A Castidade da Paixão

 

O dia claro e manso como uma sinfonia de uma tranquilidade bucólica. Os grilos e seus afazeres, libélulas tão puras ornamentais, o vento acalentando os pássaros com o leve tocar de suas asas, as casas juntinhas e as pessoas sorridentes em janelinhas, a rua ao trânsito pacífico e tudo que se movia ou se era estático emanava um estado de repouso absoluto. Cordial. Como se houvesse apenas vida e a infinita ausência dos conflitos. Os minutos eram celestiais não fosse a descontente atirando-se da ponte e fazendo a pequena cidade sentir-se mundana. O universo era completo não fosse o drama de um vagabundo presenteando olhares com sua aparência inóspita, fétida e mortífera. Libélulas seriam mais poéticas não fosse o grito de Otavio, ao quinto tom de sua aura, espancando mulher enquanto agonizavam seus filhos — crianças tristonhas, amarrotadas, sujas e não humanas de tanta vergonha que sentiam. O claro dia seria magnífico não fosse o desamor ditoso visto por todos nos olhos de Catarina que amava e não sentia pudor e vagava pelas ruas desnuda de reparação e os vizinhos e os quartéis e as vozes alardeavam a loucura de moça tão jovem já apodrecida e ausente em si. Os campos, extremos ao longe, ao redor da cidade, seriam bucólicos e servos de qualquer pensamento adequado à delicadeza não fosse a chaminé bufando em negras nuvens o produto, o táctil e o inesperado que cobre as mesas e farta a míngua de todos os seres. E os grilos seriam grilos de mil cantos extraordinários e mágicos não fosse o sapato esmagador de um certo homem que não percebia a leveza e o encanto da orgia inefável da estética suave da cidade. Silente seria a tarde de sol ardente de raios lúdicos não fosse o tremor de mãos do senhor que vendia seus quilates e assombrava de ambição os olhos das  jovens frequentes de igreja. Seria admirável qual voz de soprano a existência de cada objeto não fosse o corte, a indecência, a maldade violada deturpando a sorte dos viventes e seria formosa a amplitude de tudo não fosse a puta, o bêbado, a beleza em sexo da menina Angelina, dos beijos em saliva entre os casais que se engoliam na praça entre as árvores tão verdes de ramificações que protegiam os moradores quando despertos pela chuva. Não fosse a praga, a maldição, a chaga, a maledicência, a estupidez, a morte de crianças, a política, o empréstimo, a inveja, o escorbuto que acometia a Miranda e a levava, dia pós dia, daquele templo diverso de anomalias. Não fosse a lua minguante, não fosse a natureza revolta, não fosse o sonho impossível, não fosse eu, não fosse você, não fosse a vértebra quebrada dos anos. Não fosse a figura pastosa nos olhos cegos. Não fosse a Filosofia, a humanidade, o inseticida. Não fosse o mundo, seria tudo ameno e seria uma concórdia harmônica a vida. Mas talha a natura do ser a sua cólera. A hipocrisia ainda reveste os muros do tempo. Não fosse o homem, o mundo seria a nítida impressão da existência do belo e da graça animada das roupas no varal. Não fosse o excedente intelectual que decepa a virtuosa cegueira, seria perfeito o ideal romanesco.

 

 

Beatriz e os Sapatos

 

O grande dia das descobertas era também dia de ir ao mercado e limpar o ar sujo das edificações. Beatriz, que era conhecida por sua capacidade pluricultural de conseguir sempre se aquietar em seus prazeres, tinha por herança uma loja de sapatos. Dia de descobertas, limpeza e dia de desfiles de bandas marciais. Ela ficava tão alegre vendo desfiles. Era como se o mundo não existisse ou fosse sempre colorido. Ilusório. As ruas lotadas de pessoas tão felizes acenando para os músicos e bandeiras ao vento. Ela ficava feliz e, mesmo que relâmpagos continuassem ameaçando o tempo, o sorriso de Beatriz era feliz.

E no alto da manhã, veio a ela um freguês querendo comprar sapatos. Era isso que ela tinha. Uma loja de sapatos. Mas não eram apenas sapatos. Seu pai lhe ensinara que sapatos eram como navios. Nos suportavam o peso e nos levavam de lá pra cá na imensa vida. Imensa como o oceano. Ela respeitava isso e acreditava tanto e muito e sua loja tinha sapatos de todos os tipos. Sapatos altos, baixos, masculinos, sapatos de soldados, botas de caçador, sapatos de palhaço, sapatilhas de bailarina, calçados de bombeiros, chinelos fofinhos de donas de casa que acordam bem cedinho aos cuidados do dia. Chinelos de velhinhas que, mesmo dobrando a esquina dessa vida comprida, ainda compravam sapatos na loja de Beatriz.

E nesse dia, a fanfarra tilintando nas ruas da cidade, o freguês queria um par de sapatos. E houve uma breve conversa e ela, já marcada pelos anos e pela experiência que tinha de tanto vender seus produtos, sabia o número certo e o tipo certo de sapato para cada pé. Era o seu comprometimento. Seu pai lhe fora bom. O homem que havia ensinado Beatriz a ver que sempre havia mais peixes no oceano e não apenas aqueles peixinhos que ficam na superfície. Ele a ajudara a olhar longe dentro do oceano. Costumavam ir sempre ao litoral e o mar ficava logo ali, bem pertinho de Beatriz e seu pai. Era o passeio do ano. Ela olhava o mar como quem olha uma vitrine. Olhando profundo para saber o que havia por trás das algas e de cada peixe que saltava em busca do brilho do sol. A menina percebia que tinha tanto peixe e de todo tipo e ficavam todos no ir e vir das ondas daquele mar.

