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José Arrabal

 

            Qual será a poesia possível para o século XXI, época flagrantemente sinalizada pelo desenvolvimento tecnológico, por profundas diferenças sociais e pelo pesadelo da violência cotidiana? Que metáforas e sentimentos por palavras, em poemas e versos, podemos imaginar para o decorrer dos próximos cem anos? Há mesmo algum lugar para a poesia num tempo tão controverso? E de que poesia carece o homem, neste início de século? Longe de quaisquer pretensões proféticas, o que se pode esperar é que muito provavelmente a poesia irá de novo surpreender a história da literatura. Jamais sua herança para o futuro foi tão vasta e influente. Instigado por essa preocupação é que o jovem poeta francês Arthur Rimbaud escreve ao futuro: Il faut être absolutement moderne. Será com a poesia que os futuristas, dadaístas, construtivistas, suprematistas, vorticistas, formalistas, cubistas e surrealistas irão exigir uma nova arquitetura mental, um ato renovador de energia e vontade para as artes. Modernidade guiada, seja pela regência do italiano Marinetti, ao pedir a presença da velocidade e da energia mecânica na poesia. Seja pela voz forte do poeta russo Vladimir Maiakovski, ao formalizar que não há revolução na poesia, assim como nas ruas, sem forma artística revolucionária. Século XX em que se pretende, como determina e realiza o anglo-americano Ezra Pound — que o poeta, "antena da raça", seja um gerador de cultura ao se revoltar contra a cultura, um estudioso universal, um artista versado em Homero e Catulo, em Dante e nos trovadores provençais, um conhecedor da importância do ideograma chinês e da centralidade da forma curta da poesia japonesa, o haicai. Enfim, um poeta senhor da tradição, que ao se expressar e construir a transgressão, destrua o museu morto do passado à procura da poesia do futuro.         

         É vasta a presença do Novecentos como legado para o século XXI. Vasta e renovadora, sempre nos mais importantes ou nos mínimos instantes dos sentimentos humanos. Quem por acaso, nesses últimos cem anos, ousou passar a vida sem ao menos compor ou desejar compor um só verso de amor para a pessoa amada? Assim se inscrevem, como expressões de plena grandeza na vasta biblioteca poética do século XX, múltiplos feitios, praticamente todos os temas, desde a leveza da poesia bucólica à consistência do poema social; desde a multiplicidade do verso metafísico à visibilidade da poesia de exaltação heróica; a exatidão do meta-poema à rapidez do poema mítico. Como, igualmente, se inscrevem investigações poéticas de diversos sentimentos étnicos que aproximam visões de mundo e mesclam o Ocidente com o Oriente na poesia. E, não menos, se inscrevem meticulosas investigações linguísticas. No âmbito das possibilidades das formas poéticas, tudo se fez e tudo se refez e tudo se transforma, nos últimos cem anos. Certos poetas chegaram a multiplicar suas particularidades estilísticas, outros escreveram em vários idiomas. E de tal modo ocorreu essa pluralidade que, num balanço final, muito provavelmente o maior dos poetas do Novecentos talvez seja aquele que, na obscuridade de um quase ineditismo em vida, foi poeta por si mesmo e por vários outros poetas que tomou como heterônimos: Fernando Pessoa. Por sinal, vale lembrar que a lista do Nobel de Literatura inicia-se em 1901 com um poeta, o francês Sully Prudhomme.

         No século XX, não menos vasta é a influência da poesia nos outros gêneros literários. A começar pela própria prosa de ficção no Novecentos, que, sem dúvida, seria expressivamente menos significativa, caso não importasse para suas páginas, passagens, tramas e enredos, situações verbais evidentemente poéticas. Os arranjos sonoros, as inquietações léxicas, as reconstruções lingüísticas dos contos e romances contemporâneos são devedores de modelos e técnicas do verso. Não fosse assim, jamais teríamos na bibliografia do século obras tais como Finnegans wake, de James Joyce, ou Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. O mesmo se pode dizer a respeito da dívida da dramaturgia para com a poesia. Não fosse um expressivo poeta da língua alemã, Bertold Brecht nunca teria sido um grande dramaturgo. Influências que chegaram ao cinema, como se percebe nos diálogos e nas tramas de Bergman, Fellini, Pasolini ou Glauber Rocha. Mas que vitalizaram a música popular do século, como se vê de imediato do pleno poeta Chico Buarque de Holanda, nas letras dos Beatles, de Jim Morrison. Todo um legítimo conjunto de obras que exige muito dos poetas deste século XXI que agora se inicia, intrigados por saber que poética precisa o futuro.

         Enigma que, segundo Jorge Luís Borges, talvez encontre resposta numa retomada da poesia épica, às vezes um tanto ausente nos últimos cem anos, se comparada à presença da lírica. Uma poesia menos subjetiva, que reconstrua os fatos e nos conte histórias da odisséia do homem na estrada do século XXI.

