fabrício carvalho, TransObjeto (detalhe), intervenção, brasília, 2008, foto de fabrício carvalho
 
 
 
 
 
 


 

O poema

 

 

E muda o trem em metáfora quando,

do menino, o menino desentende;

pode-se dizer prolifera em ângulos,

qual rascunho de autor indestro ou doente

por não saber as curvas de aplacá-lo,

nem as retas onde o corpo demora,

até atravessar, sem cancela ou calos,

a distância que, em outros, o desdobra.

 

Também metáfora, menino escreve-se

todo lacunas, emendas, erratas;

escreve-se para queimar a carga,

até restar apenas seus tês e erres:

no trem traduz tanto o outro trapézio

(tal a estrofe três deste texto trata),

quanto a escrita que um morto arremata

com sua rubrica trêmula de pregos.

 

 

 

Razão

 

 

O convite de José Aloise Bahia para participar da coluna A Genética da Coisa com um texto acerca das operações de escrita do livro Um dia, o trem (São Paulo: Nankin Editorial, 2008) chegou-me acompanhado da sugestão de abordar especificamente o poema "Trem-Metáfora".

 

Como o acaso tem um caos dentro, não tentarei encontrar as razões que fizeram o responsável por esta coluna indicar entre as quinze seções deste livro-poema exatamente aquela que primeiro foi escrita no já distante ano de 2000. Talvez porque, dentre todas, seja a única que conservou o vigor inicial do que era desejo e se cumpriu aquém. Talvez porque seja a abreviatura poética do que, nas demais, não alcança senão um desdobrar prosaico e prolixo. De qualquer modo, contaminado pela sugestão de José Aloise, embora apenas tangenciando-a, o que posso é oferecer aos leitores de A Genética da Coisa algumas confissões desta oficina. 

 

Não são poucas as ficções que derivam de e para o poema-livro Um dia, o trem. Origem não há, mas posso mudar em fábula tanto o convite de um amigo no sentido de fornecer-lhe algum poema sobre trem para um espetáculo teatral jamais levado à cena, quanto à epígrafe — "A infância é ferroviária" — encontrada em certa crônica de Paulo Mendes Campos, incluída numa antologia que me emprestou o mesmo amigo, talvez com o intuito de garantir o texto prometido. Tais circunstâncias, ainda que de modo velado, são registradas na edição do livro. Assim, na dedicatória consta o nome do autor do convite acima citado, enquanto em nota rubrico o período de elaboração do poema — o qual, por demasiado, não me permitiria atender à demanda teatral —, bem como a função motora da epígrafe do cronista mineiro.

 

Iniciei o poema Um dia, o trem em Cabo Frio durante as férias de julho de 2000, concluindo-o na cidade de Juiz de Fora em meados de janeiro de 2004, com alguns poucos acréscimos e muitas correções posteriores. A crônica de Paulo Mendes Campos, que este poema "aciona e epigrafa" (conforme aludo na seção "Mesma água"), foi publicada sem título na Pequena antologia do trem: a ferrovia na literatura brasileira, organizada por Laís Costa Velho (Rio de Janeiro: RFFSA, 1974).

 

A tais fabulações, embora o lugar-comum, posso acrescentar a infância ferroviária que me faltou, uma vez que, nas palavras de Michel Foucault, "a ausência é o lugar primeiro do discurso". Quando muito, tive férias ferroviárias. Já que restara na cidade natal (Pirapetinga) apenas as ruínas da estação, adornada de um cúmulo de dormentes, trilhos e vagões carcomidos, o trem atravessou a minha infância na narrativa dos adultos ou nos verões férreos e feéricos de um município vizinho — Recreio —, cujo nome diz per se a substância do lugar e do tempo. Por contaminação e tangência, a estrada de ferro figura nas memórias inventadas da minha infância, desdobrando-se na poesia em metáforas que rivalizam com aquelas outras que denomino costureiras. Não por acaso, são estas as imagens com que se desvela os modos e manobras da escrita de Um dia, o trem:  

 

Nesta escrita, difícil operar

senão ao modo de, como por agulhas,

sejam as que, entre a hora e o lugar,

decidem se a linha míngua ou demuda

(ao foguista cumpre apenas queimar),

sejam aquelas que emprega a costura

e de viés ensinam a mão a chulear

onde nos punge o poema, suas rasuras.

