"e o coração audível imobiliza-se para ruborizar

a erva indestrutível da luz".  Luís Serguilha

 

A poesia de Luís Serguilha nos faz perceber que O início é o caos, é do caos que nasce o movimento que cria e recria por meio de explosões, choques. Sua escrita nos remete a uma galáxia em que tudo flutua: solto, livre, formando as mais inesperadas constelações de palavras-seres-coisas-sons-sentidos-cheiros. Assim, o movimento permitido às palavras torna possíveis múltiplas formas de (re) significações, (re) combinações fazendo com que uma escrita fragmentária busque a sua impossível, improvável unidade, unidade mutável, reordenável. Tal característica sugere o grande mistério presente na escrita de Serguilha, pois cabe ao leitor identificar uma unidade para esse texto fragmentário; não uma unidade linear e contínua, mas uma unidade musical, sensorial, já que a leitura da poesia de Luís Serguilha inspira e aflora as mais variadas sensações.

O caos, na escritura do poeta português, pressupõe a criação: criação de uma nova forma de escrever, de ler, de apreender sensações; criação do mundo. Um dos inúmeros mitos que cercam o mistério da criação diz que Deus teria criado o mundo a partir dos sons, de modo que tudo tem como substância os sons. Quando Deus teria terminado de criar, sonoramente, o mundo, fez-se um grande Silêncio, o silêncio que vem depois de toda criação, o silêncio-palavra que fica para dizer. Pois sempre há o que dizer, inclusive através do silêncio, o silêncio após toda a criação. Como Serguilha, que nos faz perceber esse caos, constrói o seu texto entre sons e silêncios.

A obra de Serguilha é feita de imagens, suas marcas de leitura são construídas pela sonoridade das palavras, pela disposição destas na página, por esse movimento que nos sugere uma tentativa de romper a página, ultrapassar os limites de um espaço determinado para alcançar a espacialidade, o não-lugar, o lugar nenhum. Conforme evidenciamos na escrita do poeta:

 

 

                                      Numa ondulação intervalada de rastejantes substâncias magnetizas a espádua ilimitada das combinações

             que auscultam o exuberante deslizamento dos semáforos instantâneos

                                      onde os pilares escalavrados do sol parecem pássaros               de vantagens perfeitas (SERGUILHA, 2005, p. 22).

 

Uma escrita que não se prende a pontuações, aos paradigmas tradicionais, mas que almeja ser livre para criar outras estruturas, para dizer através da música, do silêncio, dos espaços em branco, aliando a página, a configuração espacial à sua própria tentativa de alçar voo 

 

como um pêndulo de pássaros a desnudar a estampagem

                                                                             das maconhas pendulares

                                                                       sobre as câmaras-gafanhotos        

(SERGUILHA, 2008, p. 11)

 

 

Dentre as várias obras de Serguilha, encontramos títulos reveladores, que anunciam uma escrita particular, única e aleatória: Hangares do Vendaval, A Singradura do Capinador, Embarcações, O Murmúrio Livre do Pássaro, O Externo Tatuado da Visão, Lorosa'e Boca de Sândalo, O Outro, Périplo do Cacho e As Processionárias são alguns títulos que marcam um ponto para a escrita fragmentária, apesar de que os poemas incorporados em cada um desses livros seguem rumos diferentes, alcançando pontos outros, cada vez mais imprevisíveis.

A escrita caótica-galáctica tira o leitor do seu conforto, faz com que ele observe — tal como um astrônomo — as constelações e os astros no céu da Poesia. Essa escritura pressupõe que "rasguemos o firmamento e que mergulhemos no caos" (DELEUZE, GUATTARI, 1991, p. 260). A idéia de Deleuze e Guattari é que no caosmos — caos no cosmos — não há síntese ou uma tentativa de se conter ou de se superar o caos: o que há é uma vontade de entrar no mesmo movimento do Caos de modo a se criar um caosmos: "A arte não é o caos, mas uma composição do caos, que dá a visão ou sensação, de modo que constitui um caosmos, como diz Joyce, um caos composto — não previsto nem preconcebido." (DELEUZE, GUATTARI, 1991, p. 263). A escrita caótica dá vazão ao pensamento, buscando exprimir a arte em sua essência, tornando-a sensível; no entanto no processo dessa criação escritural há dor: 

 

Nada é mais doloroso, mais angustiante do que um pensamento que escapa a si mesmo, idéias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não dominamos (DELEUZE, GUATTARI, 1991, p. 259).

 

O poeta/escritor do Caosmos está sempre diante do desconhecido, do inesperado, do inusitado, do que nunca se entrega e nunca se mostra, do que escapa para dentro do Caosmos, podendo tanto haver criação a partir do choque quanto da distância, numa aproximação que causa explosões. Lembremos que a teoria do big bang defende que o mundo se criou a partir de explosões. Por sua vez, Blanchot — convocando Mallarmé — diz que a única explosão é um livro.

Mallarmé — poeta também galáctico, caósmico —, em sua obra Un coup de dés jamais n'abolira Le hasard (1897), faz nascer uma nova forma de escrever poesia, apontando para o vazio da literatura e para as explosões das palavras que giram num movimento galáctico pela página. Esse vazio se configura em sua literariedade, pelos espaços vazios ao longo do papel, mas também pelo vazio final da literatura, pois ao desejar abarcar infinitas significações permitidas por essa escrita poética percebe-se, também, o paradoxal embate entre a completa significação e a ausência de entendimento, de sentido. Ressaltamos essa ausência de sentido no que se refere à concepção tradicional de inferir sentido a uma obra, pois para a escrita galáctica o sentido, a significação são relacionados às sensações, aos sons e à apreciação das palavras livres pela página.

