PARA UMA SEPARAÇÃO

 

não, não precisa se levantar, não. você pode ouvir tudo isso aí mesmo, do sofá. e pode fechar também esse sorriso: eu não estou de volta. está ouvindo? eu dirigi até aqui, passei pelo seu porteiro curioso, subi por esse seu elevador cheirando a mofo para lhe dizer exatamente isso: que eu não estou de volta. que você pode ficar com tudo. com seus livros empilhados. com seus discos mal guardados. com suas plantas quase-mortas, por não serem mais regadas. você pode ficar com tudo. com esse seu vaso de flores amarelas de plástico, empoeiradas pelo que vem da janela entreaberta. pelo que vem com o cinza dessa cidade imunda. fique com tudo. com esse seu apartamento minúsculo. com essa caixa de fósforos do décimo-sexto andar. não quero nada. e só achei que deveria saber que você pode ficar com tudo. com os meus beijos e com os meus apertos, inclusive. com os meus carinhos feitos quando eu, tolo, acreditava que você era o que eu andava precisando. nada. não quero nada e só achei que você deveria saber que esta é a última vez que me viu por esse olho-mágico da porta, antes de me espiar por ele, de costas, indo embora, de uma vez por todas, por aquele corredor com marcas de mãos pretas pelas paredes. só achei que precisava lhe avisar que não quero mais nada. que você precisava saber que esta é a última vez que estou pisando nesse seu carpete desfiado. olhando para todo esse caos, que um dia chegamos a chamar de paraíso. não, não precisa se levantar, não. você pode ouvir tudo isso daí, com essa bunda grudada no sofá. eu só passei mesmo pra dizer que não quero nada de volta. nem aqueles beijos todos. eu poderia fazer com que cuspisse um por um, agora mesmo, de joelhos sobre o tapete. mas eles não vão me fazer falta e eu estou com um pouco de pressa. me desculpe, mas eu só passei por aqui realmente pra avisar: não, eu não estou de volta.

 

 

 

 

TROPEÇO

 

Há tanto tempo não usado, encontrei o amor, sem querer. Ontem. Jogado debaixo da cama. Empoeirado. Sem caixa, bula ou manual. Um amor, assim, abandonado. Sujo. Rasgado. Fóssil soterrado. Navio afundado há anos. Casarão com tábuas pregadas nas janelas. Lençóis brancos sobre os móveis. Um amor acostumado com o escuro. Com o frio do quarto fechado. Com a passagem rápida de um inseto no meio da madrugada. Um velho amor largado. Pronto pra ser reciclado. Um amor procurado por toda casa nos lugares errados. Nos armários limpos. Entre taças. Louças. Dentro de caixas fechadas com laços. Sob tapetes varridos. Cantos desinfetados. Um amor chamado no grito. No gemido da febre. No cochicho da oração. Um amor sumido. Necessitado. Um amor que apareceu quando quis. De repente. Em um lugar inesperado. Há tanto tempo não usado, eu, ontem, tropecei no amor. Empoeirado. Sujo. Rasgado. Abandonado debaixo da cama. Um amor que talvez nem funcione mais.

 

 

 

 

METADES

 

Porque, há muito, eu erro a mão. A dose. Esqueço a receita do equilíbrio. O quanto uso das partes que brigam dentro de mim. Há muito, eu me confundo. Porque metade não tem medo e levanta os braços, na descida da montanha-russa. Olhos abertos, enquanto outra acha melhor enfrentar a queda com as mãos na barra. Segurando forte. Espremendo os dois olhos, fechados, desde o começo do percurso. Das travas descidas sobre a barriga. Porque metade prefere brincar na beira da praia. No raso. Enquanto outra não vê problemas em pular dezenas de ondas e nadar onde a pequena bandeira vermelha, agitada pelo vento, avisa sobre o risco. Sobre a possibilidade de afogamento. Porque, há muito, eu erro a receita do equilíbrio. Uso a parte que não deveria na hora em que não poderia. Me confundo com as metades que brigam dentro de mim. Porque parte acelera na estrada, no momento da curva fechada. Pé direito até o fim, enquanto outra freia, bruscamente, ao ver a primeira placa. Seta torta, avisando sobre o perigo. Metade não suporta a burrice, a pequenez, a lerdeza. Outra, sempre calada, tolera a banalidade. Engole a ignorância. Convive com a mediocridade. Há muito, eu erro a mão. A dose. Me confundo com o que devo usar. Porque metade briga. Explode. Aponta o dedo na cara, enquanto outra se recolhe, quieta, debaixo da cama. No quarto fechado. No tudo escuro. Eu tenho uma metade que berra. Outra que sussurra. Uma parte que acredita em finais felizes. Em beijo antes dos créditos, enquanto outra acha que só se ama errado. Eu tenho uma metade que mente, trai, engana. Outra que só conhece a verdade. Uma parte que precisa de calor, carinho, pés com pés. Outra que sobrevive sozinha. Metade auto-suficiente. Mas, há muito, eu erro a mão. A dose. Esqueço a receita do equilíbrio. Me perco. Há dias em que uso a metade que não poderia. Dias em que me arrependo de ter usado a que não gostaria. Porque elas brigam dentro de mim, as metades. Há algumas mais fortes. Outras ferozes. Há partes quase indomáveis. Metades que me fazem sofrer nessa luta diária. No não deixar que uma mate a outra.