 

 

Anderson Fonseca

 

         Quatro considerações sobre a poesia contemporânea brasileira: 1) a poesia penitente — poetas doentes buscando enfermeiros. A dita cura pela fala! Buscando platéia. Deficientes empenhando-se em serem acontecimentos que se tornam acidentes. Mares esgotados?! Na verdade, piscinas de quintal é o que se converteu seus poemas, como Zaratustra disse: todos turvam suas águas para parecerem profundos. Também estou farto dos poetas penitentes, espero que se afoguem com narciso! Mal saem seus poemas no papel e já estarão mortos no tempo. Lamente comigo, Zaratustra, a poesia está patológica, e seu pathos chama-se ego.

         2) a poesia sofista — Os gemidos poéticos deste século não passam de sofismas (Lautréamont). Belos poemas tenho lido, belos como pães sem fermento, ocos, porém cheios de esperança, insignificantes, crendo, no entanto, dizerem algo, afirmam que a semântica os salva. Como é omnibondosa a semântica, tudo que estiver vazio ela vem e enche de sentido. Belos poemas tenho lido de bons escritores, mas somente belos poemas de bons escritores, nada contêm, i.e., bons poemas de nada, mas fáceis de ler. Poucos mestres, raros inventores.

         É o excesso de dizer que acaba por nada dizer? INTERNETE + IMPRENSA = VELOCIDADE DA INFORMAÇÃO = milhares de "vozes poéticas" derramando palavras — a internete é o esgoto do poeta, ou mictório a La Duchamp? — no anseio de que haja olhos que os assistam a cada segundo (LEIA-ME OU TE DEVORO!), porém nenhuma qualidade no total das equações. Como escreveu Nietzsche: Ninguém sabe agora o que é um bom livro, é necessário mostrá-lo: não percebem a composição. A imprensa arruína sempre mais o sentimento. Lautréamont: Somos tão pouco presunçosos que gostaríamos de ser conhecidos pela Terra, mesmo pelas gentes que virão quando não estivermos aqui. Somos tão poucos vaidosos que a estima de cinco pessoas, digamos seis, nos diverte, nos honra. Pouca coisa nos consola. Muita coisa nos aflige. A modéstia é tão natural no coração do homem que um operário tem o cuidado de não se vangloriar, quer ter seus admiradores. Os filósofos o querem. E principalmente os poetas!

         3) a poesia Minou Drouet — Na época de Pascal, considerava-se a infância como tempo perdido; o problema era sair dela o mais depressa possível. Desde os tempos românticos deseja-se permanecer criança o mais longamente possível. Todo o ato adulto imputável à infância (mesmo retarda) participa de sua intemporalidade, é considerado prestigioso porque adiantado (Roland Barthes). Isto foi o que aconteceu à poesia: a essência poética desceu até a essência infantil. É o caso Minou Drouet: poetas que permanecem imaturos produzindo poemas a leitores (outros poetas) também imaturos, sendo os primeiros chamados gênios (TODOS QUEREM SER RIMBAUD!), visto que seus poemas são metáforas bem elaboradas, cujo alicerce é um dicionário de palavras mal-compreendidas, no fundo da carne, não tendo osso nem sangue. Poetas que confundem espontaneidade com inspiração, i.e. poesia irracional com poesia surreal e etc. Será que até poetas jogam dados? E vejam: estes poetas reúnem-se em grupos e se nomeiam nas mais variadas classificações (ou será revistas, grupos de discussão, rodas de chopp?) Desejam viver ou reviver tempos mortos? E, no entanto, todo o nome dado a uma ideologia compartilhada é a nomeação de um sofisma — aqui pode-se dizer ser possível criar algo do nada. Crianças brincando de cirandinha vamos todos cirandar.

         A poesia Minou Drouet é um caso epidêmico, alastra-se como vírus e adoece a muitos, no dizer de Barthes. Minou Drouet assume todo o mito poético e todo o mito infantil de nossa época. A causa da doença? Inteligência elevada e emoção subdesenvolvida. Serve para estes poetas a frase de Cocteau: Todas as crianças de nove anos são gênios salvo Minou Drouet.

         4) a poesia pessoal — A poesia pessoal terminou seu tempo de malabarismos relativos e contorções contingentes. Retomemos o fio indestrutível da poesia impessoal bruscamente interrompido desde o nascimento do filósofo fracassado de Ferney, desde o aborto do grande Voltaire (Lautréamont). Poeta egoísta, faz do ego seu poema, quantas palavras vazias, aprende com os poetas que o ego é um sofisma, aprenda a ouvir o som do mundo, aprenda a ser o outro, esqueça quantos eus há na sua alma, entenda o propósito do Verbo: deixar-de-ser para o outro ser. Ah! Já não basta o Romantismo? Eis o que anuncio: a poesia impessoal, sem nome, sem rosto, apenas a palavra dentro da palavra incapaz de falar palavra, centro e circunferência no tempo! Aqui está o sentimento que Eliot descreveu como "o que realiza o gênio da linguagem", pois o gênio não está no que sabe usar a linguagem, mas naquele que se torna o mais alto grau de linguagem.