Em silêncio, Beatriz se voltou ao freguês e lhe deu os sapatos exatos que ele, mesmo não tendo dito, queria comprar. E disse espantado com a eficácia de Beatriz que nem ao menos havia dito quais sapatos queria e você me traz exatamente o que estava procurando? Seu pai realmente lhe deixou não somente a loja, como também, o dom de saber comercializar. Ela, ainda cheia de gotículas de suas lembranças do mar, sorriu e disse ao freguês que, de tanto estar ali, todos os dias, havia provado cada um daqueles sapatos e sabia como alguém poderia se sentir dentro deles. Todas as sensações do mundo nos trazem esses sapatos. Um mar repleto de cardumes e peixes solitários e peixes casados e peixes que não gostam do mar. É o sentir a vida dos outros. A elegância de saber-se parte dos cardumes. Um sorriso. O freguês saiu satisfeito e a fanfarra ainda fazia tilintar a cidade.

 

 

Escotilhas

 

Abro a boca dizendo que acordei ainda dopada. Tropecei numa pilha de roupas e vi a ilha de livros que não li. Capa por capa, correndo as páginas com as mãos, decidi que hoje não leio nada. Nem horóscopo e não escrevo obituário. Aliás, tenho um já pronto. Um obituário comprometedor falando de você, amor da minha vida. Você poderia ter morrido. Seria melhor. Eu iria ao funeral. Aquele ar maçante de gente chorando penas, plumas e compaixão. Eu, ainda ardendo em febre, deixaria uma flor qualquer e como seria bom dar uma olhada no seu corpo sem vida. Mas você não morreu. Você está em casa. Não saiu. Deveria ter se mandado e eu diria um palavrão em francês. Um belo palavrão em francês. Mas acontece que minha boca cala aos trancos quando olho você. Eu perco a identidade. Sou isso e mais aquilo e uma porção de sonhos que tenho e gente falando comigo. Gente que não entendo. Boa parte do que me diz essa voz de gente, não entendo. Fico anestesiada e decido deitar de novo e é tão perfeito ver o sol querendo romper e vidraça. Eu observo o sol em rabiscos. E agora você, que ainda não morreu, deita ao meu lado, fala umas coisas que não me agradam, mas sigo fingindo. Eu quero apenas o corpo. Hoje não quero diálogos. Quero o prazer intacto dos cacos que se amontoam porque é isso que tenho. Coleciono cacos. Pedaço do tempo, pedaço do dia, pedaço de mim. E minha sensibilidade decidiu também que calaria sua voz por dias. Mas tem gente que decide e faz promessa e fica só na voz. Ela voltou me arrasando. Acabando comigo. Uma vírgula, uma dor e ódio e café e pode fazer seu espetáculo porque aprendi a ser falsa e mentirosa. Uma planta que nasce e não tem processo. Sem fotossíntese. Aprende que, de mim, deixo apenas acontecer este minuto que lhe toco o rosto e víbora me torno ameaçando sua insensatez. O resto é básico, meu amor. Um caco de vidro que não corta. Ameaça de guerra durante o carnaval. E esse amor infinito é o impressionável cubo de gelo nas mãos.

 

 

Gênero Lírico

 

Homens mentem. Mulheres também. Homens amam como mulheres que mentem. Mulheres amam como seres que se despem. Mulheres despidas de vergonhas e tudo é romântico em nuance de luz e sombra. Uma fatia fina da vida e nos amamos. Completas citações e não há volta. Só distúrbio. Mulheres compreendem e perdão só na segunda-feira. Depois dos ritos e da contemplação. E ciclos mudam e continuamos amando o que nos causa morte. Amo você como quem morre era a primeira voz. A segunda, seguida de contornos, apenas ouvia. Uma voz calada. Tímida. Um piano fechado. E era você por trás de tudo. Uma névoa no dia e era fevereiro e depois março e logo era o abraço e logo era o corpo sendo revelado e logo o orgasmo e logo o susto e depois a vontade. Homem de membros fortes reanima em fantasias e é sexo e não disperso castiga e penetra a fonte crua e nua das sensações. Tremor. Homem de vime, homem de pêlos e edifícios. A mulher salta em edifício de homem que é sexo e suga a água que é vinda do sexo que se faz do homem que transtorna. Faz abrir clareiras e vinga à face turva, orgasmo de quem só enxerga ninfa e penetra a vítima que é fêmea de homem forte solto em pernas e pulso e peso sobre a fragilidade. O corpo se curva em outro corpo e palavra não é mais som. Tudo inaudível. Penetra a fêmea e, entre dois, escapulário e fé. Beija a boca da voz que dizia medo e se afoga no imenso desejo contraído. Sejamos santos. Somos espanto e nossa nudez é santa. Devora a fêmea que é a prova da derrota do tempo. Você vence. Eu venço. Contorce o corpo e beija o verbo descoberto dos seios em sua boca de versos.

 


 

 

Lírica Subversiva

 

Escrevo um poema ao desabotoar minhas intrigas que são meninas bem vestidas, ingênuas e falantes. Elas suspiram barrocas, encantam sentimentais e decoram o escárnio de toda a história de meus ancestrais políticos, polidos e falhos de memória. O poema versado ameaçado de crítica agride a métrica e a rima e silencia o grito destas ilhas esquecidas dos sentimentos que vivi. Diluída a minha essência em palavras que zombem de mim e que sejam certeiras de arco e flecha me fazendo crer que não e que sim. E será de bruto efeito o poema que começa ensaiado e termina quebrado por falta de espaço. Mas não sou poeta. Nem gracejo palavras. Não me atrevo a inovar versos em sílabas ou flautas e redondilhas. A palavra toma de assalto o meu ato trágico e perco a voz no palco. E agora sou ator. Um espalhafato. Evoco a inspiração e trago a vertiginosa fumaça lírica do texto que reproduzi. Compasso em falso e escapa de mim a deixa que não fazia parte de meu papel e me embaralho no escuro de um trampolim. Sou trapezista então. Mas a corda bamba me enlaçou e caio em público. Estúpido, sem coroa, sem trono ou cortesã e me arde a fornalha do pensamento apavorado que fala de trás pra frente e escorrega na decente ortografia e sou livre de correntes e me entrego ao improviso da arte indecente. Todo inconsequente. Sou humano e ainda procuro versos de prosa de um livro que nunca fora escrito. Sou tudo e outro qualquer imaginário. Um calendário do passado que reflete um futuro prosaico. A mentira de criança e o paraíso perverso do equívoco.