 
 
 
 
 

SANTA CEIA

 

Nosso silêncio começa no amém, depois da oração. Agradecemos, de olhos fechados, antes do ruído dos talheres ecoar sozinho pela casa. Não nos olhamos, até que sobrem apenas pequenas migalhas sobre a toalha. Dois estranhos, apesar do mesmo sangue correndo por dentro. Sob a Santa Ceia, mal-pintada, mastigamos, ouvindo o relógio da sala a contar o tempo que perdemos a cada segundo. A morte sentada sobre os ponteiros. Engolimos, de cabeças baixas, sem olhar para o canto. Equilibramos a comida sobre os garfos com medo da imagem de pés descascados, que protege a casa. É no jantar que somos observados por ela. Pelo santo do pequeno altar, que ouve nossas preces, durante o dia. Os pedidos feitos, em cochicho, enquanto se acendem as velas. Se trocam as flores. Enquanto se enroscam as bolas do terço, entre os dedos das mãos. Perdões. Jantamos sob o olhar da imagem, com medo de subir os olhos. Contando os grãos comidos, para que o tempo passe mais rápido. Não suportamos sua onisciência. O enxergar do santo até debaixo das cobertas. Atravessando as paredes. Sabemos que nos conhece. Que nos condena. Que nos culpa. Que sabe por onde passam as mãos do pai, antes da comida servida. Que enxerga todos os dias o escuro do quarto. Que ouve os sons que escapam pelos vãos dos dedos tapando as bocas. Pecado. Não subimos os olhos dos pratos por medo. Vergonha. O santo sabe quem bate na porta de quem. Jantamos calados. Pai e filho. Imagem no canto da sala. Santa Ceia.

 

 

 

 

 

SAÍDA

 

que você deveria saber que eu acabei apenas desenhando esses dois riscos nos meus punhos, sem coragem de pesar a mão sobre os meus braços e fazer cortes mais profundos. que você deveria saber que esses olhos vermelhos são por chorar, escondida no banheiro, sufocando os soluços com a mão, sentada sobre o chão gelado. evitando o espelho para não ver minha cara com maquiagem borrada e lápis preto escorrido pelo rosto como lágrima negra até o queixo. que você deveria saber que mesmo assim, sem forças, eu joguei aquelas flores mortas do vaso e saí para comprar um dúzia de novas, brancas. e que, na volta, eu arranquei os sapatos e acelerei descalça querendo jogar o carro contra o poste e contra o muro e contra um monte de coisas que eu vi pelo caminho. que você deveria saber que eu passei a tarde toda gritando, com a cabeça enfiada no travesseiro, fazendo a voz sumir aos poucos. e que eu quebrei um copo na parede da sala, manchando o bege, cor de nada, com o vermelho do resto de vinho. que você deveria saber que eu saí no meio da chuva, pisando poças e parando sob as goteiras e pedindo para que um raio, apenas um daqueles todos, me acertasse em cheio. eu achei que você deveria saber que eu achei que você deveria saber um monte de coisas, antes de me deixar. que eu mandei trocar as fechaduras da porta enquanto você dormia. eu achei que você deveria saber que com essa chave você não vai embora. que ela não serve para mais nada. achei que deveria saber que agora você só sai daqui se for por essa janela. pulando, assim, como eu

 

 

 

 

 

DANÇA

 

Não foi de repente. Eu fui matando um por um, aos poucos. A cada dia. Devagar. Por isso, não estranho o salão vazio. As mesas, com arranjos de plástico, Rodeadas por cadeiras desocupadas. As velas, intocadas, fazendo poças de cera sobre as toalhas. Por isso, não estranho a orquestra de vinil tocando apenas para que eu ouça. Não estranho o eco feito pelos meus sapatos. Dois pra direita. Um pra esquerda. Dois. Um. Eu danço sem par por ter matado todos os que tive. Não espero convidados por ter eliminado um por um. Aos poucos. Eu hoje festejo minha estupidez. Seguro uma taça no lugar da pedra que sempre carreguei. Faço um brinde à minha impaciência. À incapacidade de suportar a tolice, a ignorância, a burrice. Um brinde à minha falta de prática com os sorrisos falsos. À minha incompetência para suportar situações que não desejo. Lugares que me contrariam. Opiniões que não peço. Vozes que não gostaria de ouvir. Dois. Um. Eu danço sozinho por ter vomitado as pequenas gentilezas que me ofereceram. Os favores recebidos de quem nunca pedi. Eu danço sozinho e não estranho o silêncio no intervalo entre as músicas. A festa vazia não me surpreende. Eu matei  um  por  um.  Com meus  olhares. Gestos. Com a  saliva  respingada  dos meus berros. Gritos. Palavras certeiras como flechas. Assassino, eu matei um por um. Com minha ausência nas celebrações. Com minha aversão a rituais. Com meu isolamento. Com minha falta. O meu não ir. Com meu afastamento. Danço e não espero mais ninguém para girar debaixo das luzes coloridas. No ritmo da música da orquestra de vinil. Foram todos mortos, os que já encheram o salão. Um por um. Aos poucos. Por mim. Sem arrependimento pelos crimes, não estranho o vazio. Me contento com a solidão transformada em companhia. À ela estendo a minha mão e convido. Dança comigo? Com ela festejo minha estupidez. Taça no lugar da pedra. Um brinde. Um giro. Dois pra direita. Um pra esquerda. Dois. Um. Dois. Um.

 

 

 

 

 

(imagem ©paulo lacerda)

 

 

 

 

 

 

Eduardo Baszczyn é jornalista e escritor, autor do romance Desamores (Editora 7Letras), finalista do Prêmio Sesc e do Prêmio São Paulo de Literatura, na categoria 'Melhor Livro do Ano de 2008'. É também um dos novos autores do Núcleo de Dramaturgia do Sesi-SP e escreve o blogue Coisas da Gaveta.