         E... o bom poeta, sábio e feliz, considerará o que escrevi, o mau poeta, tolo e infeliz, me ignorará, entretanto, inteligente é aquele que duvidar do que eu disse. Sábio é Percy Shelley ao dizer que "a poesia é o registro dos melhores e dos mais felizes momentos das melhores e mais felizes mentes". Mas como escreveu Lautréamont: "Os poetas contemporâneos abusaram de sua inteligência". Por fim, vale lembrar o que disse Nietzsche: "De todo o escrito só me agrada aquilo que uma pessoa escreveu com o seu sangue. Escreve com sangue e aprenderás que o sangue é espírito".

 

 

Tânia Lima

 

            A nova poesia é uma poesia nova? A poesia brasileira está de cara semi-nova. E vem responder a toda uma onda de massificação da linguagem e de um público cada vez mais reduzido do poema expresso no papel. Reinventada em cima da fragmentação, da fratura elíptica, da obscuridade de sentido, a poesia “nova” dialoga e muito com a linguagem barroca. O que podemos ler na poesia atual, contudo, é leveza. Sem tanto entraves ou sobrancelha curvada, vale despir o olhar para perceber de perto a poesia tida  por muitos como difícil, complicada, conceitual, hermética, neo-concreta. Adjetivos à parte, uma poesia ainda para poucos: "Feita de palavra e não de ideias", como queria Mallarmé. Ou talvez uma espécie de make new defendida pelo ABC of reading, de Ezra Pound.

         Se observarmos bem o Nordeste ainda engatinha, quando o assunto é poesia contemporânea. Os poetas contemporâneos afinam seus discursos para falar do homem quase sem alma, preso ao arranha-céu descrito em detalhes, em meio a uma solidão espaçosa e vazia, vizinha do in-comunicável.

         A in-comunicabilidade do verso no poema não é uma coisa dos novos poetas. A poesia de Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé já aponta para a despersonalização e transcendência do vazio desde o começo da modernidade. O eu-lírico se separa do eu-empírico. Em nossa modernidade, o poema contemporâneo, em sua regra elíptica, troca as estrofes por parágrafos. Ou quase isso. A Universidade Federal de Santa Catarina e UFRJ têm dado relevância aos estudos dos poemas atuais. Muitas vezes, abortados em grande parte pela tradição da crítica acadêmica.

         Se a contemporaneidade esvaziou a genialidade em poesia, no campo da teoria literária a crítica tem se fortalecido. Entre hermetismo e erudição, a safra de poesia está em alta. O que está em questão é o tipo de leitor virtual.

 

 

João Rasteiro

 

            Bernstein realça a questão do poder da linguagem, preconizando que a poesia terá que ir ao encontro do que a ideologia coloca fora da linguagem (essencialmente o que está reprovado pela sociedade) tentando encontrar formas novas, como discurso epistemológico, que nos liberta ou lança para um ar imaginário. Para isso, a poesia terá que abrir fendas, numa espécie de guerrilha (até porque não haverá poesia fora da ideologia). O importante é escrever poesia, numa lógica aberta do poema, que incluirá toda a multiplicidade de valores e linguagem. A poesia terá que mostrar o real, "a poesia como uma guerrilha" contra as imagens do mundo. A poesia como inovação e diversidade, como aceitação de diferenças e aprendendo técnicas e instrumentos alternativos, para entender e mostrar a realidade, como forma de alterar os mapas do senso comum, esperando que esse texto poético seja reflexo de uma relação intrínseca da poesia com a comunidade e proceda de forma a que as transformações se materializem.

         É de realçar, um fato importantíssimo, e que é o fato de o poeta independentemente do "autor" também ser um ser humano, logo, tem o direito, ou diríamos até, o dever, a exprimir os seus amores, ódios, simpatias, antipatias, crenças, sonhos, imaginação, intuição e inclusive o seu pensamento. Na atualidade, há um sabor negativo, um certo desprestígio pela poesia dita "política" ou social, mas o que está em causa é a capacidade de tratar determinado tema, pode-se fazer boa poesia com temas políticos e/ou sociais e má poesia com temas considerados "poéticos" ou "líricos". A poesia deverá ter ideologia, o que não pressupõe necessariamente ser ideológica. Hoje em dia ela não se pode desmarcar mais da realidade, terá que ser uma "voz pública", ainda que num processo de "ventricolismo", em que a poesia terá que entrar "como interação, conversação e provocação" (mas sempre de forma recíproca).  A ideia de que "todos nós podemos falar uns com os outros com a voz universal da poesia" é uma utopia. A poesia terá que estilhaçar as formas de representação da sociedade, colocando-se para além da própria marginalização, num processo permanente de ruptura com as ideologias inclusivamente poéticas. A poesia deverá começar pela ruptura das próprias convenções da escrita, de forma a entrar na política da linguagem.

