©evilazio ferreira
                                                                     
  

 

"Este coração, em mim, posso senti-lo e decido que ele existe.

Este mundo, posso tocá-lo e decido ainda que ele existe.

Aí pára toda a minha ciência, o resto é construção."

(Camus, in: O mito de Sísifo. p. 177)

 

"Sou uma pessoa em sintonia com o mundo desconhecido

e a minha própria norma de vida, como aventureiro,

foge ao comum das coisas."

(José Alcides Pinto)

 

 

O processo literário orienta-se geralmente pelo resgate de autores, pela revisão de obras e pelo estudo analítico-reflexivo de parâmetros, embora seja comum postergar olhares à contemporaneidade e a seus encaminhamentos, mesmo que já consolidados.

 

Tentamos com esse repensar relevar algumas expectativas em torno de poéticas narrativas bem definidas, como é o caso a do escritor e poeta José Alcides Pinto.

 

Admite-se que uma das maiores dificuldades para um escritor é definir o percurso da sua narrativa, o que exige domínio da própria trama e dos artifícios que irão modelando a construção textual.

 

Dessa forma, avaliamos que o escritor nunca deve domesticar as palavras. Há que se permitir com elas a fúria, a anarquia, a libertinagem e a ruptura para, enfim, paradoxalmente, mantê-las vivas no calabouço dos textos. Na verdade, o escritor deve, nem que por decreto pessoal ou mesmo desaviso, sugerir-se um estado paranóico, a fim de validar o grito ou a candura — às vezes, uma forma de violência — da sua escritura.

 

José Alcides Pinto é um escritor de inspirações satânicas. Influenciado por "malditos" e "iluminados" — Artaud, Lautréamont, Byron, Poe, Rimbaud — apropria-se de uma mitologia e delírios próprios que satisfazem a sua poética. Na prosa, fictícia ou semi-fictícia, parece herdar os motivos e concepções de Camus, Genet e Henry Miller, sem esquecer, naturalmente, o tcheco Kafka. É um literato de amplas possibilidades, liberto de preconceitos, chegando a tornar-se incômodo aos castos e puros.

 

O autor, fecundo, conta com cerca de 50 títulos — poemas, romances, novelas, contos, ensaios e, mesmo texto teatral — nasceu em São Francisco do Estreito, distrito de Santana do Acaraú-CE, em 1923, de onde parece nunca ter saído, pela memória sempre reinventada a partir de sua ancestralidade. Viveu no Recife e Rio de Janeiro e exerceu diversos cargos universitários, até abandoná-los para dedicar-se à literatura. Encantou-se, de forma veemente, em 2008 e foi parar junto de seus pares transgressores, possivelmente em um infinito recriado por ele próprio. De seus tantos e instigantes livros, destacamos os romances da "Trilogia da Maldição" (O dragão; Os verdes abutres da colina e João Pinto de Maria) e, na poesia, Os cantos de Lúcifer.)

 

Mas, para delimitar nosso olhar, destaquemos as narrativas curtas recolhidas na obra Editor de insônia e outros contos (UFC, 1997), organizada pelo contista Pedro Salgueiro. Trata-se de um livro que encerra dimensões estéticas cujas categorias que mais se ajustam a ele, a nosso ver, seriam a do absurdo e a do grotesco.

 

Albert Camus condiciona que o mundo absurdo é aquele cujos atos são destituídos de nobreza, significando dizer, desta maneira, que ao ser humano não deveria ser permitido qualquer tipo de consentimento a esse mundo.

 

Seguindo esse raciocínio, destacamos ainda a partir de Camus que o homem absurdo "Reconhece a luta, não despreza em absoluto a razão e admite o irracional. Cobre assim com o olhar todos os dados da experiência e está pouco disposto a saltar antes de saber. Sabe somente que nessa consciência atenta já não há lugar para a esperança."1

 

Vale, portanto, dizer que no absurdo razão e não razão são apenas esteios de uma mesma percepção estigmatizada.

 

Aqui, já podemos anunciar, relevando a percepção de José Lemos Monteiro, a partir mesmo da obra do escritor Entre o Sexo: a Loucura e a Morte (1968) que a obra alcidiana pode ser definida nestas três palavras reprisadas: sexo, morte e loucura. Afirma o crítico que "Esses três motivos se sujeitam a uma concepção fatalista da vida, decorrente da certeza de que tudo é em essência absurdo. A morte é fatal, o amor é fatal, a loucura é fatal. Nada na vida humana tem sentido e a única maneira de evitar o suicídio é viver o absurdo, nem estado de alienação total ou de sonho."2

 

É inevitável não perceber a relação entre a conclusão de Monteiro a partir do pensamento de Camus, ao que vislumbramos ser motivado mais pela consciência do onírico e da certeza alienada que se revela a percepção delirante de Alcides Pinto.

