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"O homem que cavalga longamente por terrenos

selváticos sente o desejo de uma cidade".

Italo Calvino, em As cidades Invisíveis

 

Vivi não muito, mas o suficiente para antever, que ao contrário do título deste artigo, nem todos amamos as grandes cidades. Alguns, inclusive, adorariam viver longe das metrópoles, caso não precisassem delas. O trânsito, a poluição, a violência e a indiferença dos milhões de passantes sugerem uma espécie de moléstia dos tempos modernos, que por falta doutro remédio, tentamos curar aos finais de semana num sítio interiorano. Há inúmeros outros problemas em se viver nesses centros urbanos, mas irei omiti-los deliberadamente quando possível, pois devo confessar que além de viver numa cidade grande, só consegui me sentir relativamente em casa em algumas outras, de menor porte, mas igualmente labirínticas. Nada de praça central, igreja e coreto das aldeias provincianas.

 

 

Valsa de la Revolución

 

Nos anos 90 apaixonei-me com um pudor respeitoso pela cidade dos museus da Revolução, por suas praças pitorescas, pelos passeios do Prado e pelo malecón que a separa do seu limite físico e ideológico: o mar. Busquei em vão o paredão onde muitos teriam sido fuzilados, imaginando morbidamente que onde quer que tais execuções ocorressem, elas teriam sempre o bônus de oferecer ao dissidente uma das mais belas vistas, o que dispensaria qualquer último desejo a não ser, obviamente, um Cohiba aceso.

 

A cidade das colunas coloridas, que o ar salgado insistia em desbotar, estampava em si os problemas habitacionais que costumam ocorrem em grandes centros, com antigos casarões coloniais transformados em cortiços e em cujas escadas leitões eram amarrados e engordados para festas nada revolucionárias. Nessa cidade aprendi um novo idioma e deixei-me contaminar por ele e toda a ideologia que trazia. Os carros, televisores e geladeiras soviéticas eram dos anos 60, e assim também eram a gentileza e curiosidade daqueles habitantes por alguém que representava o futuro e era oriundo de algo que eles não conheciam, um mundo continental, capitalista e moderno. Para não chamar demais a atenção, tive de misturar-me às multidões nas marchas pró-governo, comprar roupas locais e buscar um corte démodé pro cabelo. Eu era um deles e me sentia assim, e isso só foi possível pois o meu maior disfarce não eram as roupas e nem o cabelo: era a própria cidade.

 

 

Gracias a la vida

 

Nos anos 2000 troquei o comunismo pelo tango e abracei uma cidade completa, planejada e próspera. Os restaurantes fartos, os banhos de sol no verão, os convescotes em suas enormes praças, seu povo culto e ávido por livros e o sistema de transporte eficiente deram-me inveja. A cada quarteirão eu encontrava um exemplo de arquitetura autêntica, assim como o inverno vestia seus habitantes com uma elegância, que eu também não conhecia. Tracei o paralelo óbvio de que o herói comunista e mártir da cidade anterior havia nascido na verdade no país desta outra e eu enxergava uma cumplicidade entre nós dois, exceto pelo fato de havermos trocado a ordem das cidades e das ideologias — ou da falta delas — e de ambos andarmos entre diários e motocicletas.

 

Depois de muita resistência, abandonei o sotaque do sol do Caribe e comecei a falar como um nativo dos pampas — ou me acreditei assim. Visitei estádios de futebol, compareci a churrascos oferecidos por novos amigos — mas obviamente me abstive de tal consumo — aproveitei o preço módico dos táxis e gastei horas lendo livros e jornais em cafés com móveis coloniais. Tropecei em livrarias antiquíssimas. Aprendi boas maneiras. Entendi, por fim, o que levou o criador da bossa nova a dizer naquele fatídico show, entre um banquinho e um violão: "Sou argentino desde pequenininho".

 

Nessas experiências, entretanto, em ambas cidades, sempre houve um elemento Índia desde o seu princípio. Participei de aulas de yoga, visitei restaurantes vegetarianos e busquei práticas de meditação zen. Havia algo por vir.