 

 

Márcio Almeida

 

            Não é preciso ser gênio ou doutor honoris causa de qualquer academia para se ter a certeza de que essa assertiva não acontece hoje.

 

 

 Ronald Augusto

 

         Há aí um problema de distorção. A leitura, ou a crítica, condizente com a poesia contemporânea, deve ser, tal como ela, uma expressão em construção, ainda não canônica e não canonizada. Ao almejarmos e superestimarmos uma crítica totalizadora que "de fato" venha a dizer, quem sabe um dia — pois estranhamente ela não se encontra aqui entre nós —, aquilo que queremos e merecemos (ou necessitamos) ouvir acerca da produção poética atual, acabamos também reservando um espaço excessivamente pernóstico, cheio de dedos, para os deslocamentos desta mesma poesia perante a nossa recepção.

         A produção poética de agora-agora passa longe de qualquer gesto iconoclasta, não põe em cheque os próprios limites, não tem sequer a ousadia da frivolidade que, diga-se de passagem, sobra à anti-arte. Neste caso, a arte-risco do barroco (em sentido forte) deve ser mais embaixo ou em cima, a escolher) e não pode ficar à disposição da pródiga e xamânica perícia metaforizante de diluidores dedirróseos. Então, por que reivindicar para a produção contemporânea um discurso crítico sobrenatural, que fale a língua do "meu tio iauaretê", na presunção de glosá-la eruditamente e de uma vez por todas?

         Desde a realidade insossa das manifestações poéticas atuais talvez se possa arrancar uma resposta cínica para o caso: a expectativa ansiosa pelo advento dessa crítica-para-acabar-com-todas-as-críticas, que faça justiça à pretendida originalidade da poesia atual, não passa de uma tentativa de niquelar a irritante normalidade e eficiência dessa mesma poesia por meio da chantagem Cult de um metadiscurso que assomaria para "pôr as coisas em ordem", problematizando uma farsa com outra.

         Portanto, qualquer discussão séria acerca da poesia contemporânea talvez devesse avançar sobre a questão do espaço de atuação que lhe é reservado. Embora os veículos tradicionais (jornais, revistas, TV, rádio etc) persistam como reféns da baixeza insistindo numa recusa frontal a tudo que se aproxime de um lance de pensamento, a internet por outro lado, começa a dar sinais de vida inteligente e às vezes chega mesmo a nos enganar.

         A internet parece encarnar a imagem desse nosso presente sem margens presunçosamente aparentado a um "pós-tudo". E a poesia contemporânea se sente bastante à vontade no interior da fragmentação especular que marca esse recinto virtual.

         Agora, iniciarei por destacar alguns aspectos do estado de espírito dessa poesia. Primeiro aspecto: a) os poetas de agora-agora, grosso modo, dominam desde tenra idade os repertórios da linguagem poética; eles demonstram conhecer os pontos cruciais da tradição literária do Ocidente; estar familiarizados com a voz dos mestres do modernismo; prestar atenção aos recursos da versificação que seja livre, quer seja metrificada; e, por fim, simpatizar, naturalmente, com proposições das vanguardas de quatro décadas atrás. Outro aspecto: a poesia atual se acomoda muito bem dentro da moldura do ecletismo. Haroldo de Campos chegou a cunhar a expressão "ecletismo retrô" para provocar ironicamente essa geração que lhe sucede.  A tolerância poeticamente correta permite desde o soneto camoniano até o poema concreto strictu sensu. Um terceiro aspecto também interessante da poesia atual é o seguinte: nunca, como hoje, vimos os poetas tão entranhados nas regras de eficiência e competência exigidas pelo sistema literário que, como costumo dizer, se configura em representação especular, embora com suas particularidades, dos imperativos sócio-econômicos abrigados sob o arco ideológico do livre mercado. E que outra razão haveria para a grande presença de poetas dentro dos muros da academia? O meio social nos cobra filiações consagradas e consagradoras. Alexei Bueno pergunta pelos poetas médicos, pelos poetas engenheiros, pelos poetas sem profissão; enfim, pelos poetas "à margem da margem": onde estão eles?   Isso parece coisa de outro tempo. Uma parcela significativa dos poetas novos, isto é, nascidos no século passado, se formam ou se formarão no interior dos muros acadêmicos. Mestrando e doutorando em Letras. Isso pode ser um problema. No entanto, não faço aqui a defesa do poeta romântico ou inspirado, o gênio monstruoso cuja originalidade sem começo nem fim ofusca a nossa compreensão.