 

São duzentos e quarenta e oito versos em trinta e uma estrofes, agrupadas em quinze seções de duas e a última com apenas uma estrofe. Não há qualquer rigor métrico ou rítmico, embora a prevalência do decassílabo e das rimas toantes. Tal costura deriva do "duelo do metro com o acidente", através do qual o poema realiza a convergência do cálculo do discurso paterno e das desmesuras de uma fala menina, do tempo perdido do adulto e do presente puro da criança, do vocabulário algo culto do poeta e das palavras simples da infância. Assim embaralhadas e confundidas, tais vozes intentam narrar — este talvez o logro maior destas ficções — a morte simbólica do pai ante a aparição abrupta do trem.

 

Não há aqui o pai maiúsculo de Freud ou Kafka, pois indecidível entre "o menino que foi e nele avulta" e a ciência "dos muitos nãos / com que a madureza nos apouca", entre as lembranças da infância ferroviária e as pequenas mortes que atravessou para estar ali, de mãos dadas com o filho. Daí o "escrever por agulhas" que intitula a décima seção do poema: reunir duas margens, costurar duas vozes, vizinhas e estrangeiras a um só tempo, "porque nunca se trata da mesma água", embora fluindo no mesmo discurso-rio. Ao menino, "sem palavras ou peias", importa a matéria trem, "aquela demasia de ferro e fuga, / crescida de suas próprias engrenagens, / qual foguete quando no céu se abre", enquanto ao "pai menor" resta apenas mudar menino e trem em metáfora, em linguagem. Porque ainda quando "passar o menino a limpo e a luto" seja apenas "um acidente de percurso" e não a "cura do desacordo / entre a mão que escreve e a com que assino", a textualização da infância opera como um modo de adiar aquela outra morte, "maiúscula e cabal". Ou, ao menos, fazer dela também metáfora, figura de linguagem sob controle:

 

Há de entender o leitor tanto adiar,

pois o menino no adulto demora

conforme uma medida que lhe é própria:

não marca tempo, nem guarda o lugar.

Aponta a morte com o riso fácil

de quem, com o que foi e o que deveria,

reúne em si duas margens e, à revelia,

publica aqui outra edição do desastre.

 

Às linhas autobiográficas e ficcionais desse bordado de muitas pontas soltas e arremates precários, acrescente-se ainda a metalinguagem. Pois para traduzir o menino na bitola lírica, cumpre ao poeta fazê-lo conforme as lições da infância ferroviária, qual seja, os modos "como no texto se dá a forma-trem":

 

Trem é texto quando encontra desvio

ou nos surpreende em meio ao pontilhão,

e da origem as pernas se desdão

para o mundo acomodar neste livro.

Mas texto é menos trem que o enguiço

de saber que no verso desembarca

apenas a prosa dessas coisas arcas

com que o menino se salva do olvido.

 

Seja a prosa como dormir num trem

e a poesia quando a aduana sobrevém:

naquela, até o sonho encontra sua reta,

enquanto nesta, nos sacode e esperta

uma voz de si mesma estrangeira

— e como fosse toda ela suspeita,

a bagagem uma outra mão desfaz,

mão que vacila entre linhas rivais.

 

Na tensão entre poesia e prosa, entre cálculo e desastre, entre madureza e infância, Um dia, o trem desenreda a meada de memórias e vozes. Tal fora a crônica de uma morte anunciada e sempre adiada pela palavra fantasmática do menino que vigora na figura paterna e a desdobra em suas muitas ficções. São esses artifícios necessários para que o poema, corpo sem origens e avesso ao autor, seja o lugar onde dizer da criação é vencer a morte, ainda que no precário domínio da linguagem. Mesmo quando um "corpo discorde", tem por motores a urgência e o impudor que faz esplender a escrita, seus intestinos, suas misérias. Porque urgente também é o trem que baralha as linhas deste autor/leitor e, despudoradamente, inaugura o horizonte que, para além do livro, nos reúne.

 

 

outubro, 2009
 
 
 
 
FERNANDO Fábio FIORESE Furtado Nasceu em Pirapetinga, Zona da Mata de Minas Gerais. Vive em Juiz de Fora (MG). Escritor, pesquisador, ensaísta e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Possui poemas, contos e ensaios em vários jornais, revistas, sites, coletâneas e antologias no Brasil, Argentina, Espanha, EUA, França, Itália, Portugal e Suiça. Dentre outros livros, publicou Dançar o nome (antologia poética em parceria com Edimilson de Almeida Pereira e Iacyr Anderson Freitas, 2000), Corpo portátil: 1986-2000 (reunião poética, 2002), Dicionário mínimo (poemas em prosa, 2003), Murilo na cidade: os horizontes portáteis do mito (ensaio, 2003) e Um dia, o trem (poesia, 2008), edição comemorativa dos 25 anos de publicação do primeiro livro do autor.
 
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