 

 

Literariamente Osmótica

 

E hoje é o último capítulo da novela. Não perco novela. Minha osmose é literária. Deus me ajude porque estou lendo horóscopo. Deus me ajude mesmo. Um caso sério. Que há de errado comigo, não sei. E ainda tenho mania de dizer frases na ordem inversa. É o cotidiano me fazendo comungar e pedir perdão. Já aprendi a escolher pratos em restaurantes. Escolho sempre o nome mais esquisito porque sempre vem algo bem simples. Tipo arroz com alguma carne ou salada ou então uma folhinha verde que pode ser hortelã ou manjericão. E pronto. Prato escolhido e finjo saber exatamente do que se tratava. Sou assim com pessoas também. Um dia inventei de sair com uns amigos que não são bem amigos. A gente gosta de enfeitar dizendo que tem amigo, mas ninguém tem porcaria nenhuma. Se brincar, um amigo e só e esse é sempre mais ocupado que a gente. Continuando a narrativa, saí com os tais amigos e conversamos sobre tudo. Cidades do mundo e relacionamentos e música e literatura. Eu me senti uma mulher meio frígida fingindo orgasmo. Fingi tudo. Concordei com tudo e como adorei aquela cidade na Áustria. Nunca estive lá. Nem sei onde fica. Também não sei refrigerar sorriso, mas aprendi a lei da gargalhada esporádica. Você fica espirituoso, esbanja um belo sorriso e a arte encena a vida. Faço mímica e sirvo de agrado. E todo conhecimento e tudo que é coisa é válido. E quando alguém se emancipava do silêncio para o simbólico desfile literário, eu também ouvia e repetia interjeições e palavras complicadas. São leis do fingimento. Você começa a fingir ou mentir mesmo. E acontece a velha história. Você acaba acreditando. Longas horas passadas para trás, voltei para casa achando que já tinha lido Platão. Mas nem livro eu tenho. Aliás, tenho um. Um livro que ganhei de um amigo fotógrafo. É um livro guia da cidade de Londres. Lugares para se visitar, hotéis, pubs e a coisa toda. Nunca li. Só passei o olho bem rápido porque comigo é assim. Tudo rápido. Voando por cima do ombro feito as toalhas que jogo porque a batalha é mais que luta. É arrasadora. Trajei minhas caras e bocas de dormir e me entupi de cama e travesseiro. Ninguém para telefonar, uma solidão desmemoriada e amanhã assisto a reprise da novela.  E assim, a gente cria a vida dentro de um pote de geléia.

 

 

O Formidável Universo de Adélia

 

Eu suporto o dia e não contesto. Aceito de mãos abertas o medo e a colorida inquietude dos peixes no aquário. Temos um aquário na sala de estar. Pequeno e retangular. Fora colocado ao lado da porta de entrada. Todos que entram se alegram ao ver os peixes. Eu não. Já entrei e saí tantas vezes que a beleza desgastou. Eu não vejo beleza. Talvez nunca tenha visto. Nunca consegui enxergar que fosse um minúsculo traço de beleza nesses peixes tristes e solitários. Navegam juntos nas águas do aquário, mas estão solitários. A solidão em comunhão é trágica. Poderiam ser felizes esses peixes. No entanto, não vejo felicidade ou a plasticidade que emoldura um sorriso. Peixes não sorriem e eu escrevo a respeito dos peixes. Talvez necessitem de mais atenção. Eu passo por eles tão rapidamente que não os vejo mais ou apenas recebo a sombra inquieta da existência desses pequenos moradores de nossa sala. Esqueço a dor que me fazem sentir. Enjaulados e doentios. Fecho a porta e desço a escadaria e se abre o mundo.

Um parque enfrenta o nosso prédio. Atravesso a rua, sinto o asfalto resfriado pela chuva da manhã e vou ao parque. Agora sou parte do mundo. Crianças brincam por todos os lados. Um canteiro de margaridas me interrompe. Eu poderia seguir, evitando assim o olhar dessas flores, mas me parecem tristes. A chuva as derrotou. Estão murchas, semi-fechadas, caladas. Margaridas sempre me fazem sentir bem, mas essas me causam cólera. Como podem brincar aquelas crianças enquanto morrem estas margaridas? Como posso não perceber que o mundo acontece mesmo que alguém sofra? Tenho as mãos ocupadas. Na mão direita, o meu diário. Na esquerda, a impotência trêmula típica dos preguiçosos. Mas estendo a mão. Consigo romper a barreira que me sufoca e toco de leve as margaridas. São puras e honestas. Não escondem a feiura que a água lhes causou.

Eu escondo a minha feiura. Pó de arroz, chapéu, calças tão largas para não ser vista ou desejada. Óculos de tantos graus que mal se percebe a cor natural de meus olhos castanhos e que, ao redor, apresentam uma cor lilás que me faz diferente dos demais. Meus pais não percebem meus olhos diferentes. Eu me escondo porque tenho medo e o medo é a minha proteção. É ele que me impede de existir. Ele me impede de chocar-me às coisas divinas e entregar-me ao erótico senso comum. Eu me afloro sozinha. Tão corada eu permaneço quando saio de meu quarto. Horas me deflorando e acho que todos percebem. Os peixes, meu pai, minha mãe e os objetos decorativos. Mas nada dizem. Não verbalizar é um crime, embora eu aprecie o silêncio. E no momento sou parte das margaridas. Suaves de caule e pétalas. São miúdas, mas gigantes por serem honestas. Há um banco vazio do lado oposto ao canteiro. Sento e escrevo algumas palavras em meu diário.

Encolho minhas pernas e percebo que minhas meias são coloridas demais para uma manhã de inverno. Deveria estar mais discreta. Escondo as meias enfiando-as dentro de meus sapatos. Ninguém percebeu. Não vejo muitas pessoas na praça.  Ouço apenas as vozes de algumas crianças brincando dentro desses imensos canos de concreto. Estão sorrindo como se a vida fosse eterna. Como se fosse perfeito aquele momento de brincar de esquecer que se torna adulto. Elas nem entendem essa palavra. Adulto deve ser palavra feia na língua das crianças. E estão lindas. Agasalhadas, muito embora não esteja tão frio. A chuva deixara o ar um tanto gélido, mas suave. Pálido e embora o sol esteja conosco, não traz calor. O clima está ameno.