 

 

©hélio oiticica vestindo um parangolé

 

         Por outro lado, a poesia demanda anos de estudo vagabundo, de leitura de prazer e uma constante prática corpo a corpo com a linguagem. Um poeta está sempre in progress. É neste sentido que uma formação burocratizante numa atividade equívoca como a poesia, termina sendo, ao fim e ao cabo, deformante. A (de)formação acadêmica talvez seja útil apenas para ratificar a existência ou a importância do nosso "censor interno" (W.H. Auden dixit) numa situação que nos seja exigido um ato de julgamento. Mas qual seria a qualidade de um juízo condicionado por cânones hegemônicos, por pontos de vista superciliosos quanto à informação nova, por discursos presunçosamente totalizadores? Esses questionamentos precisam ser feitos para que a poesia e a literatura-arte (e não o "literário" do mercado livreiro-editorial) não restem tão-só a serviço do "controle institucional da interpretação" (Frank Kermode dixit), representado pela universidade, pela crítica especializada, pelos grupelhos de poetas bem relacionados, pelos ocupantes de órgãos públicos e/ou privados ligados à cultura etc.

         O quarto aspecto que identifico na atualidade da produção poética, diz respeito ao espaço para o exercício da experimentação: a bem da verdade, um espaço reconhecido um pouco a contragosto. Mas essa poesia experimental ou vanguardista, se assim pudéssemos nomeá-la, se mostra ainda bastante epigonal. Ou seja, opera num registro virtuosístico, tendo como base as rupturas que a poesia de vanguarda das décadas de 1950/60 levou quase ao limite da aporia.

         Ainda é interessante experimentar uma suspeita reflexiva com relação a uma ideia que, aqui e acolá, insiste em aparecer em alguns textos críticos. Trata-se da ideia que estabelece similitudes entre vanguarda e progresso. Um vício diacrônico, além de messiânico, serve de nutrimento a uma noção de vanguarda que busca conquistar territórios, acúmulo de feitos num ensaio de totalizações.” Movimento que visa a uma "etapa final" ou um éden. Vanguarda que se apresenta como "ponto de otimização da história". Devir utópico calcado sobre a linearidade progressiva, causal. Um dogma: a vanguarda que corre o risco de infectar-se com o vírus do retrocesso. Talvez no âmbito da estratégia dos exercícios de guerra, ou mesmo na arena da "politicagem literária", tudo isso faça algum sentido, pois aperfeiçoamento pressupõe a aceitação de exclusões e obsolescências cujo questionamento — a bem de "um mundo transformado", digamos, para melhor, é deixado de lado "por tempo indeterminado".

         Prefiro imaginar um quadro de tensões de perspectivas, propostas de linguagem em confronto. Formas e poesias em "conjunções e disjunções sincrônicas". A poesia se desdobra numa rede de conotações e o leitor-poeta se comporta como o administrador das intraduzibilidades e das eventuais reabilitações inerentes à tarefa da leitura criativa e desobediente.

         Em resposta à poesia "em greve", isto é, negativa, daquelas vanguardas, a poesia de invenção desse século pós-utópico confina com um cinismo fashion e não tem compromisso com uma poética progressiva. A vanguarda (e principalmente como movimento coletivo) deixa de ser uma bandeira. O experimentalismo, como conceito, perde força.

         Nada de computadores e distorções de letras, esses engodos típicos de uma confiança ou de um entusiasmo, ao fim e ao cabo naïf nos poderes podres de maduros que marcam a ultramodernidade narcísica. Mas, por fim, todos os dilemas, ou os vícios e virtudes da poesia moderna e contemporânea, poderiam ser resumidos ou ter sua origem num ponto apenas, que é o que concerne ao verso livre. Que, diga-se de passagem, a maioria pratica ainda imperitamente, sem fazer vacilar suas contradições e possibilidades constitutivas. Para Franchetti, uma parcela da poesia de hoje representa um "atestado de recusa do verso livre, ou de desconfiança nele como eficácia poética".

 

 

Márcio Almeida

 

