Pretende entrar no banco a pobre datilógrafa, como no conto de Graciliano Ramos, no país onde não há mais datilógrafos. Sente-se portanto deslocada, anacrônica, uma máquina de bater adornada com lantejoulas na sala de estar — e afinal para que o vestido curto, os falsos badulaques, esse olhar sinuoso? Lantejoulas? Francamente. O amor é como um sorvete derretendo ao sol. Atrás de Magali, risadas e desaforos contidos.

— A senhora precisa terminar o sorvete antes de entrar — diz o segurança através da porta transparente, giratória e blindada.

Cara de Magali, sofria feito Neuma. Incomodava a delicadeza pálida, a indiferença do segurança do banco. Incomodava o jeito como ele suspendia as calças pela cinta de couro, assim como quem sabe alguma coisa que não vai te dizer.

Um cachorro de madame num colo de madame, lambidas e cafunés, crianças matando gatos, babás uniformizadas fumando cigarros, um cego de braços dados com uma cega, tudo a incomoda. Olha para cima: uma bela encosta, pessoas rindo e apostando no baralho. Um menino ajuda uma senhora a recolher um cacho de bananas que havia caído. O sol reluz como um pequeno escravo. "Um asco" — diz Magali cuspindo no chão.

De repente ela, que sendo Magali sofria feito Neuma, pensa: "O incômodo está em mim, não é culpa das pessoas, da paisagem, é bonita a paisagem, eu é que sou feia, eu sou o borrão".

Mas então por que sorrir como os outros? Que música era aquela que vinha da casa de pão, do choque entre corpos cansados na saída da estação de trem?

Porque ela — mas ela quem afinal? — queria ser como todo mundo, apenas não podia. Pois detestava o modo como todo mundo persistia na mesma náusea espiral sem fim. Detestava a percepção de que o mundo, o mundo como se imagina o mundo abstrato, o mundo que não está em nós, o mundo que escorre entre os dedos, cagava horrores para as nossas pretensas inclinações. E que desejos afinal? Casar, ter filhos, um asilo decorado com palmeiras? Talvez. E depois, fazer o que mais? Alimentar. E se alimentar de que, para poder alimentar? Amor. E do que se alimenta o amor? Da falta de amor. Perguntas vagas, boçais, o velho de bigode pardo atirando milho aos pombos. Calor detestável, "eu liguei duas vezes, duas é muito, não ligo mais, ele que morra". Observe bem, Magali: não há perdão, não há saída, não há sala de estar, o amor envelheceu.

— A senhora tem algum objeto metálico, senhora? Chaves, moedas, uma aliança por acaso?

Ora, mas que inferno! Uma aliança? Não tinha uma aliança, e daí? Não precisava de uma aliança, ora porra. Mas então por que, sendo Magali, sofrer feito Neuma? Talvez não fosse Magali. Talvez fosse Neuma sofrendo em silêncio e sorrindo, feito Magali enforcada tomando sorvete. Então um lapso. Esquece quem é.

— Não, não tenho nada — diz ao guarda Magali que, ainda sem saber quem é, força a porta giratória.

Sinal de alerta acionado. Todos olham. Magali não repara se alguém olha, mas, é claro, mesmo não tendo visto, todos olham, isso é claro. Onde está o sujeito galante que sorrirá sem jeito e oferecerá ajuda? Alguém aceita salvar um caso perdido? Magali outra vez olhando para o céu, retirante recém chegada. "Céu azul maldito, que estala poesia, céu azul de merda". Magali confusa.

Atende por Magali, anda como Rita, cora feito Clélia, sofre como Neuma. Esquecer o próprio nome. E tinha cabimento?

Certa algazarra quando o sino toca pela terceira vez. Magali sente-se elevada de alguma forma. Mestre-hindu, Kappelmeister, ela atinge o nirvana, distante das ruínas de um destino decapitado. Colinas das Índias, desertos das Arábias, havia agora possantes Niágaras explodindo em algum lugar secreto dentro de algum lugar vazio no interior úmido de Magali, ou no caminho até Neuma. E como de um corpo tão pequeno poderia jorrar um oceano de mágoas implícitas?

— Meu amigo, você acha que essa mulher assaltaria um banco? Olha só para ela! — diz um grito no fim da fila.

Deveria, sim, ter fechado as cortinas. As plantas são mais frágeis, apodrecem rápido. Nós demoramos. Não sabendo o que fazer, quem era e como prosseguir, sem saber que era de batismo Magali da Cruz Pereira Neves, formada em direito e datilógrafa — mas como assim datilógrafa?