 

 

Mumbai Meri Jaan

 

Com tantas cidades interessantes na Índia — Jaipur e seus palácios; a impenetrável Varanasi, tida como a cidade mais antiga do mundo; Calcutá e seu cinema de arte — finquei os pés naquela que primeiro me recebeu há mais de uma década. Muitos turistas me perguntavam o porquê de passar semanas em Mumbai, com tanta Índia por ser vista, e eu mesmo não sabia a resposta. Mas dentre outras desculpas, a mais verossímil delas é que Mumbai é assumidamente uma cidade grande.

 

Há um prazer particular em passar despercebido em um país etnicamente e culturalmente diferente do seu, e acho que isso só é possível de ocorrer em grandes centros — e no caso da sua genética não ser muito distinta da dos nativos.

 

Nessas cidades, mesmo os nascidos naquele país, porém oriundos de centros menores, são também uma espécie de estrangeiros. No caso específico de Mumbai, alguns deles nem falam a língua materna dos metropolitanos, e assim como qualquer forasteiro, têm de se utilizar de outro idioma para se comunicar. A distinção entre quem é estrangeiro e quem é nativo fica bem menor.

 

São millhões de rostos diferentes nos trens e na orla do fim de tarde. Representam um grande país unido e, ao mesmo tempo, são bem distintos entre si, étnica, religiosa e linguisticamente. Eles também não se conhecem, assim como não os conheço, e todos somos cúmplices.

 

Há também uma sensação de isolamento nada óbvia, típica das cidades grandes, a qual muito me agrada. Uma busca interna, que eu arriscaria comparar ao yoga, no qual o praticante trilha um caminho solitário. A paz no yoga não deve ser externa, não deve vir somente do silêncio de uma cidade menor e idílica aos pés dos Himalaias, mas deve surgir da abstração dos sentidos. Mumbai oferece esse grande exercício de buscar a calmaria no meio do caos, dos congestionamentos aos trens lotados, das crianças risonhas e pedintes aos homens-bomba.

 

E nesse cenário adverso, flagro um indiano numa espécie de transe meditativo, absorto com o mar à sua frente e uma avenida movimentada ao fundo. Ele veste roupas ocidentais e carrega um pesado celular no bolso da camisa, mas a sua atitude e presença remontam aos antigos yogues. Acerco-me sem fazer barulho e sento-me por perto. O cenário é impróprio para qualquer prática meditativa, o celular pode tocar, mas parece que ambos estamos buscando essa experiência improvável ali mesmo, sem combinar nada em idioma algum. Mumbai é assim, não consta na lista das cidades mais sagradas da Índia, porque não precisa.

 

 

O retorno de Ganesha

 

Com sorte, você até recupera a bagagem extraviada, entre formulários preenchidos e telefonemas insistentes. O difícil é se recuperar do trauma da primeira vez. Você não achou ainda a mala — com tudo de precioso que foi se acumulando ao longo da viagem — na esteira do aeroporto, e esta simplesmente é desligada. Game over.

 

São Paulo estava tão quente quanto Mumbai quando cheguei: o cheiro das marginais e seus rios e o silêncio de um trânsito rápido que em nada lembrava a morosidade cheia de buzinas da Índia.

 

O metrô, mais que organizado, com seus sons metálicos e sem pedintes nas estações, carregava numa assepsia que me pareceu um tanto hitlerista, considerando-se o que ficou do lado de fora. Caminhei pela Paulista e li o jornal, tentando descobrir  o que havia mudado em mais de dois meses.

 

Acostumei-me a ficar incógnito e por dias desejei ser invisível. Em Mumbai eu era sempre um observador silente. Em São Paulo queria o mesmo, mas amigos gentis me fizeram lembrar do calor brasileiro, do interesse genuíno por novas histórias e da vontade de compartilhar algo vivido. Um banho de chuva — algo inexistente nos dias que passei na Índia — fisicamente trouxe-me de vez a São Paulo. Eu estava molhado e de novo em casa — e até por isso não religuei imediatamente os telefones.

 

Nostálgico ao desfazer a bagagem, retirei somente alguns presentes e deixei o restante ali mesmo. Hoje, as malas ao lado da cama, organizadas para a próxima viagem, dão-me a sensação de estar dormindo num eterno portão de embarque ao longo do ano. Dessa maneira, sinto-me sempre pronto a apertar os cintos, tão logo carimbe o meu passaporte o único apto a fazê-lo: aquele deus rechonchudo com cabeça de elefante, removedor de obstáculos e padroeiro dos escribas.

 

 

 

 

outubro, 2009