         A partir do verso livre, a poesia não se tornou mais um problema que propriamente uma arte de prazer/lazer, reflexão? Mesmo entre os "entendidos", a poesia não se tornou algo sensível vigiado pela explicação teórica? A partir do modernismo, não se abriu um fosso que confinou a invenção a uma elite-leitora e questionadora? Alguém já se preocupou em perguntar ao povo por que ele não gosta de poesia dita "moderna"? Por que, para os poetas modernos e pós, a recepção popular deixou de ser considerada? Que interesse ou importância tem a poesia para o povão frequentador de uma 25 de Março? Haveria um certo comodismo presunçoso do poeta contemporâneo por não considerar o público como leitor? Por que pouco ou quase nada se estuda, academicamente, sobre a recepção (além de Hans Jauss) poética fora do leitorado composto por poetas, acadêmicos e críticos. O hermetismo é sinal de inteligência, de criatividade, de estranhamento conveniente para a não comunicabilidade do poema atual? Por que os poetas populares são objeto de análises folclóricas, incluídas à cultura popular, mas não como disciplina regulamentar de cursos de Letras e similares? Estudar poesia popular não dá status, é cafona, brega, "pobre", prova de decadência? Por que muito raramente se lê produto poético dialogal entre o popular, o erudito ou experimental? Ainda que perdure e avance a produção virtual, fazendo do computador o totem pós-moderno por excelência, ainda que a crítica e a academia privilegiem o novidadesco e a pulverização do mesmo com requintes de genialidade de boteco —, por que o povo ainda prefere o cordel, o livro vendido à base do mano-a-mano, o livro de estrepitosa desqualificação, e, em contrapartida ao fato de os poetas ditos geniais e de referência para a cultura terem lhe virado as costas e a produção inalcançável — ter também adotado o mesmo menosprezo tático que vem dessa produção? Por que nunca — a menos que na condição de "comunicações paralelas" — seminários, simpósios, fóruns, festivais, oficinas — têm no programa um foco na poética popular? Para o povo, a poesia experimental é poesia ou um ET? Não haveria beleza, inventiva, criatividade, ciência, na produção poética popular?

 

 

Ronald Augusto

 

         A poesia, por representar uma espécie de cisão analógica no interior mesmo do discurso prosaico, mais propenso a uma lógica-analítica, acaba se constituindo numa linguagem de índole equívoca em relação a esse meio lingüístico que lhe serve de pano de fundo. A poesia é vista como um corpo estranho, um desregramento dentro da regra, signo sob suspeita.

         A instabilidade da linguagem da poesia se transforma, pela diferença assinalável, numa crítica a esta fala cotidiana agora quase fática, que é, salvo erro, empobrecedora. A (im)pertinência  comunicativa da poesia volta a fazer sentido na mesma medida em que a pós-modernidade ou um suposto "pós-tudo" instauram a nulidade de qualquer reação moral e a defesa, na esfera estética, do novo pelo novo sem conexão com o passado. A poesia persiste naquilo que sempre foi a marca de sua intrínseca originalidade transgressora, a saber, linguagem que beira o silêncio, silêncio na iminência de converter-se em linguagem desprovida de falantes.

         O poeta, ao carregar a linguagem de significado, não objetiva outra coisa senão subverter a visão, não raro deturpada, da realidade que nos condiciona. Sua tarefa já incorpora por si só uma pulsão contestadora.  Hoje, a condição da poesia obriga o poeta a assumir uma postura de maior autonomia crítica que, por sua vez, envolve também maior coragem intelectual e um ouvido sempre atento aos transes da diferença e da fragmentação do verdadeiro.

         Consciência de linguagem supõe rigor e auto-ironia. Desta maneira, a possível utilidade da poesia emerge cada vez mais dessa inutilidade a que ela foi relegada pelo mundo da mercadoria. A multiplicação de meios e de novas tecnologias, e a inflação verbal subjacente a estas realidades, sugerem um contrapeso. E embora seu alcance seja bastante reduzido, a poesia, a par do seu silêncio, talvez ainda tenha algo a dizer sobre este estado de coisas.

         O que se quer das celebridades, do Caetano Veloso, do rapper ou da modelo da ocasião e dos políticos do "mundo cão", não é uma contribuição significativa, sequer uma palavra reveladora que explique ou (orfandade de mentores messiânicos?) mitigue as nossas contradições e pervesidades sócio-culturais, mas sim, uma tirada, um pronunciamento rápido, uma frase entre espirituosa e revoltada que se preste como o bordão das discussões da semana.

         O poeta, quando se dispõe a apresentar sua identidade como "a voz" por detrás da linguagem, mesmo assim costuma apreciar mais o solilóquio do que qualquer outra coisa. O que está em jogo, em primeiro lugar, é o sucesso estético e não comunicativo do poema. A poesia é, por definição, linguagem em crise (em outras palavras, criativa), ser de linguagem, coisa-pensamento com vocação metalingüística, lugar em que os dilemas fundamentais de uma época são problematizados a partir dos seus estratos sígnicos.

         A realidade, então, precisa ser lida, decodificada. O poeta consagra e dessacraliza, ele se antecipa ao julgamento dos poderes divinos e terrenos, e pretende ler o pensamento de Deus antes de destruí-lo. O poder, a cultura média e as ideias feitas do senso comum reivindicam para a poesia tanto o direito à periculosidade, quanto a condição de "droga estética que paralisa a vontade de resistir".

         Um mundo fundado na palavra grafada — quer pelo calígrafo, quer pelos tipos gutenberguianos —, que admite e infla livros inspirados divinamente, isto é, livros sagrados, é que, ao fim do cabo, fez com que superestimássemos a poesia tanto em termos de corrupção e revolta, quanto a partir de uma recepção onde ela surge como drogadição anestésica de fundo alienante.