 

A linguagem tem uma função negativa (ela não presentifica o objeto, mas o torna ausente), e é essa função negativa, levada até o silêncio, não como uma falta de sentido, mas como distância eloqüente, que deve ser acentuada pelo poeta. (...) O poeta, enquanto indivíduo, desaparece em sua fala, para que nesta o leitor se comunique com sua própria linguagem. (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 122).

 

Uma obra que visa à totalidade e o vazio, pois já sabendo ser impossível alcançar a totalidade permanece-se percorrendo este caminho, caminho único que faz com que uma obra seja literária. Para chegar a essa totalidade, Mallarmé vislumbrava o entrecruzamento das palavras, a bifurcação dos caminhos, o movimento contínuo e infinito,

 

 

Um ancoradouro de lantejoulas lateja na recriação ligeira

das moradas nupciais

                         desbravando a pausa ilusória que decompõe o dilúvio

cronológico da voz (SERGUILHA, 2002, p. 12)

 

 

A poesia de Luís Serguilha se instaura, numa perspectiva blanchotiana, na ausência do livro, através de uma relação inusitada entre a escrita que visa dizer o indizível e as palavras que nada dizem ou que dizem o Nada. Uma escrita fragmentada e que por isso mesmo tem o fragmento como parte de algo, mas também como algo independente. Assim, a disposição das palavras na página, o movimento que rompe as margens dando a sensação de uma escrita infinita se direcionam ao mesmo tempo a todos os pontos da escrita e a nenhum.

Como uma expansão galáctica, percebemos no texto o movimento não só de palavras como também das figuras, da musicalidade, do vazio, juntos formando um todo único, indissociável que compõe os demais numa relação de inter dependência para que existam:

 

 

é este o triângulo-canino das ocupações

                      anárquicas dos meridianos incendiários

que anuncia o adensamento

                    da matéria arterial do riacho-gladiador

                                                                 (___ limalhas-batuques das parábolas-persianas

                                                emolduradas espantosamente

                                                                       pela concupiscência-sonoridade-radioactiva

                                                       das mil raias das caminheiras___)

(SERGUILHA, 2008, p. 13)

 

 

Ouçamos aqui os ecos do poema-em-prosa ou prosoema ou proema Galáxias de Haroldo de Campos que também perpassa essa expansão galáctica pelo "fluxo de signos, sem marcas de pontuação ou letras maiúsculas, fluindo ininterruptamente sobre a página" (OLIVEIRA, 2007, p. 123):

 

e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço o arremesso e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem o que importa não é a viagem mas o começo da por isso meço por isso começo escrever  mil páginas escrever milumapáginas para acabar com a escritura para começar com a escritura para acabarcomeçar com a escritura por isso recomeço por isso arremeço por isso teço escrever sobre escrever é o futuro do escrever sobrescrevo sobrescravo em milumanoites milumapáginas ou uma página em uma noite que é o mesmo noites e páginas (CAMPOS, 1984, s.p).    

 

Serguilha — assim como Haroldo de Campos — faz uso de palavras-valise a fim de criar novos sentidos, novas imagens. A palavra-valise é um tipo especial de neologismo,  sempre formado por duas ou mais palavras, sendo, portanto, uma palavra composta. A mistura de sons, de formas gráficas e de sentido leva ao surgimento de uma nova palavra, palavra trabalhada/lapidada para se encaixar num contexto poético e para significar o que aquele contexto pressupõe. Assim, percebemos que tais palavras fogem das definições, pois são múltiplas e polissêmicas. 

Em vista de todas as considerações aqui retratadas, vislumbramos que a obra de Serguilha tem a página como universo, galáxia, em perpétuo movimento de criação e transformação. Um texto aberto que permite a entrada de um leitor-astrônomo contemplando a disposição dessas palavras-astros pelo poema. E, acima de tudo, um poema-vida, ou seja, uma escrita que pressupõe um ciclo da vida: a escrita / vida continua mesmo que não percebamos um laço, uma continuidade. A obra de Serguilha traz uma escrita galáctica, fragmentária, musical que abrange a continuidade infinita da vida...

 

 

          Os trilhos interestelares dissecam harmoniosamente

                       a constituição do pólen ao inaugurarem as oradoras arquitecturas

dos pássaros vegetais

                           e os ligamentos puros da guitarra-relâmpago desbloqueiam o

sorriso da embarcação nupcial

                                                 para respirarem uma pátria de virilhas sonoras

(SERGUILHA, 2005, p. 111)

 

 

 

 

Obras de Luís Serguilha

 

As Processionárias (São Paulo: Demônio Negro, 2008)

Hangares do Vendaval (Évora: Intensidez, 2007)

A Singradura do Capinador (Lisboa: Indícios de Oiro, 2005)

Embarcações (Vila Nova de Gaia: Ausência, 2004)

O Murmúrio Livre do Pássaro (Vila Nova de Gaia: Ausência, 2003)

O Externo Tatuado da Visão (Vila Nova de Gaia: 2002)

Lorosa'e Boca de Sândalo (Porto: Campo das Letras, 2001)

O Outro (Braga: Correio do Minho, 1999)

O Périplo do Cacho (Braga: Correio do Minho, 1998)

 

 

Referências

 

 

 

 

dezembro, 2009

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Poemas

 
 
 
 
Eclair Antonio Almeida Filho e Bruna Fontes Ferraz são membros do Grupo de Estudos Blanchotianos e de Pensamento do Fora – UNB – Brasil.