(Ao som de Powaqqatsi, de Philip Glass)

 

 

Cena 1

eu não sinto sono nunca sinto minha coluna vai doer daqui a pouco mas é sempre assim me dói tudo o cansaço é demais e sono nada de aparecer só cansaço dessa vulgaridade imensa eterna apenas isso permanece inalterado o velho torna-se novo o novo reencontra-se no velho e ninguém se enamora do autêntico o escritor fica perdido na noite tossindo cuspindo sangue enquanto nas torres bebe-se vinho espumante o novo velho homem das letras é o mito de Sísifo atualizado um Sísifo que se esquece vez ou outra de carregar seu julgo e paralisado dá uma olhadela no vale e na sua decadência a pedra rola esmaga a carne vezes sem conta seu crânio aberto novamente estraçalhado no chão mistura o saber ao barro que o formou e o Sísifo não dorme nunca dormiu angústia do mundo diante dele que mundo é esse que não se fixa não que não deixa ser registrado pensado degustado vivido o mundo vive na carne do homem o destrói gira a roda tritura a carne

 

 

Cena 2

a colônia penal britânica virou Austrália o que será de nós nessa cela de pé-direito alto todos vivendo suas vidinhas mesquinhas gostando do que veem no espelho nem vendo que isso dá rugas pensar demais faz mal ninguém quer saber o Brasil o país é dos espertalhões que nem precisam de muito esforço mental para realizar suas manhas vontades infantis basta o meio de produção peculiar e próprio um pouco de grana capital inicial e força de trabalho braçal mal-remunerada pronto a loção mágica está preparada sucesso jet set high society rindo de suas obturações feitas no exterior somos peculiares exóticos somos colônia base de consumo para multinacionais e exportação de garotas gostosas cópia mal interpretada e mal digerida da cultura europeia da cultura yankee da cultura e do mercado do primeiro mundo nunca seremos Austrália o Norte destrói o Sul essa é a lógica que querem que engulamos eu não engulo e você fica coçando a virilha suada faça alguma coisa destrua a Grã-Bretanha não importa qual elas não têm mais nada a oferecer só nós sabemos o que nos faz falta nosso estômago tem o formato de nossa fome

 

 

Cena 3

vou ficar assistindo Jô até me encher o saco depois qualquer programa inútil de algum pastorzinho gritador o que não será difícil programação alienante burra pra besta ver quero esvaziar um pouco serei besta por um tempo esquecer a dor pensar tanto cansa desespera meu deus até piada dá raiva decepção só que Jô vai vender e vai mesmo com certeza absoluta mais de 1 milhão de exemplares qualquer porcaria que apresente para o mercado ele tem a faca e o queijo mas deve odiar escrever como o Chico odeia também é chato diz ele falou que é chato escrever bota fé nisso isso dá daqueles ódios difíceis de engolir passar pra frente é o jeito chato escrever vá vender bala no metrô pra ver se é bom escrever é um privilégio é uma maneira de não matar o espírito o seu e dos outros porra Chicão tu vende pra cacete e acha ruim tá na hora agora de aprender a ser profissional da palavra tá difícil ser estagiário de escritor né isso a quantas décadas meu caro vai tirar o diploma quando meu caro pagodeiro dos 60 afasta de mim este cala a boca então não escreva mais se não aguenta por que veio não precisa escrever só porque o amiguinho editor pediu volta pro violão apareça no Jô troquem figurinhas finjam que são literatos bolem mais uma série coleção ou antologia batedora de recordes apareçam nas caras e bocas dos programinhas de tv com mulheres de peruca cheirando a spray e talco sorrisos com botox esmalte nos dentes e nos pelos do cu gelzinho no cabelo repicado pra cima pra dar aquele ar de bofinho fique em casa cantando as menininhas da internet leia o que você gosta e jogue os novos talentos na mão de seu amiguinho quem tem talento morre na miséria será que você não consegue mudar essa realidade é a sociedade do favor imperando faça o favor e desapareça e coloque alguém com bolas cacetudo mesmo no lugar um inimigo seu de preferência só pra que o que existe deixe de existir

 

 