 

Destaquemos um fragmento do conto "Inspetor" para demonstrar a revelação de uma personagem, em discurso direto, sobre sua relação com um urubu-rei, que serviria de excentricidade gastronômica oferecida aos familiares reunidos:

 

            — Este é um monstro, Frederico. Você verá, embora uma vez na vida, como se come carne de urubu. É um lorde. Foi criado com mel e aveia. De líquido, só bebe vinho. Não ingere outra coisa. Um dia dei-lhe um pedaço de pão-de-ló, indigestou, passou a tarde vomitando. Tive que chamar o médico. Possui o estômago muito sensível. Você pode imaginar como é cheia de luxo essa gente nobre. Creio que vou sentir muita falta desse sultão. É quem me faz companhia quando a mulher vai ao cinema com os meninos. Ponho-o no poleiro. Faço que vou arrancar-lhe a cabeça com uma bala, mas pouco importa. Fica amuado. Indiferente ao estampido. Esse altruísmo é que me enerva. Estou me cansando dele, Frederico. Tenho gasto uma fortuna para alimentá-lo. Veja que não atiro de brincadeira. Para não sentir-lhe a falta (nunca empregava a palavra saudade), incendiarei as penas.3

 

Percebamos as discrepâncias da fala da personagem, à vista da pretensa normalidade de nossos parâmetros: comer carne de urubu não é, de fato, uma exigência de nossos hábitos alimentares. Pelo contrário, não há qualquer desejo nesse sentido... A forma de criar o pássaro, os cuidados com ele, a sensibilidade improvável do seu estômago, a camaradagem paradoxal — companhia versus possibilidade de eliminação por tiro —, e a estranha formulação para não sentir a sua falta, incendiando-lhe as penas. 

 

Este exemplo, dentre tantos outros, insinua que o absurdo revela um universo improvável, impossível, mas que, no entanto, a tudo concede a possibilidade de desmoronamento, quer sejam de idéias, de verdades, de conceitos ou de esperança, levando ao estranhamento do que se revela como a circunstância da "nadificação".

 

Por sua vez, a categoria grotesco, aqui conceituada por Wolfgang Kayser, revela-nos que nele:

 

            "o mundo alheia-se, as formas distorcem-se, as ordens do nosso mundo dissolvem-se [...], um mecanismo medonho parece ter caído sobre as coisas e os homens. O decisivo é que este alheamento do mundo nos rouba o terreno de debaixo dos pés e não consente qualquer interpretação de sentido; qualquer pathos [sofrimento, emoção] ou qualquer apelo à compaixão pelas vítimas poria em perigo o grotesco..."4

 

Podemos verificar que há, de fato, uma confluência entre a possibilidade do grotesco, desse "alheamento do mundo", e a condição do absurdo, embora seja possível destacar mesmo uma nuança paradoxal entre essas categorias. Ou seja, se o grotesco se destitui de sentido, o absurdo se forma pela consciência que se despreza. Se o absurdo nasce do confronto entre um fato consciente, entre sua realidade e uma ação que ultrapassa esse estado de coisas, o grotesco pode ser o resultado dessas não limitações.

 

Anatol Rosenfeld acentua que o grotesco pode ser definido como aquilo que se impõe como macabro, excêntrico, obsceno, e "invade nossa realidade cotidiana", tornando-a absurda, descomunal, subvertendo uma ordem ontológica.5

 

Exemplificamos com um excerto do conto "O carteiro", narrativa que valida a consequência da brutalidade humana, no sentido da paixão inversa ao que, comumente, se tem como feição do sublime e do belo:

 

            Marisa voltou-se para o espelho, metido no esteio da parede. Penteou os cabelos lisos. Soprou os pedaços quebrados nos ombros, lambeu a ponta do indicador e limpou a leve penugem do rabo do gato que lhe ficou no nariz. Estirou a língua. Cerrou os dentes e observou os incisivos superiores cariados. Pereirão havia-lhe prometido mandar tratar dos dentes, botar coroa de ouro, o que mais necessitasse. Mas, em verdade, aqueles pontinhos escuros o irritavam quando ela se punha a rir. E isso exercia, em seu espírito, uma atração irresistível. Eram diabólicos, cretinos até, aqueles pontinhos. Não, não os mandaria limpar, nem que Marisa levasse ao diabo.6

 

Em sua dissertação de mestrado, Paulo de Tarso (Pardal) insere que

 