E eu me vi criança. Estou observando as crianças e sou uma delas. Mas não participo da brincadeira. Não poderia. Está frio, diria minha mãe com sua voz em tom imperialista. E eu permaneço dentro de mim. De boca fechada. Sempre fora tímida, mas se soubessem do estrondo de meu universo interior. Bandas marciais desfilam dentro de mim. Risco calçadas com cacos de telha e quebro vidraças com pedrinhas que encontro no caminho de dentro de mim. Uma sinfonia de acontecimentos guardados ecoa no meu universo e sorrisos sonoros de vidas que não mais estão aqui me escandalizam. A vida que há em mim é ilimitada, vasta, extraordinária.

E um homem passa por mim. Deixa em mim o seu perfume. Deixa em mim o sonho. Deixa em mim a sua masculinidade. Ele sequer me vê. Sou invisível e desonesta. Poderia gritar. Deixar explodir minhas estrelas e constelações. Deixar furiosa a minha mãe por ter saído de casa nesse tempo frio. Libertar os peixes daqueles aquários bolorentos e deixar a honesta feiura das margaridas ser a minha réplica contra o desalento, contra a felicidade dessas crianças, contra o abandono. Mas silencio. Tenho medo. As crianças ainda brincam. E já me vejo voltando pra casa. Olho as crianças e me distancio.

As margaridas estão mais vivas agora. Parece que o mundo reaconteceu depois da chuva que se rompeu pela manhã. Atravesso a rua e enfrento as escadas. Interminável escadaria e faço planos e abro a porta. Observo o aquário. Um tímido raio de sol invade as águas daquele oceano artificial de tantos peixes se encontrando débeis e prisioneiros. Minha mãe toma o seu chá na cozinha. Não nos falamos sem que haja urgência e meu pai envelhece assistindo TV. Entro em meu quarto e leio as últimas linhas escritas em meu diário enquanto ainda estava no parque, ausente de tudo. Serei convincente. Estou clara como nunca estive. Agora sou uma criança que sorri de contente, pois a chuva engoliu a voz que cala, a vaidade, o medo.

Elaboro um riso espontâneo porque perdi anos de minha vida observando aquele mísero aquário que sonoriza a cadência do que se come, do que se vive e o estridente relógio da sala anuncia o tempo dizendo que não passa o tempo. Que morre o tempo. Que acorda o tempo. Que existe o tempo. Que revolto está o tempo. A minha inércia também fora devorada pela chuva. Lentamente abro a janela e que espanto. Meu universo está completo de outras multidões. A liberdade me leva pela mão e nesse instante eu poderia tomar chá com a minha mãe. Beijaria o seu rosto, diria que ela é perfeita e adoraria a beleza de meu pai. Poderia salvar aqueles peixes de toda a solidão corrupta que enegrece a vida. Mas estou livre e já envolta por outra dimensão. Que não se engane quem observa a velocidade do corpo sobrevoando os campos de trânsito. É lenta a queda de quem vê o tempo engolindo o vento entre as janelas e o instante da interrupção. E recomeço a vida como o suicida que beija o chão.

 

 

O Relógio Urbano

 

Não foi dessa vez, mas quem sabe da próxima? E a próxima vez chega e também não acontece o fato. E logo surge de novo a esperança, lenta feito tartaruga velha. Tentarei. Farei melhor. Farei diferente. E nada é feito. Como um fumante que se desintegra em nicotina e alcatrão, tentativa é sempre suicida. É mais um trecho de um livro melancólico. A melancolia me dignifica. Encontro o meu lugar comum.

 9 da manhã. 10 da manhã. Alguns a mais e nada. Nenhum sinal dela. A Lívia é tardia. Nunca na hora. Me cansa. Mas é quase cômico o modo como a espero e o modo como ela chega. Entra pela casa feito uma espaçonave azul e vermelha. Péssima combinação. A Lívia me faz lembrar uma bandeira de um desses países da América Central. Aliás, uma ilha da América Central. Entra, senta ao meu lado e cozinha meu juízo com aquela velha história de atraso de gente preguiçosa. Eu acredito. Tenho mais é que acreditar. Acredito em tudo, então mente bem, acerta em cheio o meu alvo. Eu acredito.

E segue a lúcida Lívia para os seus afazeres patéticos. Arrumar camas que logo estarão desfeitas. Passo parte do dia pensando e parte dormindo. Me salvo pelo inconsciente. Abro o livro na página 45 e de repente, entro em sintonia. "É uma cidade suja. Há pombos e pátios escuros. As pessoas têm a pele branca." Incrível a semelhança. Amanhã termino de ler. Sinto como se fosse uma estranha. Sou uma estranha na cidade e a cidade também é suja. Não há cano de escape. Lembro que costumava ouvir o Sting falando sobre o alien in New York. Sou eu. A cidade é suja e todo mundo tem a pele branca.

 A Lívia tem a pele branca, embora tenha um certo aspecto indígena. Ela é meio índia e tem as pernas grossas e anda deselegante. Nada demais. Não é como as belas mulheres descritas pela Jane Austen. Mas eu a amo. É um amor urbano. Tem dias que não nos vemos, não sinto falta. Passamos, às vezes, semanas sem nos falarmos e ainda não sinto falta. Mas quando aperta a fome, sinto saudade. Aí ela surge. É o que chamo de telepatia da necessidade. Quando um carnívoro quer carne, come a carne. E haja carne.

