DANÇA PRIMORDIAL

 

Quantas vezes vi a loucura me percorrer cegamente as entranhas?

Lavrando do fundo de um corpo sua flor brutal,

libertando

a dança desregrada que atravessa a voz,

recompondo

na noite o ouro intenso onde a lua faz ressaca.

 

Estou completo em minhas paisagens.

 

De uma vida inteira absorvo a marcha,

canto as estações abertamente,

tocando com o esquecimento as margens,

que se distanciam

e evocam

toda pureza de uma arte. 

 

Quantas vezes essa loucura corrompeu o último enlace

do medo que se abre ao fim de cada feixe de encanto

no alimento obscuro,

colhido do apuro

das visões imensas?

 

Toda obra é terrível e sangra

na memória a sua imagem.

 

No auge insondável desse estrondo,

canto

em volta de uma dor,

o dorso se contorce,

no centro,

multiplicando o gesto,

um eco indefinido devora em travessia

centenas de mundos construídos

e sonhados.

 

Pois a música se apossa da ébria lentidão do meu engano.

 

 

 

 

 

POEMA MÍSTICO

 

Repentino,

na clareira vulcânica da idade,

concebi assim a leitura da memória:               

de que tudo que desata, cresce e morre  

tem um gesto,

um gesto de princípio.

 

Deveríamos chamar ritmo

tudo que nos torna exaltados.

 

Somos tentados a ver dentro do sonho,

assim nos recriamos do que nos causa escândalo,

nomeamos a noite, a tarde e a manhã dos tempos

como fôssemos deuses.

 

Somos ritmo do sonho,

lembrando, vagando,

no fim de cada era,

causando escândalo.

 

Vede, as estrelas,

os frutos das figueiras,

o templo

furiosamente serão lembrados.

Viveremos disso,

dando ao mundo

um nome de batismo.

 

Chamaremos inspiração

tudo que concentra,

avança e se enraíza.

 

Impérios definham.

Somos tentados a dizer que foi um sonho,

um sonho dentro do sonho,  

se concebêssemos tal geometria.

Pois também se lavram as águas antigas.

Vede, as águas calmas

são também colhidas.

 

O sonho não é sonho,

a memória não é memória.

 

Há sempre um Deus a redizer a história.

 

 

 

 

 

LOBOS, MADRUGADA

 

Não te deites com a volúpia presa aos dentes,
se pretendes despertar os lobos.

Madrugada,
o uivo sonda teus ossos.

Alquimia não consiste em acalentar o orgulho.
Os lobos sabem farejar as sombras,
violetas e asteróides
não envolvem seus mundos.

Sutileza,
presa acidentada dos cálculos,
a cidade tem uma cegueira acelerada,
os lobos avançam,
teu quarto tem extremidades impossíveis.

A volúpia brota de ossos cegos,
onde a vida, com seus lábios violetas,
não penetra.

Tu, cadáver de ti mesma,
volúpia acidentada,
não penetres a alquimia com asteróides cegos.
Os lobos te envolvem, no lado mais sutil do orgulho.
Madrugada
tem acordes turvos.
Deitas-te à cama,
o edifício encravado na cidade
não supõe teus lobos extremos.

Com volúpia, não calcules a cegueira
sem supor teus uivos.

Brotam nas sombras,
brotam nas ruas,   
em espaços turvos,
no sorriso das cifras.
Avançam a madrugada em que te deitas,
cadavérica.
Farejam e, ao farejar, te despertam,

tão inesperada como um asteróide.

 

 

 

 
 

ÉBRIO

 

a noite levou-me qual ébrio furacão dentro do sono a casa o perfume nada sabia do silêncio unânime levava o vinho a janela do quarto negro negro minha treva me chamava madame colocava gelo no copo ah caminho vegetal de tentações mesquinhas na manhã abri as asas na revolta de um insone o vôo sobre a cidade a cidade a cidade a chaga imediata dos vícios deixei-a entorpecida pálpebra negra enquanto o sol faiscava uma loucura unânime migrei para as visões distantes a aurora e o beijo afundou-a até a doçura do sonho besta soberba no outro dia era um poeta

 

 

 

 

 

 

MALABARISMOS JUVENIS

 

Eu vi o escasso tempo de malabarismos juvenis

a estalar a seiva acidentada da tarde,

a aurora pura entrelaçada ao meu próprio sono,

nos instantes precários de um segredo vago.

 

Na oblíqua solidez dos corpos,

abre-se a rosa inicial sem nome, turva e casta,

impura como a brisa imaculada dos sonhos, da voz,

em uma espécie de chamado.

 

Eu vi o estrondo de uma gloriosa infância,

a alegria que em mim eram crianças cintilantes,

na tarde volúvel, onde o mar, em silêncio maior,

faz dos corpos uma presença errante.

 

Devo amar calado o triunfo crepuscular da juventude,

seus beijos ao mar e sua oferenda de mistérios,

na rosa oblíqua de um chamado puro,

na vastidão precária dos instantes.

 

Eu vi tudo isso e amei, sendo eu mesmo uma oferenda eclusa

aos mistérios juvenis, que desafiam os segredos do mar.

 

 

 

 

 

ACORDE NOTURNO

 

O acorde da noite

mais uma vez tombou

sobre meu corpo migrante,

e, sendo a música a vastidão no instante,

deixei-me sonhar em volta dela.

 

Ela que me tocou na noite,

na correnteza de músicas estranhas,

como mar revolto entre as sombras dos naufrágios.

 

E navegamos,

sacrificando o mar, multiplicando as margens,

a infinita música dos presságios,

exilados nessa travessia,

onde somente as estrelas morrem por nós.

 

 

CRIANÇAS

 

Sempre que vejo crianças,

vejo-as correndo, movendo o tempo,

todas misturadas ao vento.

Sempre me aproximo, são quentes e velozes,

tão acostumadas aos meteoros,

dentro da cabeça, todas correndo

no tempo.

 

Lembro das horas tristes da infância,

a vela que queimava a escuridão.

Tive medo, o abismo do quarto,

tão negro, misturado no tempo.

Quando anunciavam o dia,

o leite quente com biscoito,

os meteoros para fora,

correndo, todos movendo a aurora.

Eu me lembro.

 

Sempre que vejo crianças,

vejo-as escritas por dentro.

Todas elásticas,

por dentro e por fora,

tão velozes que sinto medo,

repetindo minha voz primaria

inúmeras vezes, até que me lembre

como mover o ar correndo.

Os meteoros na cabeça,

sempre que vejo crianças

absorvidas em seus córregos quentes,

onde movem a água,

voam e correm como meteoros.

Depois do leite, a risada,

como um templo,

brincava com meus avós.  

 

O menino vendendo balas na praça

me faz dar rodopios por dentro,

meteóricos.

Contemplo-me num trabalho radioso,

carpindo as partes doces e ocultas

da memória,

no ar, no vento,

na respiração.

Busco uma criança

como um brusco cata-vento,

veloz, extrema

e a anterior à noite.

 

As crianças se deitam com medo do silêncio.

Cada casa tem uma criança na imaginação.

 

 

(imagens ©felipe stefani) 

 

 

 

 

 

Felipe Stefani (São Paulo/SP, 1975). Poeta, artista plástico e fotógrafo. Publicou O corpo possível (São Paulo: Dulcinéia Catadora, 2009). Faz parte do grupo Só Desenho. Ilustrou o livro Teatro das horas, do poeta André Setti, editado pela Edições K. Tem poemas e desenhos publicados no sites MeioTom, Zunái, Malagueta, Revista Cult, Verbo 21 e Cronópios. Edita o blogue Cultuar.