Eterna presença

 

Tinha aprendido que quando alguém morre, as janelas devem ser abertas para a alma poder sair. Achou que o inverso seria verdadeiro. Medo de ficar só, queria que a família ficasse com ele para sempre. Em uma noite de inverno, janelas fechadas, esperou que dormissem e abriu o gás. Bem agasalhado, passou a noite no celeiro. Ao voltar, certificou-se que dormiam. Deixou uma fresta pequena, velada pela cortina, para que o cheiro voltasse a ser bom. Não tinha medo de almas.

 

 

 

 

 

A Coca

 

Quando menino, a mãe o embalava para dormir. Ficava livre da Coca e o sono chegava manso. Mais tarde, corria das luzes das abóboras nas janelas e jardins. Hoje, no quarto do sanatório, embala o pobre corpo quase destruído e canta baixinho — "Vai-te coca, vai-te coca pra cima do telhado, deixa este menino dormir sossegado".

 

 

 

 

 

Pequena grande morte

 

Ludla Zatyrko amava filmes dramáticos. Quando havia perigo, o sangue esquentava em suas veias e ela se excitava tanto que tinha orgasmos múltiplos, a ponto de perder o fio da história. Então, repetia a cena e economizava no aluguel dos filmes. Bastava olhar para a tomada onde a moça apontava arma para um invisível assaltante, que tremia inteira e gozava até quase perder o ar. Uma noite, um pobre ladrão escondeu-se em seu miserável quarto ameaçando-a com a arma. Ludla morreu na hora, aos gemidos, e o homem foi condenado por assassinato.

 

 

 

 

 

Porto final

 

Caminhava pelas areias colhendo conchas e pedaços de vida marinha. Em sua cabana enchia cestos e mais cestos com as quinquilharias cheirando a sal. Entre os lençóis colecionava dores e partidas, perdas e desencantos. Quando sentiu que chegava a seu porto final, espalhou tudo pelo chão, sacudiu os lençóis e chorou muito, chorou tudo e tanto que se fez oceano.

 

 

 

 

 

Em acordo com o céu

 

Órfã de mãe, procurou crescer independente, preocupada em não dar despesa e nem trabalho a ninguém. Muito jovem, assinou autorização para que seu corpo fosse cremado e as cinzas espalhadas ao vento. Não podia imaginar pessoas cuidando de seu corpo e carregando o peso de seu caixão. Só não havia, ainda, conseguido juntar o dinheiro necessário para tanta burocracia.

 

A enfermeira acabara de cerrar suas pálpebras quando a tempestade caiu sobre a cidade. O raio entrou pela janela do quarto e reduziu a cinzas o corpo inerte, a cama e tudo à volta.

 

Antes que algo pudesse ser feito, uma forte lufada de ar apagou o fogo e dispersou as cinzas.

 

 

 

 

 

Eternidades

 

Alisando a escultura que estava prestes a terminar, a artista pensava com certa melancolia: Depois que estiver pronta, ela será bela e jovem para sempre... Enquanto isso, de dentro da fria pedra, a alma da criatura desejava ter, nem que por instantes, um pouco do calor das mãos que a esculpia.

 

 

 

 

 

Uma outra visão

 

Ainda jovem, uma doença o deixou quase cego. Um dia, já na meia idade, amanheceu enxergando a vida de forma feminina. Olhava-se com uma auto-estima que desconhecia! Havia recebido, por transplante, as córneas da esposa que falecera.

 

 

 

 

 

Crime ou suicídio?

 

Assim que seu personagem soprou a poeira dos documentos que havia encontrado, o escritor teve um grave acesso de tosse. Cianótico, parou de respirar e não mais escreveu. O conto, incompleto, tornou-se a causa de sua morte. Jamais se esclareceu se os documentos estavam envenenados ou se houve apenas uma reação alérgica. O autor do sopro não pôde ser indiciado.

 

 

 

 

 

Menina Sirena

 

Era uma menina alegre e vivia cantando até encontrar aquela concha. Nascida longe do mar, aquilo lhe pareceu um "presente muito especial". Só que, desde então, não mais sorriu nem cantou.

 

A pequena peça branca lhe trazia sonhos maus. Olhando-a, sabia que fracassara. Sua alma era inundada por um sentimento terrível junto à imagem daquele homem amarrado ao mastro do navio, surdo ao seu canto, imune à sua sedução.

 

 

 

 

 

Absurdo

 

Um virus desconhecido disseminou-se através dos aparelhos celulares causando surdez absoluta e quase imediata nos habitantes da cidade. Entretanto as pessoas podiam ser vistas com seus telefones ao ouvido, gesticulando e falando, como de hábito, sem que percebessem o ocorrido.

 

Muito tempo antes da contaminação a imensa maioria já havia desaprendido o escutar.

 

 

 

 

 

A boa ação

 

Crescera entre mulheres solitárias e conhecia suas dores. No lugar onde vivia, elegeu duas solteironas e passou a enviar-lhes cartas de amor. Na madrugada, deixava sob as soleiras seu presente amoroso, ora contendo uma flor, às vezes antigo e sugestivo cromo. Quando as via de soslaio entre as cortinas, debruçadas nas sacadas ou saindo às ruas com um sorriso nos lábios, voltava à casa satisfeito. Foi assim até sentir-se cansado e doente. Precisava encerrar a corte solitária sem causar sofrimento. Suas últimas cartas foram entregues, acompanhadas de um bom-bom delicadamente impregnado com cianureto.

 

 

 

 

 

Jack, o escritor

 

Sempre desconfiou de algo sombrio no passado do pai. Chegando à adolescência, depois que ficou órfão, começou a ter impulsos estranhos e perturbadores. Passou a escrever contos terríveis cujas vítimas eram mulheres impiedosamente destroçadas nos becos da cidade. Sentia intenso prazer enquanto escrevia e muita paz ao terminar cada história. Embora não compreendesse bem o que ocorria, tinha certeza de que esta era a melhor forma de exorcizar seus perigosos instintos.

 

(imagens ©sight)

 

 

 

 

 

Angela Schnoor (Rio de Janeiro/RJ). Psicóloga, publicou os primeiros minitextos em 2001, nos "300 toques" do fanzine Falaê. Colabora com Minguante e Veredas, revistas eletrônicas, dedicadas à minificção e edita o blogue Microargumentos, uma publicação exclusiva de seus minicontos, também editados na Espanha, Argentina, e Itália. Participou das coletâneas Contos de algibeira, da editora Casa Verde-RS, e Entrelinhas, organizada pela Editora Andross-SP. Tem contos publicados na Letrário Editora — consultoria em língua Portuguesa; o e-book Na barca de Caronte, publicado por pela revista Minguante e Anima — contos femininos, publicado no site Calaméo. Em junho de 2008, pelo Espaço SESC, promoveu e organizou o primeiro evento sobre minicontos do Rio de Janeiro, "Minicontos e muito menos", com a participação de Laís Chaffe e Marcelo Spalding, escritores gaúchos. Edita o blogue Ideália, dedicado a contos e poemas.