©ray massey
 
 
 
 

         

         

A tradição poética pode ser interpretada como uma infinitude de vozes em atrito que, em fim de contas ou a certa distância, resulta em harmonia, ou melhor: sugere uma coesão dinâmica onde verticalizações sincrônicas restauram o acervo da diacronia para as contingências do agora-agora. Cada poeta ou movimento, na conciliação de suas contradições, representa, portanto, um duplo abreviado de semelhante tradição. Qualquer experiência de linguagem é sempre irredutível e dura em seu centro, nenhuma delas se deixa comparar com facilidade. Mas, o mais das vezes, alguns dos seus funcionários — aqueles que só trabalham em benefício de si próprios — se esforçam em fazer com que elas se aniquilem umas às outras. Pois, cada poeta com sua obra se refere sem reservas (seja como continuação, seja como ruptura) à tradição, e não raro a reivindica apenas para si (seja como seu crítico, seja como seu guarda-costas). Do mesmo modo, jamais conseguirá admitir sua partilha sem anular-se. Entretanto, esse poeta virtual assina inadvertidamente o contrato do seu declínio ao buscar ou ao alardear a morte de todas outras linguagens com as quais, talvez contra a sua vontade, estivera entretecendo alguma forma de interlocução.

Não se quer aqui fazer a defesa da indiferenciação hipocritamente tolerante, nem de suportar a figura do sujeito que prefere se ajustar às regras contemporâneas deixando de se situar porque parece estar claro, para ele, que foram cancelados os dilemas poéticos e ideológicos. A copiosa produção literária dos últimos tempos, conformada à escala e à escola do mercado, impôs uma trégua cínica aos conflitos e combates que até há bem pouco tempo geravam ao menos precipitações, ou seja, movimentos. Havia um contínuo e provocante abandono dos territórios conquistados. As quizilas, as réplicas e tréplicas inerentes ao pathos convivial — contraparte necessária ao pathos da distância constitutivo da linguagem da poesia — nos condenam a uma atitude de análise em que o importante é nos sentirmos implicados quer nos logros, quer nas pertinências que denunciamos.

De outra parte, a insistência um tanto dalibanesca na demonstração de que a poesia está em crise (em sentido fraco), pode não passar de um truque de propaganda daqueles que, a partir do quadro de desolação que pintam, pretendem recompô-la desde seus aposentos presunçosos onde se encontra, podemos supor, um computador conectado. Muito bem, fui levado a essas cogitações após tomar contato com uma entrevista (concedida a Márcio-André) do poeta, teórico e performer Bruce Andrews que há pouco esteve, por assim dizer, a passeio pelo Brasil. Andrews, junto com Charles Bernstein foi um dos fundadores do movimento L=A=N=G=U=A=G=E surgido no final da década de 1970. Então, para além desse informe sucinto, essas poucas linhas de uma protocolar "nota sobre o autor", quem é, em fim de contas, Bruce Andrews? Para falar a verdade, não sei muito a respeito do poeta. Aliás, o pouco que consegui obter sobre o seu fazer poético — que mais adiante poderei confirmar ou não, lendo mais demoradamente seus poemas já que, segundo Márcio-André, Andrews aproveitou a visita para supervisionar a tradução de sua primeira série de composições vertidas para o português —, o pouco que consegui obter, dá conta de que já há alguns anos, Bruce Andrews não vem fazendo nada de novo. Parte da crítica o reconhece como um bom poeta em nível microestrutural, isto é, no interstício relativo e relacional entre palavra e palavra ele alcança combinações inventivas. Mas o mesmo não aconteceria quando lhe é exigido plasmar macroestruturalmente os seus poemas. Em outros termos, seus poemas seriam meio desestruturados, desconjuntados.

No entanto, o que me interessa discutir aqui é menos o poeta (eventualmente defectivo) do que as afirmações do Bruce Andrews, teórico da language poetry, pondo-se em relação com outro movimento das vanguardas, isto é, a poesia concreta e com a situação espiritual e pública da poesia feita contemporaneamente no Brasil. Como acontece com todos os poetas, desde o alto modernismo até aqui, Andrews reage aos estímulos como escritor-crítico. Esse ser compósito se embrenha (às vezes, à revelia da própria vontade) num debate de formas e ideias que diz respeito a si e aos seus iguais, e que, de outra parte, pede a interferência deles e a sua resposta futura. Escritores dessa extração pensam de maneira interessada e interesseira, e aquilo que pensam orienta a produção de suas próprias obras, que, dependendo das alternativas de poder dos grupos dominantes incrustados na dinâmica da tradição, podem dar ou não prosseguimento à "Literatura". E o que diz o poeta-crítico Bruce Andrews a propósito do concretismo e da poesia que lhe sucede?