         Finalmente, desde um ponto de vista semiótico, de um lado temos a parataxe da poesia: uma precipitação para a analogia, a arte, a forma, a síntese etc. De outro, a hipotaxe, seja à direita ou à esquerda do leque ideológico: um pendor para os aspectos lógicos, a ciência, o "conteúdo", a análise. A inutilidade da poesia continuará sendo tolerada, mas sempre como linguagem sob suspeição.

 

 

Márcio-André

 

         Num tempo e lugar onde a poesia não passa do mais "fajuto" dos bens culturais, a qual, muito aquém de tornar alguém rico ou famoso, pouco esgota uma edição de quinhentos exemplares — prova quase empírica de que nem mesmo os poetas, uma população em larga expansão, leem os poetas —, essa postura, no meu entender, é o que mais afasta os leitores, tornando o mercado editorial de poesia um salve-se quem puder, onde cada autor luta para morder um pedaço de carne no osso, variando sutilmente o talento e o posicionamento, mas esbanjando vaidade. Apesar de chegarmos à proeza acadêmica de propormos a crítica ao presente, os poetas, mais do que nunca, estão voltados para o passado, recusando todo aquele que lhe seja contemporâneo. Acaba-se difundindo uma escrita que, quando muito, interessa a uma pequeníssima parcela da população, tornando o universo da poesia cada vez mais um gueto.

         Como dialogar se o interesse se mantém na expressão das vivências pessoais, para aquém de experiências concretas, estas que envolvem um exercício de escuta e abertura ao outro? Curioso, porém, é como essa continuidade da supervalorização romântica do autor acabou por viabilizar hoje, contrariamente aos ideais do próprio romantismo, uma realidade por vezes brutal no que tange a instrumentalização do indivíduo. Mesmo atos normalmente despreocupados, como a eventual citação de um colega numa conferência ou numa dimensão política que implica na escolha detalhada daquele que será citado — escolha esta que depende de uma ação de canonização do citado para que este possa estar à "altura" de quem o cita —, ainda que seja para atacá-lo.

         Esta canonização tem posto em jogo princípios outros que pouco se referem à poesia — influência, endogamia, adulação, tensão de forças e poderes. Também nesse ambiente, o indivíduo é selecionado segundo a relevância de sua citação. Nesta técnica da canonização, o outro perde sua dignidade de indivíduo para se tornar um objeto, um instrumento de reafirmação daquele que o cita, num movimento onde a própria citação converte-se em espetáculo de sua subjetividade — onde a poesia, por sua vez, vê sua dignidade poética alterada em um discurso vazio.

         Enquanto valor de compra, a individualidade, a dignidade, a própria condição do poeta será medida a partir desta lógica da canonização, onde o que se tem em vista é a cotação na bolsa de influências e citações. Partilhando dessa mesma ideologia de transmutação do indivíduo em recurso (canonização), perpetuam-se noções que tanto resistem à construção de parâmetros amplificadores no que tange o diálogo entre leitor e obra, popularizando, pior, massificando eternamente aquela pequena parcela de autores resguardados pelo cânone ocidental. Os poucos "gênios" que a história elegeu para excluir todo aquele que não se enquadrava nesta ou naquela escolha política, que em outra dimensão determina esta ou aquela compreensão da realidade, não são nada mais que um subproduto dessa tentativa antiga e eficaz de fundamentar a soberania dos valores da tradição europeia.

 

 

Rogério Barbosa da Silva

 

         Situar o que seja "nova poesia brasileira" e em que se constituem suas formas e forças coloca-nos, imediatamente, num paradoxo: seus constituintes, formas e forças, só podem apontar o sentido de uma pluralidade de poéticas, o que nos impede de pensar a poesia brasileira no singular. O que se vê, no imediato de uma apreciação do contemporâneo, são pulverizações das tendências e das tradições literário-artísticas, muito embora vários poetas adotem o costume em voga no Brasil desde os anos 50 de organizar seu próprio paideuma. Essa variedade de poéticas pode ser acrescida do fato de que há, nos dias atuais, uma maior facilidade de divulgar poemas, a exemplo dos meios eletrônicos, ou mesmo de editar graficamente livros e revistas, mesmo à margem das grandes editoras e do circuito de uma literatura consagrada por meio da crítica acadêmica ou midiática.

         Nessas circunstâncias que podemos avaliar a proliferação das revistas literárias e seu papel de divulgar, selecionar, orientar ou organizar tendências vigentes da poesia nos espaços geográficos variados do país, seja no plano da cidade, de um estado ou do próprio país. Neste sentido, as revistas literárias passam a ocupar um papel que as faculdades de Letras dificilmente dão conta, que é o de mapear o contemporâneo em suas intricadas redes, submersas nos grandes painéis historiográficos ou teóricos que constituem a bússola para inúmeros ensaístas e professores. Se isso, no entanto, é importante para a compreensão da tendência geral dos fenômenos artístico-culturais, torna-se insuficiente como guia em relação aos micro-acontecimentos da cena literária contemporânea.

