Encerra-se o "espetáculo" com uma inusitada criação de ninguém menos que Machado de Assis — uma "ópera cômica em sete colunas", que é conto (assim fora também "Antes da missa" e "O bote de rapé", dessa mesma safra, erroneamente catalogados como teatro), integrante, comme il faut. Aliás, o conjunto de contos publicados em 1878, com o pseudônimo Eleazar, em O Cruzeiro, denominados por Galante de Sousa como "estranhas fantasias machadianas" [vide, a propósito, Contos de Machado, veiculados aqui na Germina em 2008]. Este "A Sonâmbula", originalmente publicado em 26 março de 1878, só apareceu na importante coletânea Dispersos, de Machado de Assis (Rio de Janeiro: INL, 1965), organizada por Jean-Michel Massa: a veiculação em Germina, inédita no meio digital, tem portanto significância extrema.[Mauro Rosso]

 

 

 

 

 

 

música do maestro Policiani.

 

personagens:

 

dr. Magnus, rnagnetizador

Garcez

Simplícia,  sua mulher

o tenente Lopes

Chico Esquinência, urbano

d. Flora de Villar, sonâmbula

João Brito, urbano

Raimundo, urbano.

 

coros de consultantes, urbanos, criados e criadas

 

 

cena I

 

Lopes e coro de urbanos — (passando ao fundo, embuçado  e com lanternas) -

Piano, piano, piano,

Com trabalho insano,

Prescrutar o arcano,

É dever do urbano.

 

Lopes — Marchemos...

João Brito — Saiamos...

Chico Esquinência — Façamos...

Raimundo — Extremos...

Todos — Para triunfar,

             Piano, piano, piano,

             Vamos ao arcano.

             Piano, piano.

(retiram-se cautelosamente)

 

 

cena II

 

dr. Magnus, d. Flora, consultantes (vindo de dentro)

Coro de consultantes — Nós somos os consultantes,

                                 Das sonâmbulas sutis,

                                 Cujos olhos penetrantes

                                 Sabem ler o eterno X

 

1º consultante — Eu tinha um princípio de febre amarela...

2º consultante —   Eu quis o  castigo de um pérfido algoz...

3º consultante — Eu andava em busca do tio Varela...

4º consultante — Eu pedia novas de um saco de arroz...

Todos  — E a febre amarela,

              E o pérfido algoz,

              E o tio Varela,

              E o saco de arroz,

              Tudo se propôs,

              Tudo se compôs.

dr. Magnus — Vão para casa, e verão se d. Flora errou. (apresentando uma bolsa) Agora resta a espórtula (os consultantes pagam). Muito bem, meus filhos. Não se esqueçam do número da casa. Curam-se doenças, acham-se as coisas perdidas. Adivinha-se o futuro... Adeus, adeus.

Coro — Nós somos os consultantes, etc. (saem)

 

 

cena III

 

dr. Magnus, d. Flora, Garcez, Simplícia.

 

d. Flora — Um cavalheiro chega...

dr. Magnus — Uma dama penetra...

São pessoas de bem e trazem grave porte.

d. Flora (a Garcez) — Quer acaso saber em que número a sorte...?

dr. Magnus (a Simplícia) — Vem notícias pedir do seu priminho, et cet'ra ?

Garcez e  Simplícia — Quero saber o que é

                              Este

                              Boné

                              Esse

                              Boné

d. Flora e dr. Magnus — Saberemos o que é,

                                 o tal boné.

Garcez — Poderia dizer-me com certeza a quem pertence este boné?

dr. Magnus — Se podemos dizer? Mas, senhor, nós podemos dizer tudo, sobre todos os bonés do universo. Nós sabemos todas as ciências, a cartomancia, a quiromancia, a nigromancia, a onomanda, a ganância e a petulância. Eu sou o célebre dr. Magnus, isto é, o grande doutor, o doutor máximo, o doutor onividente, oniciente, onipresente e onipotente. Esta é a não menos célebre d. Flora de Villar, a sonâmbula lúcida, extra-lúcida, super-lúcida e oni-lúcida.

Garcez — Basta. Não é  preciso mais nada para explicar este boné.

dr. Magnus — Vê-se que é um boné militar.

Garcez — Militar. Mas a quem pertence?

dr. Magnus — V. S. é  militar ?

Garcez — Não, senhor.

dr. Magnus — A primeira coisa que vejo, assim de relance, é que ele não pertence a V. S.

d. Flora — (pegando no boné) Oh! isto é patente; este  boné não pertence a V. S.

Garecez — Acertaram. (à parte) São dois  poços de ciência. (alto)

Mas a quem pertence?

d. Flora — A um militar.

Simplícia — Que militar?

dr. Magnus — Isto agora só o  magnetismo nos poderá responder.

Garcez — Vou contar-lhe o caso. Achei este boné há meia-hora no meu corredor, que é no primeiro andar. Sabem que moro no primeiro andar. Um boné não cai do céu, nem vem pela sua própria pala sentar-se em um corredor. Procurei ver se estaria dentro a cabeça do tenente... (a Simplícia). Ele é tenente?

Simplícia — Tenente!

Garcez — Capitão. Queres dizer que ele é capitão. Procurei ver a cabeça do capitão.

Simplícia — Que capitão?