Cena 4

o Jô talvez escreva sobre essas merdas da época da Carmem Miranda ô mulézinha vendida chata macaquices pra estrangeiro ver Paulo Coelho do entretenimento musical mas acho que chegaram na frente ou se rolou vendeu fedeu sumiu quem foi esse gordo mesmo nem lembro ninguém sabe ninguém viu e o escritor em casa arrancando os pentelhos brancos da tia velha a mentira não dura para sempre mas vá repetindo variações dela pra ver no que dá uma renca de babacas caem direitinho não dá pra evitar a verdade é só discurso mas isso é perigoso nessa Hitler se safa do inferno como ficamos então nada é belo nem feio nem justo nem verdadeiro nem falso nem ao menos um pouco injusto pô relativizaram demais a relatividade da verdade antes estivéssemos novamente em um sistema absolutamente inegavelmente irremediavelmente opressor você está pedindo não estou pedindo o retorno de nada mas o que temos é pior pense só um pouco e vai começar o comichão perto do ânus estão nos fodendo e a gente nem percebe já que o cú tá tão assim laceado lacerado arrombado que a tora passa reto não precisam nem dar porrada censurar o Capital tá melando o esquema a inteligência capitalista aniquilou a sabedoria e qual o papel do artista no meio dessa geleia toda pioneiro com certeza mas começar por qual começo pelas ideias que fazem surgir práxis

 

 

Cena 5

o mercado editorial sempre dá em abacaxi e em muita grana vô soltar fumaça pra ver se algum índio velho me dá uma dica não me vendo escrevo para pessoas únicas só que tenho credores eu sou o último albatroz fecha esse teu bico

 

 

Cena 6

quero enfiar Bare Backing já nem me lembro o que isso realmente significa uma bela ratazana no rabo dos Jôs dos Coelhos dos Chicos das Lufts dos Varelas dos Laurentinos dos Curys dos semnúmerodecentenadenomes pra citar uns poucos e péssimos exemplos brasileiros das letras carcomidas dessa língua extinta e dos Amados tava esquecido para a cultura letrada mundial tá morta é língua morta o simples fato de a usarmos para comprar pão e salsicha não quer dizer muita coisa poderíamos apenas usar os dedos mas só raiva vou escrever um thriller faço um esforço hercúleo pra deixar as piores frases como vieram mas é impossível impossível não afundar nesse lodo que é o mundo a realidade é um estuprador que conhece as manhas e que faz a vítima gozar até que ela libera tudinho sem gritar todos os poros para o sêmen mas até os escrevinhadores têm opinião sou assim de brincadeirinha não venha com essa é inveja o problema é que engolem conseguem engolir tudo e dormem eu queria dormir mas eles dormem roncam o soninho tranquilo dos justos pois eles engolem seus sentimentos nunca sentiram como nós sentimos na verdade não sabem não conhecem não compreendem mas apreenderam e quiseram esquecer pasteurizaram pra eles e pros outros suas cabeçinhas de porungo comido de cupins

 
 
 
 
 

Cena 7

melhor ninguém ler o que escrevo pode passar mal mas talvez seja muito tarde

 

 

Cena 8

o mundo é dos tapados mas se você está aqui comigo prova para mim e para ti que possui um pouco de tutano nessa cabeça eu não invento nada nem você apenas sentimos os seus efeitos nãoéverdade é é sim praticamente somos obrigados a obedecer as prescrições desse mundo insano mas não antes de botar a boca no trombone deixando o som reverberar para a posteridade se ela existir

 

 

Cena 9

êta jazz isso até que me cansa escrever assim é improvisação demais pra minha cabeça vou passar o fim de semana queimando tudo talvez queimarei a cara como sempre não não tenho esse tipo de angústia romântica escrever é trabalhoso é difícil cansa sim por isso o cabra tem que gostar não adianta ficar choramingando se não tá afim de encarar vá fazer curso de massoterapia culinária marketing ou bordado dá no mesmo ocupe a cabeça lembre que cabeça vazia oficina do diabo não contrate um estagiário pra escrever os seus eternos clichês e chavões e plágios enrustidos pra depois dourar a pílula e vender bem aparecer nas revistas semanais isso é vergonhoso dá vontade de enfiar a cabeça no sanitário e apertar a descarga enquanto vomito toda essa ira incontida poizé retornei ao assunto ao mal resolvido assunto dos outros o inferno são os outros mas também nós o inferno sou eu pois o eu é quem não consegue se distinguir numa sociedade como a de hoje só pode ser o próprio gramunhão  o outro é o eu e por aí se vai a metafísica pelo ralo precisamos nos encontrar descobrir quem somos nos colocar no que fazemos mesmo que inventemos as próprias opiniões de nós de outros em nós do outro nos outros dele em mim como as de outro como as de um estranho que fez uma viagem para fora de si para descobrir-se uma viagem de Curitiba a São Paulo de lá para cá de cá pra lá para perder-se matar-se a si seu espírito sua carne e sua história tudo afogado e borbulhando no Rio Pinheiros

 

 

Cena 10

essas noites não tropicais garoentas abafadas fedendo a dejetos humanos naquilo que era rio misturados à poluição desse ar rarefeito entre prédios num forno que nos assa dia-a-dia enojam a qualquer um com um pouco de amor próprio e a essa hora já deve ter alguém deitado no gramado vomitando ou dormindo em uma marquise de banco estrangeiro ou de banco nacional de dono estrangeiro ou de algum nacional dono de banco regional agiota regularizado que mora no estrangeiro ou que está mais lá que aqui mais pra lá do que pra cá que está pouco se fodendo com os outros com o que vê sem ver ou enxergando tudo maquiado pela televisão está pouco se importando com a fodeção do coitado dormindo dentro de uma caixa de papelão