— Senhora, o sinal foi acionado cinco vezes. A senhora tem certeza de que não porta nada que possa porventura comprometer a senhora?

Senhora, senhora, senhora, senhora de alguém, mas senhora de quem? A dignidade derrete-se nos olhos da moça. Por um lampejo ela se lembra — Magali! — então tem uma visão anormal, um pouco embaçada, quem sabe mítica, uma casa perturbadora, casa branca de janelas azuis, em frente a uma caravela feita de ladrilhos portugueses. Sobre a casa, uma estaca de ferro nua, sem adornos, dando à construção um aspecto de maçonaria. De repente uma frase: "Fazer amor é uma forma de compensar a morte e alcançar a arte". De um filme francês, certamente. Não esquecer de comprar incensos.

Magali rola os olhos em vertigem e, quando olha outra vez para frente, com muitas mãos espalmadas nas suas costas, outras apalpando furtivamente suas nádegas, inclusive a sensação de um dedo gelado feito gilete perfurando-lhe as partes íntimas, então são mais gritos, ganidos, uma dona de casa grávida de joelhos, bate-boca, algazarra.

— Invade, porra! Tem ladrão aqui não! O povo é honesto!

A cena final desconcertante. Uma senhora grisalha, vestida como se veste uma mulher sob má influência, deixa cair sua caneta enquanto muitos pés massacram o carpete onde se lê o nome da empresa que abastece o mundo para matá-lo de fome. A grisalha então se agacha sobre os saltos quando Magali – agora Neuma até o fim – repara que a mulher usa um batom encarnado e tem estrias laterais na lombar descoberta por desleixo e solidão.

Há um homem com os dois pés entre a caneta, um homem alto, moreno, de barba por fazer, do tipo mangas dobradas de camisa, tentando com o tronco manter a caneta intacta entre as pernas. A senhora grisalha, então, ao se agachar — e que belo decote, senhora grisalha, que belas pernas a senhora tem — roça algumas vezes, no embalo dos empurrões e bolinaços, com o rosto na região pélvica do sujeito que permanece de pé, tentando se movimentar o mínimo, mas cedendo aos poucos à brutalidade da invasão descontrolada. Magali a essa altura carregada pelos ombros, Joana D'Arc desmiolada, fantoche revirando os olhos.

— Me desculpe — sorri enigmática a senhora grisalha. — A caneta foi cair num lugar tão estanho...

O homem apenas fecha as pernas, ambos com os peitos de encontro, os fartos peitos da senhora grisalha espalhando-se pelo peito duro do homem alto, os olhos fixos das lebres no cio. A senhora grisalha abre discretamente a braguilha do sujeito alto, que consente olhando para o relógio com um suspiro de tédio. Mas logo estão se agarrando. Ela sobe como serpente, as unhas encarnadas, a boca encarnada. Lambem-se, bolinam-se. A senhora grisalha enlaça o tronco do rapaz com as pernas e eles saem da fila juntos, destinados a contas atrasadas e uma caneta perdida. E talvez fosse para sempre, talvez aquilo fosse mesmo o amor. Saindo da briga, pulando pela janela, abandonando a casa antes do incêndio. "Mas não o amor, o amor envelheceu".

Magali ainda tem tempo de ver como realmente é linda a paisagem, como todas as paisagens são lindas quando vistas pela última vez. Os barcos assim como de cerâmica. Como são elegantes as garças, mesmo comendo lixo e peixe podre. O dia morrendo diante dos seus olhos num tom violáceo, como os próprios olhos dela, Magali com cara de Neuma. E era ainda tão cedo — paisagem linda realmente — era muito cedo ainda, cedo demais para cair, morta como garça no lixo, como cerâmica, como peixe podre, com a cabeça esmagada no meio-fio do bairro da alta classe. Magali sorri.

 

 

(imagem ©fr) 

 

 

Leonardo Marona. Faz trabalhos como tradutor de inglês e publica textos em alguns periódicos de Literatura, como o Jornal Plástico Bolha (Depto. de Letras da Puc-RJ) e o Jornal Vaia, de Porto Alegre. Traduziu a peça Otelo, de William Shakespeare, dirigida por Marcus Alvisi e Diogo Vilela em circuito nacional no ano de 2008. Terminou a tradução da peça Longa jornada noite adentro, de Eugene O'Neill, para a direção de Vilela, prevista para 2010. Publicou o livro de poesia Pequenas biografias não-autorizadas (Rio de Janeiro: Ed. 7Letras, 2009). Tem dois livros de contos inéditos: Os ossos debaixo dos campos verdes (112 páginas, 2004) e Maldito orquidário (91 páginas, 2008). Edita o blogue Asa Nisi Masa.