Hoje acordei com fome. Mas deixo o tempo passar. Economizo meu cansaço. Vejo que há uma casa em minha rua. Uma casa que nunca tinha visto. Sabe essas horas em que você decide ver as coisas por perspectivas diferentes? São 11 horas e vejo a casa que nunca tinha visto. Uma silhueta se movimenta entre uma janela e outra. Não estou tentando reproduzir a sensação do observador do filme Janela Indiscreta. Não uso binóculos, tampouco quebrei a perna, não sou o James Stewart e a Lívia está longe de ser a Grace Kelly e essa cidade não é tão grande. Sou apenas alguém olhando uma casa que não tinha visto antes. Detalhes da vida ocupada. A casa é grande e tem janelas e tem esse vulto que atravessa as cortinas e gesticula. Deve estar ao telefone. Sim, está ao telefone. Vejo de longe que uma das mãos está na altura do ombro. Grande descoberta para uma quarta-feira desequilibrada.

E no alto de minha curiosidade, Lívia se aproxima e fala umas coisas que não faço questão de entender. Mãe, pai, tia, contas. Tudo junto na mesma oração. Não me perturbo. Decidi que nada me perturbaria. Sou o modelo típico da preguiça intelectual. Não gosto de pensar em coisas que não me trazem vontade. Pode ser qualquer coisa. Penso até em café ou sair por aí olhando por cima dos muros, mas não penso em detalhes de rotina. Só quero a Lívia. Hoje só quero ficar com ela. A Lívia, índios e nosso amor urbano. Sem encantamento de casais apaixonados. Sem meia luz e música para fazer vontade. Somente nosso amor urbano. Um trem que só passa uma vez por dia e quando vem, leva tanta gente que a estação fica vazia.

No começo era difícil entender suas reações. Éramos diferentes demais. Hoje ela me ensinou os mesmos propósitos. Não discutimos relação. Não discutimos. Temos horas subdivididas e eu a amo. Quase sem graça, quase de forma sensata. Somos trens urbanos. Dois túneis famintos. A Lívia gosta de meus cabelos escondendo o rosto dela quando tentamos a ordem do impossível. E feito caracóis de jardim, ficamos juntas. Horas e horas fazendo elevações e escavações por nossa necessidade também urbana. Todos fazem obras na cidade. Fazemos construção uma na outra. Amo a Lívia quase sem amor. Quase se amor. Quase sem voz. Amo a mulher quase na tranqüila paz dos ausentes. Quase morta. Quase feliz.

 


 

 

O Silêncio das Auroras

 

O relógio ecoava feito um piano antigo. Som das teclas, som das horas. Lá de fora se ouvia a gritaria. Era um tal de gente correndo pra cima e pra baixo e todo mundo abandonando seus afazeres. Padaria fechou, mercearia fechou, casal não beijou, casamento não aconteceu, livro não foi lido, crianças saindo da escola, homem esqueceu o conhaque, janelas se abriram, as fofoqueiras não falavam mais, bolinhas de gude ficaram solitárias. Quem dormia acordou, nada de alimentar animais, cerca viva sem água, jardins largados, pés tropeçando e vozes murmurando em frente à casa de Dona Aurora Aguiar, a viúva que de tudo fazia para ser discreta.

Após a morte de Seu Aguiar, o marido da distinta senhora de olhos azuis, ela não saía de casa. Não quisera mais se ter com o mundo. Não havia motivos para conhecer pessoas. Não havia mais motivos que a levasse às amenidades. Era simples, embora portasse um certo ar de altivez e, também, segundo Dona Maria Constância, a viúva era um tanto metida e exibia um ar de superioridade. É assim. A solidão acaba por ser motivo de conversas. Todos falavam. Porque Dona Aurora morava na casa mais bela da rua, do bairro, da cidade e decerto, do mundo inteiro já que o mundo inteiro é o mundo ao qual pertencemos.

Grande casa de enormes janelas e uma porta de se invejar. A Janete era a única que se aproximava de Dona Aurora. Trabalhara a vida toda para o casal e conhecia a viúva. Todos faziam exaustivos interrogatórios e Janete apenas dizia que Dona Aurora era uma boa mulher. Sentia apenas saudades do marido. Não tinha familiares e era sozinha. Tudo era simples para Janete, mas todo mundo achava que a viúva era uma figura esquisita, embora abastada. Todos desfiavam novelos inteiros sobre a vida de Dona Aurora. Viúva desde os 34 anos, tornou-se só. E agora, aos 72 anos, vivia das flores e de sua coleção de pratos de porcelana.

Porém ninguém sabia do amor que ela escondia. Ninguém sabia da mulher sem marido. Desde seus poucos anos, 20 e alguns tropeços a mais do relógio, ela passou a amar o Fabrício. Era o jardineiro da família que era constituída de um casal apenas e milhares de segredos entre as portas. O Jardineiro nunca era visto, por isso não fazia parte do falatório da cidade. Chegava à casa dos Aguiar ainda sob o esconder do sol, cuidava das flores, cuidava dos amores-perfeitos e regava tudo e plantava hortaliças e saía sem fazer ruído. Era o silêncio em pessoa. Bonito e de rosto limpo e olhos negros. Era a imensidão que Aurora amara desde a primeira vez que o vira. Amor entre o amanhecer e o silêncio.

Eram recíprocos amantes e ele sempre deixava uma rosa à janela de Aurora antes de sair e refugiar-se em sua casa distante. Eram novos no começo do amor e o tempo os consumiu a juventude. Mesma idade, mesmo amor. Cabelos brancos, bocas que não mais se beijavam, mas os olhos ainda se amavam. Ninguém nunca chegara a desconfiar. Era o segredo maior. Os dois preferiram o silêncio dos anos e não queriam que o mundo soubesse e travasse lutas contra o puro amor que dentro de suas almas habitava.

E a correria chegara aos ouvidos de Deus. Era Aurora, Dona Aurora, caída junto ao corpo. Todos lembram que mal se ouviu seu lacrimejar na morte do marido. Era discreta e não fazia estrondo. Mas, ao ver o amor caído ao lado das petúnias, não ponderou sua voz. Chamou a cidade inteira para ver o seu amor de tantos tropeços do relógio, ali, sem voz, sem brilho, morto pelos anos. E, com orgulho, Aurora perdera a sua compostura. Dali em diante, não seria mais a viúva do Seu Aguiar. Era a adúltera. A Falsa. Criatura de baixa classe. Mundana. Ela tinha orgulho agora. Esse homem morto me amou mais que qualquer outro vivente deste mundo. Carrego a dor do amor perdido e sou Aurora Adulterada. Agora tenho outro sobrenome. E a cidade se admirou.

