Não me venham confundir com contradições!

Logo que falamos, começamos a errar

(Goethe)

 

Manhã de domingo. O fusca bege e cinco camaradas. Entre a utopia e a desordem — isto seria uma blasfêmia entre os ingênuos e anacrônicos revolucionários da nossa taba — Eu aplicava sua verve insuportável para combater o questionável tempo de apertura/abertura política. Início dos anos 80...

 

A Nicarágua do primeiro Ortega e a FSLN; dom Pedro Casaldáliga e sua Araguaia; padre Reginaldo Veloso e seu Morro da Conceição, no Recife, e a canção censurada ao padre Vito Maracapillo, que se negara a celebrar a missa de nossa independência (sic); a chacina de sete dirigentes da Central Obrera Boliviana-COB; Leonardo Boff, Frei Betto e o legado de Frei Tito; os encontros nada clandestinos no Seminário da Prainha... tudo, tudo levava a crer que a utopia continuava acesa, pira incandescente de uma ingenuidade catastrófica. Eu metia-se no final perverso da safra de subversivos, mas sem deixar de lado a inconseqüência anarquista acautelada, ora pelo medo visceral de todos seres, ora pela irreverência contrária a qualquer atitude grosseira ou estritamente revolucionária. Enfim, um burguês, diriam alguns.

 

Pois, então, essa lembrança externada desde a mesa 11, da Oh! Linda Pousada, do Geraldinho Menezes, nas falésias da confluência das comunidades de Redonda e de Peroba, em Icapuí, vem atiçar a desenvoltura do pensamento.

 

Naquele fusca bege, quantas vezes Eu dirigiu-se a Maranguape... Subir à serra, abrir picadas, criar novos caminhos, vislubrar possibilidades de esconderij, os, bases de apoio para futuros rebeldes ou criar regras para uma formação de selva, treinamento ingênuo e ineficaz?

 

Daquela vez, o intuito fora diferente. O objetivo era, por intermédio de outra prática atingir uma instância de engajamento que favoreceria o resultado final da luta anônima, que não tinha, certamente, uma identidade, senão uma conquista a ser repensada. Isto seria novidade dentro do espírito da dita esquerda, combalida e reprocessada a custos infantis.

 

Naquele domingo, deixando de lado o pretenso treinamento para guerrilheiro, cortando a facão todo o mato que aparecia pela frente, como se fora um inimigo intermitente, Eu seguiu com sua camaradagem ao futebol — mesmo sendo, como a religião, um ópio desabrido do povo. Nem se lembrava das vezes anteriores, em que se aventurava no precipício da Pedra Rajada ou nas encostas que levavam às paredes da antiga senzala.

 

Naquele dia, ninguém queria se lembrar da pedra jogada pelo futuro padre Mont’Alverne contra as costas de um Antônio Jackson... Isto foi fruto de uma celeuma sem  conta, mas que se consagrou pelo perdão; ninguém queria se lembrar dos garrafões de vinho São Brás carregados aos ombros ladeira a cima, à guisa de exercícios físico; ninguém queria se lembrar do aquecimento excessivo da bateria sob o banco traseiro do fusca de Eu, em ida anterior, rebuscada pelo apetite sapiente de um Ricardo Durval, vítima e solucionador da pendência, como não poderia deixar de ser; ninguém queria se lembrar da imagem à esquerda de todos os pensamentos. Afinal, estavam, Eu e os outros, imbuídos do propósito único de satisfazer os egos.

 

Naquele dia, a tônica era fortificar relações com futuros camaradas, mostrando-se bravos e resistentes. Entraram em campo dispostos a lutar bravamente, como se tivessem que libertar a nação de todos os infortúnios. Eu, solenemente, naquela manhã, estava tão sóbrio, feito um diplomata em solenidade de recebimento da medalha do Barão. Aos três minutos de partida, invadido por uma sensação de revanche do aparelho repressor, Eu aplica um chutaço na pelota de couro que atinge uma cerca e logo uma explosão se faz ouvir, a lembrar do tempo em que alguns insanos detonavam bancas de revistas no centro da cidade. Era uma vez a bola...

 

Uma outra foi colocada em jogo e, passados não mais que seis minutos, Eu novamente acerta um tirombaço na mesma direção da cerca e outra explosão dá por encerrada aquela partida, a talvez mostrar que aquilo não era atitude compatível com a ordem vermelha. Futebol era mesmo um anestésico para a alma da revolução. Onde já se viu pernas-de-pau salvarem um país? Não precisa contar do corredor polonês formado para o estraga-prazeres.

 

Na mesma marcha de ida ao campo de batalhas quixotesco, o retorno dos cinco camaradas à capital. Mudos, insatisfeitos, carrancudos, prestes a retornarem de uma falsa clandestinidade aos seus afazeres semanais, até que chegasse o próximo sábado para mais uma reunião na Fumaça, ou em Bombinha, entre o Pici e o Jockey Club. Afinal, salvar a pátria era um desejo de Eu, que só não queria ser flagrado por um falso companheiro e seu gravador camuflado, aquele dedo-duro, mas esta é outra história...

 

No fim das contas, o mundo continua o mesmo. Os camaradas continuam clandestinos dentro de si mesmos; Fortaleza continua provinciana e metida a soçaite; e Eu continua a tentar esquecer do cano frio da metralhadora em um trem andino e da falta de atitude que o tornara um covarde sem revolução, contraditório em seus próprios erros de cúmplice de uma juventude silenciada.

 

 

 

março, 2009