Garcez — Capitão ou major, não vem ao caso. Digam militar. Procurei a cabeça do militar e não a encontrei. Tive pena, porque sendo provável que a cabeça esteja em cima dos ombros, eu tencionava separá-las imediatamente.

Simplícia — Não digas isso!

Garcez — Ah! Tremes! Tu tremes pelo major?

Simplícia — Tu estás doido. Sei lá quem é o major ou capitão? Que idéias são essas a respeito de um boné, e de um boné anônimo?

Garcez — (com convicção) Todo o boné é anônimo. (ao dr. Magnus) Diga-me: quem é o  militar?

dr. Magnus — Repito: só o magnetismo nos poderá a responder. O magnetismo é ciência magna, capaz de lutar com o naturalismo, o fetichismo, o radicalismo, o antagonismo, o feudalismo e galicismo. Se querem saber o que ele é, e por que modo me acho de posse dessa grande chave do futuro, dessa chave que escaranca os recessos do destino...

Garcez, Simplícia — Ouçamos, ouçamos

                           O grão Nostradamus.

dr. Magnus — Ouvi-me! calai!

                    Ouvi-me ! escutai.

(com ar misterioso e confidencial)

                     Esta ciência

                     Nasceu no Egito,

                     Onde eu, proscrito,

                     Numa audiência,

                     Junto a Suez,

                     Comprei-a à agência

                     De Radamés.

Garcez e  Simplícia — Radamés! Radamés!

Garcez — Vejamos o boné.

dr. Magnus — Sim, senhor. (faz alguns passes sobre a cabeça de Flora). Uma, duas, três.

d. Flora — (dormindo) Esse boné pertence a um jovem militar.

Garcez e  Simplícia — A um jovem militar!

                                Durma de uma vez.

d. Flora — Que estoura de paixão e quer fazer-se amar.

Garcez e Simplícia — E quer fazer-se amar.

Garcez — Basta, basta, já. sei. Sei tudo; basta, basta.

dr. Magnus — Mas que furor é e esse?

Garcez — Afasta, afasta, afasta!

(falando) Pérfida! monstro!

Simplícia — Eu pérfida? eu monstro? que escuto? que é isto?

Garcez — Tu pérfida, insisto;

              Tu pérfida e má.

Simplícia — Protesto-te, juro, re-juro e tre-juro...

Garcez — O crime futuro

               Consuma-se já.

Simplícia — Que queres tu dizer?

Garcez — Que vás morrer, morrer.

Simplícia — Morrer?

Garcez — Morrer!

coro de criadas  (entrando) — Que rumor ouvimos nós?

                                          Estes gritos, esta voz...

coro de criadas (entrando) — Venham, venham para a sala,

                                         E corramos a salvá-la!

Simplícia — Piedade, piedade, piedade!

Garcez — Não, não!

dr. Magnus (intervindo) —

                Ora pois, a ciência inda conhece um meio

                De conjurar o mal: o mal inda não veio

                Posso aos fados trocar os horrendos papéis.

                Custa pouco...

Garcez e Simplícia — (súplices) Ah! Senhor!

dr. Magnus — Custa trinta mil réis.

Garcez e Simplícia — Conjurai! Conjurai!

dr. Magnus — Esperai! Esperai! (rumor fora)

                   Mas que rumor é este? Ouço vozes, espadas...

                   São fregueses, talvez, que sobem as escadas.

Garcez e Simplícia — Conjurai! Conjurai!

Dr. Magnus — Esperai! Esperai!

 

 

cena IV

 

os mesmos, Lopes e os demais urbanos.

coro de urbanos — Piano, piano, piano,

                          Vamos ao arcano

dr. Magnus (a Garcez e Simplícia) -

                           Vou primeiro aviar estes novos sujeitos.

                           Querem talvez saber de algum preso; esperai;

(aos urbanos) Aceitai os meus respeitos

                     E escutai.

(com ar misterioso e confidencial)

                     Esta ciência

                     Nasceu no Egito...

Lopes — Pega, João Brito!

            Salta, Esquinência!

dr. Magnus — Ó Céus! Quem és?

Lopes — Pertenço à agência

            De Rhadamés!

coro — Rhadamés! Rhadamés!

d. Flora — Sinto o sangue fugir-me das veias...

dr. Magnus — Sinto a vida romper-se aos pés...

d. Flora — Já me arroxam pesadas cadeias...

dr. Magnus — Já me apertam terríveis galés.

coro — Rhadamés! Rhadamés!

dr. Magnus — (a Lopes) -

                   Mas, senhor, eu protesto, eu juro aos céus e ao mundo

                   Que a ciência imortal...

Lopes — Segura-o bem, Raimundo!

             Não há mais piar;

             Calar e marchar.

(vai sair e vê o boné na mão de Garcez)

Lopes — Que vejo ! O meu boné perdido.

Garcez — Seu ? Este boné é seu?

Lopes — Perdi-o hoje, quando andava a vigiar o famoso dr. Magnus e a célebre d. Flora.

Garcez — (estende-lhe os braços) Ah! Senhor! Deixe-me apertá-lo ao coração. Troca por troca: eu restituo-lhe o boné; V. S. restitui-me a felicidade.

Lopes — (conceituoso) É a mesma coisa; a felicidade é o boné do espírito.

todos — (menos os presos) Piano, piano, piano,

                                      Com trabalho insano,

                                      Descobriu-se o arcano.

                                      Piano, piano.

Eleazar

 

 

 

 

março, 2009