

Sozinha...

 
 
 
 
 
 

 

 

 

O Trem da Lapa

 

— Jesus foi concebido sem pecado! Envergonhai-vos dos instintos mundanos. Temam ao Pai que tudo vê e tudo sabe. O peso da mão de Deus há de moer os pecadores.

O canto dos fiéis propagava, em volume considerável, a ânsia fervorosa. Sete vezes repetido o refrão de glória aos céus, sete horas da manhã, no vagão 7 do trem da Lapa.

O suor de Célio manchava o colarinho da camisa, agravando a perpétua no antigo uniforme de trabalho. "Por que sexo é pecado? Sexo com amor é lindo. E foi Deus quem criou, não é?". Nem mesmo suco de limão na água fervente com alvejante podiam remover a antiga. O amarelo encardido ganhara todas as batalhas contra a espuma do escovão e contra os esfregaços no tanque de pedra.

Depois do enxágüe, a coloração que fingia desbotar acabava reaparecendo na íntegra, esturricando no varal sob o sol.

Célio olhou o ponteiro do relógio, afastando o punho apertado da camisa com certa dificuldade Faltavam exatamente 10 minutos para as 8h contra três estações e dois inclinados quarteirões para que chegasse ao trabalho. Em dois dias, dormira apenas 2 horas numa maca estreita e dura.

Mantinha a pasta de trabalho presa entre os calcanhares, ligando as pernas em losango. Os sapatos brancos apertavam-lhe os calos do dedo mindinho quando ele jogava o peso do corpo para o pé esquerdo e irritavam-lhe uma bolha na sola direita na próxima gingada de quadril para compensar o cansaço.

O homem que liderava os fiéis olhou fixamente para Célio, abriu as sagradas escrituras e iniciou um sermão em tom enérgico e redundante. O trem parou na próxima estação e uma manada de gente adentrou o vagão. Célio tentava manter a mão segurando o cano coletivo, frio e escorregadio de suor. Estreitou, trêmulo, a flâmula das pernas. Não pretendia irritar-se com seus irmão de ordem e progresso, afinal, a luta diária de todos os trabalhadores era a mesma que a dele. A luta contra o término da mancha amarelada no colarinho, em nome de, quem sabe, uma alva aposentadoria. Mas acima de tudo era o amor que o movia. O trem sacudiu lento e seguiu cortando o vento em ritmo calmo. Velocidade reduzida, economia de vagão. Tal como os amontoados judeus para os campos de concentração, as pessoas permaneciam imóveis, submissas e solidárias.

Pessoas, cestas básicas, sacolas, isopores com croquetes ou água mineral genérica (torneiral) de um real, amontoaram-se junto à porta para o desembarque na próxima estação. Tal como desentupimento, o efeito sanfona dos corpos teve um fôlego na descontração muscular.

O grupo religioso pôde levantar-se, em massa, as senhorinhas apoiando-se desesperadamente nos outros passageiros, a cada solavanco do trem.

Célio acreditava em Deus, mas de uma maneira muito particular. De certa forma, acabava escutando um ou outro verso do ritual matinal e tomando conclusões para si. Até que o pastor, já íntimo do anônimo que presenciava seus cultos diariamente, aproximou-se de Célio, promovendo um breve debate sobre os pecados do mundo. Classificou os demais expectadores como criaturas sob influência do "coisa ruim", suscetíveis as tentações dos prazeres mundanos.

Quando fixou os nervos dos olhos na retina de Célio, soltou uma espécie de profecia irrefutável. Seria um desgraçado por toda a vida se não aceitasse Jesus. Gotículas de saliva do homem explodiam ao tombar da língua na cavidade bucal, espirrando violentamente na testa de Célio. "O dízimo! Contribui com o dízimo, filhote do pecado?". E a tempestade de baba aproximava-se como uma nuvem nebulosa e veloz. "Não adentrarás o reino dos céus!".

Era sexta-feira e o turno da enfermagem renderia até a madrugada. A cabeça de Célio latejava aos mistos de cânticos dramáticos e o líquido falatório do porta-voz do Pai. Ele achava que Jesus tinha sido um cara legal, que aliás, quem quisesse de verdade, podería ser como ele. Sentiu formigar a paciência junto com os dedos. "Por que o senhor não vai cuidar da sua vida? Pintar paredes? Encher lajes? Participar da reunião do seu filho na escola?". As palavras fervilhavam atrás da barreira de dentes. "Você vai pro inferno, filho. Você vai arder lá. Tsc Tsc Tsc. Todo dia eu te vejo aqui e sua vida é sempre igual porque você não busca Deus". Abanou a cabeça agravando o ar de desgosto. Célio conhecia o peso do violento estupro moral.

Finalmente a terceira estação chegou, Célio desceu do trem. Embora um tanto constrangido e atrasado, extremamente aliviado.

Enquanto subia o impiedoso e vertical quarteirão, sentiu um acréscimo de pena à raiva pelo glauco homem pregador e pelo seu rebanho de ovelhinhas obedientes.

Afinal, era ele quem estava fazendo o trabalho pesado, era ele! Enquanto o eloqüente homem apenas fazia a propaganda vaidosa de gozar purezas com o pau do sagrado. Da próxima vez, diria ao homem que era dele grande parte de culpa! Que ele prometia incertezas aos homens.

 

 

 

 

(imagens ©andrze jobczyk)

 

 
 
 

Thalita Pacini (São Paulo-SP, 1983). Com formação em Letras, é poeta e colabora com artigos em diversas revistas eletrônicas e sites. Dentre eles: Página Dois, Troça, Katatudo. Edita o blogue Efervescência.

 

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