            O grotesco, na ficção de José Alcides Pinto, revela-se através de vários elementos, onde o riso muitas vezes se impõe porque não há outra maneira de explicar o comportamento dos personagens. A visualização do monstruoso traduz ora a angústia da morte, ora a impotência frente à natureza dos acontecimentos.7

 

A exemplificar esse olhar, o conto "Cuí-Qui", em que se assenta a possibilidade de uma inversão de valores, em que uma personagem, em sua velhice, orienta-se para o trato com tudo aquilo que é considerado abjeto, mas ao mesmo tempo "aluada", não se dá conta das coisas do mundo. Transcrevemos o conto em sua totalidade:

 

            — Deixe as muriçocas em paz, menino. Ninguém sabe o que é inseto, ninguém sabe o que é bicho.

            A tia não queria que matasse os insetos, afugentasse os bichos. As baratas voavam na cozinha, caíam na xícara de leite.

            — Ninguém sabe o que é inseto, ninguém sabe o que é bicho.     

            A loucura da tia, a casa em desordem, virada pelo avesso. Moscas, baratas, ratos, como donos da casa, invadindo tudo, roendo, roubando, destruindo.

            — Tia, viu minhas meias?

            — Procure, menino; procure. Não criaram asas. Estão n’algum lugar.

            — Botei dentro dos sapatos, vai ver que os ratos levaram.

            — Não levaram, menino; você precisa amar os bichos. Sua mãe não lhe queria assim.

            — Pois bem; eu quero agora as minhas meias e não encontro. Não encontro porque os diabos dos ratos são os donos da casa.

            — Diabos? Não diga isso, menino; não fale assim. O Demônio nunca porá os pés enquanto viva eu estiver. Espere um pouco, tenha paciência, e eu encontro suas meias.

            Saiu pela casa inteira, chouteando nas chinelas de couro, espiando os cantos das alcovas. Acendeu uma vela. Alumiou buracos, frinchas. Meteu a mão num velho urinol fora de uso, e um ratinho escorregou-lhe entre os dedos, e fez cuí-qui ao cair no chão. Ela apanhou o filhote e colocou no fundo do ninho. Voltou ao quarto dele e estendeu-lhe duas cédulas.

            — Compre, menino, na loja de seu Domingos, um par igualzinho ao seu.

            — Juro como um dia destes acabo com esta praga — rosnou o menino.

            — Não acaba, não. Eles são como filhos, como você. Não vê que nunca me casei? Não vê que nunca tive filhos? No dia em que você se casar, o que será feito de mim, sem eles?

            O menino sentiu o azedume das palavras, mas logo esqueceu.

            "No dia em que você se casar..."

            Sua inocência chegava a tanto. Não lhe passava pela cabeça que o sobrinho...

            — A senhora não vê que este menino...

            — Maldade. Por isso o Demônio andava solto no mundo, atentando as criaturas.

            — A senhora não vê que ele é igualzinho a uma menina?

            — É bonitinho, sim; igualzinho à mãe dele.

            As pessoas abanavam a cabeça, desoladas. Ela não compreendia, meio aluada — doença de solteirona, envelhecendo sozinha, numa casa cheia de ratos e baratas.8

 

Esta narrativa pode muito bem servir também de apoio ao que foi identificado tanto por Ivan Junqueira9, como pelo poeta Francisco Carvalho: "é por meio da transgressão que o autor deste livro [Editor de insônia] expressa a sua rebeldia, o seu desencanto e seu pessimismo em face da inexorável degradação do homem".10

 

Assim, ressaltar que a obra alcidiana converge para as extremidades do que se configura como absurdo e como grotesco, é perceber que as evidências da formulação narrativa do autor ousam descondicionar o leitor dos atos e fatos de uma insana humanidade que se quer decente, normal, possível. Na verdade, o escritor se desloca para a invalidade de sentidos, buscando por conta dos estranhamentos, possibilitar acender as luzes da absurda e grotesca realidade que se nos apresenta, adquirindo, portanto, um caráter social, crítico, permeado por graves apelos.

 

Esteticamente, José Alcides Pinto, pronuncia sua visão de mundo, como a destacar as consequências inatas ao processo de absurdidade. Daí seu texto mostrar-se pleno de revolta (ou de ruptura) vezes, camuflada, até contra a hipocrisia; de ânsia de liberdade a conceitos e padrões, em todos os níveis; até evoluir para o marco revelador de todas as crenças, a paixão ampla pela vida transubstanciada em escritura, a partir de mecanismos de distorção de aspectos, quer sejam sociais, morais e éticos, avassalando o senso dos pobres mortais, que se mostra cheio de pudores e de máscaras.

Notas

 

 

 

outubro, 2009