 

 

Cena 11

ali logo em frente abra os olhos e veja não há gramado algum só puro concreto

 

 

Cena 12

eu não vou olhar diz o escritor de boutique e bienal

 

 

Cena 13

vim vi não entendi e escrevi a inquietação profunda do meu tempo forjo o novo esperando um mundo novo de um novo que é velho pois o velho permanece e precisa ser reinventado antes que a semente seque do velho transformado em esterco para as flores do amanhã que talvez tenham um cheiro melhor daquelas que vemos ao perambular pelos jardins das cidades

 

 
 

  

 

 

 

 

A roda gira e mói a estaca

— a carne rasga,

escorre a fibra.

 

O que era

brinca nos dentes

do tempo.

Entre restos

e sais de dores

esquece.

 

Esse demônio claro, que emana luzes

e ácidos e sombras,

semeia o broto

de iras e ascos e sangues e vergonhas e verdades e secas e tremores.

 

Um rio potente

— de podridões —

corre entre pedras cobertas de limo e musgos e passados e fantasmas.

 

No éter, murmúrios de asas e risos:

ele voltou e estará a seu lado.

 

O corpo enrugado no chão

permanece

estático,

com dores no ventre,

mas com medo de gritar

e gemer e suar e tremer e clamar e sentir e impor vontades esquecidas na luz da  

                                                                                       [grande esfera ácida.

 

Um soco.

E em tosses e engasgos,

o vômito incessante de poeira.

 

O ventre contrai e esvazia;

expele o nojo de ser

— acalenta cobras nas vísceras macias.

A falta de ar enfraquece o pulso.

 

Quer grito,

mas o grito sufocado na traquéia.

Quer gemido,

mas o gemido paralisado nos olhos.

Quer suor,

mas o suor comprimido nos ossos.

Quer tremor,

mas o tremor anulado nos membros.

Quer sentido,

mas o sentido embriagado no crânio.

Quer o impor vontades,

mas esse impor simbolizado em ser

— o nulo rés ao chão.

 

Abandono no asco de si;

no pó da essência.

Afogamento no leitoso ácido.

 

Ele voltou e estará a seu lado.

 

Não quer a fé do visto.

Os olhos perdidos a frente veem cascalho sentem agulhas na íris.

 

Tremem os dedos.

Com os dentes, arranca as unhas.

 

Vascila a luz encoberta na bruma

— a lâmina escuta

o escorrer do sangue.

 

Pingo de leite na poça escura

: escarlate.

Espirais surdas no movimento das ondas.

 

No reflexo dos olhos, um demônio sorri

dos lençóis manchados de sangue,

excremento

e

gozo.

 

Mas o ódio contido no chão que afunda o corpo frio.

 

Ele voltou e estará a seu lado.

 

E os caninos sorriem escorrendo lembraças.

 

A prostituta arrependida

das façanhas

acolhe o feto morto com os dedos manchados de alcatrão.

 

Sobre mil luas, gritam miríades de crianças

— engolidas sorvidas caídas no chão pelo prazer da mãe da mentira

: devoradora de saúvas

: acolhedora de gólens

: espelho do mal no homem.

 

O esquecimento impossível nos ouvidos.

Nos olhos, a dor do existido;

no ventre, a dor do realizado.

Pois o demônio retornou,

expelindo radiações : matando sementes.

 

Por isso, dois corpos mortos e secos no leito;

e os olhos vazados sugados bicados por agulhas doentes.

 

Mas a criança brinca com bonecas no berço.

Olhos espreitam pela fresta da porta — caninos.

 

Enquanto o corpo finda no lodo,

a carne infante é rasgada por garras negras de orgulho.

 

Nada é feito

membros retesados de vazio

pupilas queimadas de sono

— vence a escuridão sem asas.

 

Pois ele voltou e estará a seu lado.

 

 

 

 

Homero Gomes (Curitiba/PR, 1978). Escritor. A narrativa "Uma Noite numa Casca de Noz" faz parte do livro Jamé Vu, no prelo. Autor, também, dos trabalhos, ainda inéditos, Sísifo desatento (contos) — com o qual foi finalista do Prêmio Sesc de Literatura, edição de 2007 —, Três (teatro) e A jornada de A Bao A Qu (infanto-juvenil). Possui publicações nos periódicos Rascunho, Cult e Ficções. Responderá a todos os contatos feitos pelo e-mail: homero.gomes@gmail.com.