Essencialmente, nada de novo. Contraditoriamente, o poeta se diz "bastante atento ao que se produz por aqui", mas, admite "não conhecer a poesia brasileira mais recente, sobretudo por conta da carência de traduções para o inglês", e manifesta o seu temor de que "a coisa esteja enferrujando". Como Andrews não fala o nosso idioma, suspeito que a causa dessas confusões de percepção são produto de informantes que por sua vez ou estão mal-informados ou, mesmo, mal-intencionados. A locução tão misteriosa quanto inócua de que "a coisa esteja enferrujando" para os lados da poesia brasileira é exemplificada com a seguinte historieta. Bruce Andrews revela ao seu entrevistador que um estudante de letras em São Paulo, teve sua tese recusada ao propor uma dissertação sobre a language poetry. Os motivos da recusa: um tópico sobre poesia americana seria aceitável se fosse com um recorte mais tradicional, pois se fosse o caso de analisar uma poesia mais radical ou experimental só seria aceitável sendo de um espécime nativo. Andrews conclui criticando no episódio o nacionalismo e o conservadorismo decorrentes de um paroquialismo da comunidade literária local. Se o poeta americano toma este episódio como um sintoma da situação de suposto emperramento da poesia brasileira, só posso dizer em bom português que ele está por fora. Para começar, Andrews mistura as coisas. A cena descrita denuncia antes a ferrugem a corroer as estruturas dos departamentos acadêmicos, do que expressa alguma coisa de significativo sobre a poesia atual praticada aqui. E depois, não obstante o pensamento mestrando e doutorando mova submundos e fundos na tentativa de emplacar o seu "controle institucional da interpretação" a respeito do assunto, não se pode confundir a leitura, isto é, as necedades que se diz sobre não importa que obra poética dentro desses muros, com essa imagem cambiante que temos da poesia contemporânea, poesia que está longe de ser uma estrutura solidificada de nomes e consagrações.

Recentemente, em artigo intitulado "Literatura, sociedade e cinismo em Sergio Miceli", também publicado em Sibila, Leda Tenório da Motta rebate crítica de Miceli que, com quase 25 anos de atraso, reprisa as censuras feitas por Roberto Schwarz ao poema "pós-tudo" de Augusto de Campos e, por extensão, à poesia concreta. Leda aponta a maledicência do resenhista da Folha de São Paulo porque ao dissimular sua falta de repertório, Miceli põe em ação uma leitura aversiva do poema, mas sem que esta se faça através da própria literatura. Sergio Miceli, estudioso das mídias suportadas por fast thinkers de toda espécie, impacientes com as armadilhas e os refinamentos de linguagem — ainda que, como nos lembra Leda Tenório da Motta, "não possa haver poesia sem isso" — dá a sua contribuição retardatária à "velha guerra aberta da universidade contra a poesia", decretando que os estilemas da poesia concreta estão "em baixa".

Ensaboadela parecida à de Miceli é ministrada por Bruce Andrews quando este se aventura a dizer que "a poesia [brasileira] está numa encruzilhada", porque parece indecisa entre uma dicção "narrativa, bem dentro da tradição" e o "fantasma do Concretismo", movimento que, malgrado a admiração que lhe infunde, considera "ultrapassado". E Andrews complementa: "O Concretismo foi suficiente em 60, mas não é suficiente para uma tradição. É limitado. Os brasileiros precisam ir além, senão correm o risco de se fecharem". O que a entrevista revela logo em seguida transforma a afirmação acima numa contrafação, pois diante desse cenário de "beco sem saída" (sim, o velho slogan subjaz ao raciocínio do poeta americano) talvez fora o caso de prestar um pouco mais de atenção às "vantagens" da L=A=N=G=U=A=G=E. O poeta norte-americano deprime o alcance da aventura concreta com o objetivo de entronizar as perspectivas da sua vanguarda. O movimento poético criado por ele e Charles Bernstein "reúne diversas possibilidades que a tradição pode oferecer à linguagem". Segundo Bruce Andrews, a language "é um grande guisado com diversos ingredientes, enquanto o Concretismo utiliza alguns poucos e limitados. Isso se deve ao fato de a language ser mais aberta, menos idiossincrática...". Sim, entendo, a language trata-se de uma outra forma de ecletismo que mescla escrita automática e Wittgenstein. A divisa-emblema do movimento: L=A=N=G=U=A=G=E é de uma simpleza exemplar, qualquer sujeito decodifica a logomarca (igualdade na idiossincrasia). O mais decepcionante é que o poeta e também performer Márcio-André, parece ter caído nessa conversa de despachante da avant-garde de Bruce Andrews, pois o poeta carioca a considera como uma preocupação relevante, concluindo que se não atentarmos para essas coisas "corremos o risco de terminar no 'tupiniquinismo', apostando em um movimento que deu certo internacionalmente como única possibilidade de sermos internacionais". Mas o que significa tornar-se ou ser "internacional" por essa ou aquela via? Até hoje se cospe na cara dos criadores da poesia concreta que o movimento "deu certo no exterior". Se reconhece isso com um certo recalque, uma má vontade tão risonha quanto hostil: por que a poesia concreta conquistou esse feito, por que logo esse movimento, que "parou no meramente visual ou sonoro"? Por outro lado, o anseio de ser internacional, hoje, não é senão uma veleidade caipira laqueada ou cromada com esse espírito novo-rico que evita por todos os meios se tornar o que não pode deixar de ser: um processo supersticioso.

Expressão de poetas-críticos que pensaram e pensam sobre os limites, as singularidades e as imposturas do gênero, a poesia concreta pôs em circulação poemas que inventaram outros problemas. É complicado afirmar isso sem que alguém se levante e diga, interpondo uma espécie de questão de ordem, que sou, por exemplo, apologético ou parcial, mas vá lá, afirmarei assim mesmo: a poesia concreta não tem que resolver nada. E, de resto, à semelhança de qualquer bom poema, não admite solução.

Márcio-André encerra o artigo-entrevista dizendo que Bruce Andrews se despediu do Brasil com um lote de livros na mala, mas que, admite, certamente não conseguirá ler por conta do idioma. Mais essa. O forasteiro ainda por cima é surdo ao primeiro violino que estaríamos aptos a tocar, não obstante a periferia de que somos filhos.

 

 

 

dezembro, 2009

 

 

 

 

 

Ronald Augusto (Rio Grande/RS, 1961). Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões aplicadas (2004) e No assoalho duro (2007). Despacha no blogue Poesia-Pau.

 

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