 

 

O Velho

 

O velho se acomodou no assento e espalhou seu corpo de forma que Adriana sentiu-se obrigada a ficar imprensada entre o velho e a janela do ônibus. Adriana e aquele desconhecido ocupavam o mesmo lugar no espaço. Os dois naquele assento duro e impregnado de uma sujeira antiga. Um grude de tantos anos de gente indo e vindo naquele carro. É assim que os motoristas costumam chamar. Ônibus é carro e sujeira é grude e aquele velho era o mínimo que Adriana poderia suportar. Estudante e metida à intelectual, lia de tudo. Goethe agüentou a interferência minimalista dos ignorantes, então eu aguento qualquer absurdo. A caminho da faculdade, a besta da Adriana espreitava todo mundo como se fosse uma senhora cheia de pudor tapando o olho quando a novela mostra mais que o beijo do ator. E aquele velho se apossou dos pensamentos da leitora estudante cheia de exclamações.

O velho vestia linho. Calça de linho e uma camisa de botão e usava uma boina. A pele do rosto parecia deslizar da cabeça do homem. Tudo caído. Os olhos remelentos e com aquela brancura de olho de gente cega. O nariz cheio de poros abertos que mais pareciam crateras. O nariz pendia para o lado esquerdo e ela pôde ver pêlos saindo indevidamente daquele nariz indecente e podre. A boca semi-aberta respirava pelo velho e Adriana estava respirando o velho que se envergava ao seu lado com aquela boca quase aberta. O corpo curvo. Percebia-se isso porque o velho estava sentado e sua cabeça era como uma bola de canhão fazendo o corpo se curvar para frente e para os lados de acordo com o movimento do carro. O velho era o ponto de estudo de Adriana, muito embora ela se recusasse, mas estava presa àquela figura como se fosse a letra impressa na página de um de seus livros. O senhor exalava um odor de antiguidade. Essas roupas muito usadas e quase nunca lavadas e parecia ser a melhor roupa daquela criatura que usava boina e respirava de boca aberta. A curiosidade fez de Adriana um poço de interrogativas imaginações, pois que nem sempre, na opinião da estudante, pensamentos poderiam levar à questões.

Adriana estava certa de que os homens e suas cabecinhas de vento empoeirado quase sempre pensavam a respeito das repetidas imagens de TV, vozes alheias e nunca chegariam a interrogar a existência das coisas, a vida, o conteúdo de tudo que é visto. As pessoas não passavam de caixas vazias prontas para serem preenchidas por informações de baixo porte, ou seja, o mundo dos burros, estúpidos e imbecis. Ela estava certa disso. Certa de tudo. Jovem, carne fresca, vida facilitada por seus bondosos pais que a educaram com muita dedicação. Os pais eram advogados, leitores inveterados, a mãe tocava piano e o pai era seguidor da estética existencialista e acreditava na pura essência de seus charutos cubanos. Os amigos de Adriana eram intelectuais, examinavam conflitos, discutiam entre si e encontravam respostas que justificassem a quantidade de sanduíches que digeriam após uma sessão de cinema, partindo do pressuposto de que, o homem governa o universo, logo Freud explica e ainda usavam fontes filosóficas, históricas e citavam nomes de autores, físicos e pensadores e refletiam tardes inteiras acerca das formigas, árvores, bomba nuclear. Um bando de desocupados e prolixos eram os amigos de Adriana, mas ela que não saiba. Ela que não ouça.

E lá estava sorridente sentada ao lado do velho e percebeu que o velho a examinava. Ele está olhando para minhas pernas. Adriana vestia uma saia e a pela era lisa e estava certa também de que todos os homens a desejavam porque, convenhamos, era especial. Bonita, erudita e representava na faculdade, a elite da boa cultura e do gênio contemporâneo. E lia todos os livros e não somente os lia, como também, refletia por si mesma acerca do que os autores diziam. Adriana era seu próprio e pretensioso leitmotiv. Embora estivesse com alguns livros no colo, boa parte de suas coxas estava exposta e Kant, Foucault e Flaubert não conseguiram protegê-la da perversão daquele mísero representante das classes menos favorecidas. Muito bem educada e mesmo morta de susto e sentindo náuseas por estar sendo observada pelo lixo, respirou fundo, pediu que o senhor a deixasse passar e finalmente havia chegado à faculdade. O velho sorriu e ela pôde ver que não era tão velho assim. Havia algo de jovial naquele sorriso, mas esqueceu. Caminhou rapidamente entre os outros passageiros, pressionou o botão e o motorista parou e ela estava livre. A mãe não pôde levá-la à faculdade nesse dia e ela resolveu fazer parte da grande massa que move o mundo. O povo. E que desagradável. A pior experiência de toda a sua vida e ainda bem que estava protegida agora. Abriu seu caderno para ter certeza de qual seria a primeira aula, embora soubesse de cor. A aula seria um banho da água mais pura após ter sido molestada pela miséria vergonhosa de um ônibus.

