©adamastor m.
 
 
 
 


 

Acho que podemos falar de um modo bastante arejado, como se saíssemos para tomar um pouco de ar.  Tenho uma lista de doze itens sobre o assunto. Gosto do número, e gosto do fato de que, evidentemente, não se trata de algo exaustivo. Insisto contra a pressa, abaixo, porque andamos meio apressados e parece que não é o tipo de coisa que dá certo. Mas são meras sugestões.

 

1) Ler textos também em língua estrangeira, isto é, em sua língua original. Não importa que, a princípio, você não saiba: faça o esforço com uma gramática e um bom dicionário, no esquema autodidata. Para isso, use como um catalisador o seu apreço por determinados textos e autores;

 

2) Cultive a memória. O que importa deve de algum modo caminhar com você, mesmo que tenha esquecido quem disse, ou a citação precisa (Voltaire achava que conhecimento era o que restava quando esquecemos todo o resto);

 

3) Carregue consigo sempre uma caderneta, não um notebook eletrônico: você precisa ter uma letra sua, a experiência de escrever, cultivar alguma paciência, é instrutivo;

 

4) Não queira entender tudo de imediato. Permita que os textos ou quaisquer outras obras vivam um pouco com você, que as suas experiências vão iluminando as coisas aos poucos. Até porque, mesmo que você queira, não vai conseguir entender certas coisas da primeira vez em que bater os olhos nelas: algumas obras foram concebidas com muito tempo de reflexão, em várias camadas, exigem certa experiência de vida e de leitura, algum tempo para assentar;

 

5) Não tenha pressa de ter todas as referências à mão ou de memória. Valorize o tempo em que você persegue uma informação, até por vias pouco ortodoxas. Isso enriquece e desenvolve seu modo de pensar, e dá novos recursos em novas situações;

 

6) Apenas ler não serve para nada. Schopenhauer dizia que o melhor meio de esquecer uma coisa é ler outra em seguida. Você precisa viver, correr riscos, viajar e conhecer pessoas e modos de vida diversos do seu. Passar tempo com as pessoas, ouvi-las, observar plantas e animais. Os textos que realmente importam são feitos de vida e apontam para ela, mesmo quando carreguem referências a outros textos;

 

7) Desconfie da crítica e da teoria. Por melhor que seja a crítica (e quando é boa é um ótimo guia), ela tem apenas parte da verdade. Quando é má, é feita com objetivos que variam de ignorância a má-vontade, ou objetivos pessoais e políticos. Desconfie das teorias porque toda teoria precisa generalizar em abstrato. E, quando faz isso, perdem-se detalhes sempre fundamentais, sobretudo, aqueles que não se encaixam no modelo proposto (e sempre há esses perniciosos detalhes);

 

8) Deixar-se permear de tudo, sem filtro, também não ajuda. Com as telecomunicações há muita informação textual, visual, tátil e auditiva perfeitamente inútil, quando não prejudicial como um verdadeiro entulho. Há questões éticas ainda não discutidas sobre o excesso de "informação" (muitas vezes mero recorte da "realidade" oferecido por quem não está em posição de compreender sua complexidade), e sobre a desproporção que recortes desses, premeditados, tomam artificialmente na consciência  pública através de sua insistente difusão e recepção irrefletida. Escolha de modo qualitativo. Dê meia hora de seu dia, se precisar, à TV e aos jornais, por exemplo. Até porque, com a prática de leituras mais complexas, você verá que não é preciso mais do que isso para saber tudo o que podem oferecer esses meios;

 

9) Vá aos museus, e conheça alguns catálogos. Há livros à vontade, e críticos de arte cultos, inteligentíssimos e muito experientes, mas ver as obras in loco é fundamental para aprender algumas coisas úteis sobre o estilo e a inteligência peculiar do artista. Também para tecer redes de significado e aproximações que apenas você faria, e que podem levar a descobertas. Observe pacientemente, registre suas impressões, compare a técnica. Pietro Maria Bardi, no caso de São Paulo, montou um museu, o Masp, cujas peças foram escolhidas com extremo requinte e sensibilidade para formar um breve mas completo painel da arte ocidental, ao menos. Quem quiser se educar apenas tendo o Masp a disposição, consegue. Museus europeus gigantescos como o Louvre são deslumbrantes, e magníficas obras do respeito e conhecimento da arte, mas o Masp é fruto de uma inteligência seletiva, crítica, de uma didática muitíssimo eficaz a se fazer num âmbito restrito (sugere-se complementar a coisa ao menos com a Pinacoteca; no Rio de Janeiro há o importantíssimo Museu Nacional de Belas-Artes, com as esculturas que D. Pedro II encarregou seus emissários de duplicar em gesso em museus da Europa, quando ainda era possível extrair cópias das esculturas antigas: lá há uma cópia, por exemplo, da Vitória de Samotrácia, entre outras);

 

10) Vá aos sebos. Livrarias, apenas em último caso, porque livros novos no Brasil são mais caros do que os importados, com a exceção dos ibéricos, e normalmente bons leitores não são as pessoas que podem gastar fortunas em livros. Livrarias também têm lidado ultimamente com um escopo muito limitado, apenas livros que todos conhecem, e que não saíram dos catálogos. Os sebos ensinam a procurar edições específicas, ensinam paciência (abrandando assim o que Cervantes sabiamente diz ter aprendido na adversidade), e surpreendem com inúmeros achados que de outra forma jamais cairiam em suas mãos;

 

11) Não aplique as suas expectativas a uma obra, qualquer que seja. É uma tendência natural, e, portanto, difícil de evitar inicialmente. Tente substituir sua expectativa por uma abertura para a compreensão de por que e como o autor fez o que fez. Assim aprendemos a ampliar nossa experiência, nosso modo de sentir e compreender, reduzimos os nossos preconceitos, diminuímos nosso provincianismo. Você enriquece suas referências e desdobra a obra de arte em conhecimento efetivo, e não fica no mero I was there;

 

12) Por último, o melhor: desfrute, tenha prazer com a obra. A que você está preparando ou aquela que você observa. As obrigações e a sociedade são mesquinhas com o prazer, porque tudo funciona como máquina nas suas diversas engrenagens já bem preestabelecidas. Mas a arte é o prazer, porque é a descoberta. Pode ser um choque, às vezes, como no filme de Truffaut, a partir de Fahrenheit 451, o livro de Bradbury: há uma cena em que Montag, o revoltado bombeiro (bombeiros queimam livros nessa ficção de um distante futuro de pessoas sem imaginação, com televisores cobrindo uma parede inteira) lê em voz alta, e de surpresa, contra a lei que proíbe livros, um trecho de romance na sala de sua casa, para um grupo de amigos. Uma das personagens, após ouvi-lo contrariada, começa a chorar e finalmente diz: "Eu já não me lembrava de que havia sentido isso".

 

Pode acontecer.

 

 

 

março, 2009
 
 
 
 
Dirceu Villa. Poeta, tradutor, ensaísta e professor de literatura. Publicou MCMXCVIII (São Paulo: Selo Badaró, 1998); Descort (São Paulo: Hedra, 2003) e Icterofagia (São Paulo: Hedra, 2008).
 
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