Ao entrar na sala todos sorriram e era bom ver a Adriana e seus livros e seu corpo. A mulher pensante e genial por tanto e vasto conhecimento que carregava. Sentou-se em seu lugar de costume, bem a frente de todos, e sorriu suas gracinhas e seus amigos sorriram seus pensamentos evolutivos e a figura paralisou a cena. O mundo era o holocausto. Adriana sentiu a morte e a vergonha porque o velho a seguira à sala de aula. Ele a queria. Aquele pedinte fez Adriana soltar um grito de pavor e, tonta, levantou-se e afastou-se do homem protegendo o rosto com as mãos e gritando pedindo ajuda e que alguém afastasse aquele velho sujo e grudento, fedorento e pobre. Afastem ele de mim. O silêncio. Todos a olhavam e, passada a histeria, Adriana estava no chão. Seus amigos em volta a olhavam como se estivessem certos de que a menina era uma demente e por tanto tempo escondera esse fato e o velho pedia espaço para que a moça pudesse respirar. Ela não conseguia abrir a boca. Estava inerte. O velho tocou as mãos de Adriana e ordenou que alguém trouxesse água. Ela não entendia e todos aceitavam aquela figura que representava a podridão e a imundice do mundo. Alguém trouxe a água, ela bebeu da água e o velho pediu que todos se acalmassem e que fossem para os seus lugares e logo começaria a aula. E o velho disse à Adriana que havia observado a menina no ônibus e você estava tão perdida em seus pensamentos. Tentei conversar com você porque gostaria de saber onde conseguiu essa edição de Crítica da Razão Prática. É uma das melhores e ainda traz notas do autor. Desculpe-me por não me apresentar. Sou seu novo professor de Filosofia da Linguagem e me chamo Ernesto. E o mundo continuou.

 

 

Prelúdios

 

Mas era de um bom gosto infalível e além de tudo, não era mesquinho. Getúlio, de sua infância aos recantos e sofrimento em puberdade, passara a vida estudando o seu próprio comportamento e o de outros e o de tantos. O mundo era mesmo um enorme enredo de fonte de estudo. Aos 8 anos, lembra-se bem, nada de tão ágil criança porque sofria e não seria de alegria a sua face. Perdera a mãe. Tristeza absoluta. A maior desgraça de um homem é perder sua raiz e sua mãe era a porção que o protegia e era bela a criança e mais que bela a sua mãe. Primeira observação e tão precoce. Parece que tudo o que se perde se torna maior e sofrimento nos faz crescer. Continuara a vida ao lado do pai e duas irmãs pares de vasos idênticos e tão delicadinhos. Uma e outra. E o pai era calmo que só vendo. Era como tartaruga presa entre os galhos de plantas que nascem pelo chão. Um relógio atrasado. Era dessa forma que analisara o pai. E tomava nota de tudo porque era astuto de força e tamanho. Uma dessas crianças que crescem mais rápido que outras e enxergam minúcias.

 Sua família era o seu deleite e o tempo furtava de Getúlio mais idade ou, como ele afirmava ser, o tempo o construía melhor em fásicas urgências de vida. Viver é redobrar reforço porque, logo após a morte de sua mãe, órfão e tão coitado, fortalecera sua outra parte que havia negado durante algum tempo. Esmeril de olhares, Getúlio plantou-se a estudar. O pai tartaruga e as irmãs mais velhas como é de costume. Nenhum herói possui irmãs mais novas. São sempre mais velhas, histéricas e abobalhadas. Porque o herói precisa de um motivo para existir. Ele precisa que tudo seja medonho e obscuro. O herói precisa salientar-se. E aqui consta a narrativa da vida de Getúlio de nome simples e olhos ecléticos e fazedor de conta que era maravilhoso e seria eterno e sua mãe não estaria lá quando, finalmente, enfaticamente, completaria seus estudos.

Aos 19 anos completara tudo. Do alfabeto ao trajeto de corredores e professores fazendo alarde porque o menino sem mãe havia conseguido a chance. Teria nome. E no meio da história, no recheio do livro, suas irmãs já eram casadas e o pai havia encontrado um novo amor. Amor este que fez de Getúlio o mais vil e estúpido obséquio. Lucinda era linda e tão corpulenta. O pai a conhecera numa feira de antiguidades e levara Lucinda para conhecer os filhos. Getúlio, Isolda e Arminda. Belas criaturas, dizia Lucinda e Getúlio sentiu, aos 14 anos, o primeiro rubor de necessidade. E das faces largou o rubor e fez erguer do menino a sua parte que, até então, estava adormecida. Exceto nos dias em que observava o par de lindos vasinhos floridos trocarem suas vestes e beijar seus amigos ao portão. Ele anotava tudo em seu caderno de observações. Minhas irmãs são belas. Quem dera não fossem irmãs porque Deus não me estaria olhando e meu amor por elas é tão risonho e poema. Que pode haver de culpa em desejá-las?

Mais tarde, aos 12 anos, pôde entender essa questão nas aulas de Educação Religiosa e ao ler Frederico soube, embora não acreditasse, que sofria de ausência feminina porque a mãe o havia deixado. E agora o pai amando outra mulher e substituindo a mãe. Mas era o mundo e acontecimentos surgem e pessoas atravessam nossos olhos e passam a ser parte de nosso convívio. E Lucinda estava bela ao casamento. Rosada e seus cabelos ornamentavam seu corpo bruto. Ele não queria desejar, mas já ardia e desde cedo, aos 13 anos, não havia mais controle e rompia suas irmãs numa silenciosa sinfonia de mãos tapando a boca e abrindo as pernas e deixava em caquinhos de cerâmica os vasinhos. E corria sôfrego ao quarto e sorria pálido, mas quem haveria de não desejar suas irmãs? Sentia-se bondoso e caridoso por cuidar da carne antes de ser exibida ao empório masculino.

E a cerimônia temporou por duas horas e taças espumantes e Lucinda sorria de tanta alegria e o pai de Getúlio era de um olho comprido que agora estava sereno e casado de novo. Sentia-se homem. Sabia que havia feito bom trabalho ao criar seus filhos. As meninas crescidas, prendadas e o rapaz era tão honesto e lia obras de todo escritor, ao pé da vela, todas as noites. O pai tinha orgulho de seu filho Getúlio que agora estava a tratar de sua vida profissional e seria advogado o seu filho que ali se encontrava, em terno e traje de homem, 15 anos e tão adulto. Sorria o pai e também sorriam todos que ali estavam como testemunhas oculares de mais um casamento por amor e doce sacramento. E o rapaz não perderia aquela chance de fazer de novo coleção em seu diário de acontecimentos.

Não era violento. Tampouco estranho. Era apenas órfão e isso explicaria suas atitudes. E não há suspense. A cena decorre como espera o leitor. Lucinda vai ao quarto e logo entra Getúlio e mal pôde gritar a mulher e ele já estava sobre ela e os dois eram vestido branco e terno escuro copulando na cama do pai. Terminada a tarefa, Lucinda vestiu-se e saiu em lua-de-mel com o pai de Getúlio. Todos aplaudiam o casal. Arroz para que tudo fosse eterno e a fertilidade não os abandonasse. Getúlio estava em seu quarto anotando a experiência e como desejava ser seu pai por dias. Ser Lucinda por dias. Ela fora formidável. Não havia sido como as irmãs. Elas sempre choravam. E nem as primas. Eram secas e não faziam sentir o que Getúlio procurava. Nem as meninas da escola. Nem a tia, irmã de seu pai. Todas as mulheres eram mal sentidas. E os primos também e os amigos da escola e o padre. Este não pode deixar de existir. Todo aquele que procura ávida vivência não se priva de qualquer criatura para saber o que será de tal experiência.

E tudo estava anotado em seu caderno. Aos 19 anos possuía mais memórias que seu pai ou o velho orador que falava filosófico no dia da formatura. Estavam todos lá. As irmãs e seus maridos e filhos. Elas pareciam ter esquecido que o irmão havia feito e agiam natural. Silenciosas. O pai sorria evidente de orgulho porque havia criado o filho Getúlio para ser o onipotente que não conseguira ser. E ao lado do pai figurava Lucinda. De barriga cheia e de mãos dadas com o filho irmão de Getúlio. Repertório tolo se fosse assim apenas. De tão leve eloquência.

 Getúlio havia escolhido o nome de seu irmão, assim como à criança havia doado a existência. Dos 4 anos de vida do amor entre Lucinda e seu pai, Getúlio vivera 4 anos engolindo Lucinda pelos cantos e dormitórios daquela cidade e não sabiam os ingênuos olhares, mas o amor não se faz de um enlace de branco e renda. Lucinda e Getúlio viviam a esbórnia do amor tortuoso e maldoso e se amavam difusos de uma mesma categoria de humanos. Eram sais de banho da mesma alquimia e ela gerava filhos de Getúlio e ele a doava ao pai porque sabia que sempre a teria. E tolice seria dizer do amor como sentimento nobre. Lucinda sempre o desejou e Getúlio fora usado como carne antes da exposição ao empório feminino.

 

 

Soneto Inverso

 

Ela mudou. Lenta e diferente. De um falar diferente e me parece que flutua e não toca o chão. Que há com a menina? Era de se preocupar porque qualquer mudança não é apenas o indício de uma mera transformação. É o próprio ato casto que é prova de que a vida não é um rio parado onde adormece peixe colorido. É o trânsito pleonástico contínuo e ela continua diferente. Estou observante há dias. De minha alta solidão de quem corteja fingindo que sou aquilo que é menino que ainda não brotou da semente. Eu observo. Ela, a menina. E dilato a minha língua ao saber que não saber me transforma num paralítico analítico e morto de sede. Quero apenas saber da menina. Cor, reflexos, flor e ambigüidade. Os dois estavam na mesma sala há duas horas seguidas de minutos de irritados copos quebrados e um relógio de antiquário servindo de guia e penetrando o silêncio com aquela melodia de tique e taque de tudo e tarde e teor de infinita razão. Era uma bela estante que os separava do desejo que ele escondia e ela diferente, áurea e ausente da sala fisicamente, não percebia. Eu tentei albatroz ver por entre a gente que circulava. Tentei ver o que ela fazia. Lia. Toda dentro do livro. Só os cabelos e o corpo que era belo em forma e me dizia nada em gestos. Eu quis saber do livro que dela sabia. Qual a letra? O timbre de voz do narrador? O enredo? O medo que sentia da menina me movia em sua direção. Ele não desistia. Era a cena paralisada. O relógio cortando o tempo, gente entre os meios e eu. Tudo incompleto. E eu sabia dos sentidos. Visionava a espécie de mamilos escondidos. Tato que tanto queria o toque e o impulso. Olfato de emitir querer. Paladar de línguas encontradas em ritmo. Ouvir a sílaba tônica da vocálica silenciosa que lia. Ele tentava novamente ver o título do livro. Que autor a distraía de mim? Que peculiaridade havia que a retirava de si? Ela não estava ali e não me enxergava e a angústia o destratava monstro de querer mais. Um minuto e um espaço entre um leitor e outro e sentiu ter visto. Letra seguida de letra que se alongou por tanto tempo que eu queria ser aquele instante do rosto dela perdido no livro. Respirando sem alívio buscou ajuda e dicionário alcançou um termo verbete que tivesse piedade de sua existência que emanava curiosidade e tensão. Quis uma gravura, citação, algo que explicasse em definitivo aquilo que era fenômeno físico, astral, anônimo. E esconder o que tremia os ossos era dor e não havia tapetes ou rachaduras nas paredes. O único imperfeito era ele. Encontrou palavra bonita em curvatura e declinação. Sorrindo porque finalmente sabia o que sentia e era o impetuoso a decifrar o que era seu. E em busca, o tempo passa, arremessa os segundos e ela hoje está diferente porque eu estou diferente. Eu percebi. Jorrou de seu lábio um sorriso genuíno comum de um animal desperto após o inverno. A voz estava imposta. Envergou o corpo, levantou as asas da imoralidade e, ingênuo como as comparações do Soneto 18, estendeu seus olhos e já era o tempo. Na mesa em que lia a menina ainda estava o aroma de sua alma oblíqua e o livro aberto dizia que lírico era um amor distante.

 


 

(imagens ©ballyscanlon)

 

Letícia Palmeira é graduada em Letras com Licenciatura em Língua Inglesa e suas Literaturas pela Universidade Federal da Paraíba. Nasceu na cidade de São Paulo onde passou boa parte de sua infância e agora reside em João Pessoa, cidade em que leciona Língua Inglesa na rede privada de ensino. Terá seu primeiro livro publicado em 2009 pela Editora Universitária da UFPB. Letícia Palmeira é cronista, contista e trabalha com prosa poética. Escreve o blogue Afeto Literário.