 

 

Wagner Moreira

 

            Uma poesia que fale a experiência de uma voz ternária. Voz que si dirige para si mesma, para o outro e para uma platéia como encenação. Uma poesia que se deixa transpassar por tudo que é sensorial e reafirma a sua condição terrena, inclusive em seu estado de plenitude. Uma poesia que vai aos deuses de nave, bailando sobre as ideias, os conceitos, as crenças, as técnicas e atuações artísticas.

         A poesia vai às compras em uma feira qualquer, em um shopping qualquer. Traz de lá o que se colhe na língua mesma, a fala de todos os lugares. Traz os ritmos banhados de tradições seculares em velhas e novas vestimentas. Traz as formas das grande concentrações humanas, coloridas, pastéis, berrantes, sobretons, tons, linhas, traços, pontos, embalados pelo movimento, pelo burburinho do ir e vir da caminhada para nada, sem ofício, apesar do tempo do trabalho, sem objetivo, apesar dos embrulhos carregados, sem intenção, apesar o próprio caminhar. A poesia vai à reza em qualquer igreja, templo, sinagoga, mesquita, mesa, terreiro, praça, qualquer lugar. A poesia fala o de cima e o de baixo, deuses e seres etéreos. Ritmo que se dá ritual na boca. Traz os entes de todas as vidas, retratos, filmes, memórias, rememórias, lembranças,familiaridades à mostra dia após dia, semana após semana, ano após ano, década, século, milênio após milênio até se tornar um cristal passado de mão em mão. A poesia fala saberes sem explicações, sem justificativas. Fala os fatos e os atos. A poesia farejada se deixa tocar pelos corpo animais, vestidos ou não, que rolam e ralam os vegetais e minerais, as partículas menores em movimento0 pela diferença de pressão. A poesia faz tudo o que o corpo faz corpo.

         A poesia objeto moldável e manipulável, manipulante, objeto que salta para o lado e lá fica, e lá desliza. A poesia que se faz não sobre o sim e o não. Diálogo a marcar impossibilidades. A poesia começa a perder-se da beleza e não mais reconhece a verdade. A poesia cai em ruínas, destroça-se em restos, raspa e lixo e não se deixa erguer do chão. A poesia perde sua singularidade, sua individualidade, sua unicidade e se encontra no pó molhado original, lama primordial, sopro vitalício vindo da boca humana a recitar sua história, sua rememoração do que sempre fora e não apareceu, não se esclareceu, não se perdeu, nas sombras dos ritmos tantos ritmos. A poesia em seu fluxo criativo, multiplicidades a varar os ouvidos, os olhos, as bocas, as narinas, as peles dos corpo desarborizados, heterogênea atualização em um fazer-se para o aberto das conexões.

 

                

Marcelo Dolabela

 

            Há pessoas que ainda teimam em ser poetas, em um mundo onde qualquer possibilidade de haurir a metafísica das "palavras" dispostas em sua "melhor ordem" é um paradoxo e uma inutilidade. Poesia não vende, logo é inútil seu exercício na atualidade. Se muito, o culto necrofílico pelos cânones já estabelecidos.  Nesse impasse, duas opções (erros?): buscar/fabricar cânones ou anticânones; ou radicalizar na experimentação (bater a cabeça contra o muro) o que, em síntese, é uma tentativa de instaurar novas posições para coisas que já estão fora de posição. O poeta deve habitar "mídias auxiliares", para se alimentar de outras linguagens e, ao mesmo tempo, mostrar que a poesia é o alimento que perpassa as estruturas mais inventivas das outras mídias — cinema de vanguarda à música pop. A suporte já é parte material da poesia. Cada texto pede (ou pode se estabelecer — em forma de "versão") um suporte justo. Do grito ao pixel. Do gesto ao protools. Do papel ao holograma.

         Quando alguém é chamado de "poeta”, geralmente está, eufemisticamente, sendo xingado. Mas até esse xingamento é um elogio à poesia, pois usa por base uma metáfora (louco = poeta), o que já é poesia. A poesia é a realidade máxima, do ponto de vista humano. Por causa disso nos preocupamos diariamente em encontrar meios práticos de virar o telescópio ao contrário pra olhar pelo outro lado. Todo poeta / todo poema é participante e participativo. O contra-discurso a essa máxima é uma tentativa de exigir que o poeta reconheça o seu lugar no jogo das políticas e seja apenas poeta.

         Ao invés de cânones, paideuma. Ao invés do estabelecido, o provisório. Ao invés do "para sempre", o "nunca mais". O compromisso do poeta é com a poesia, o que já é uma grande jornada. E essa jornada passa, obrigatoriamente, pela invenção, experimentação e pelo fazer-desfazer codificações ou coisificações. Poesia é escrever com borracha. [Nota da editora: Em razão da importância poético-teórica do jornal Dezfaces, na atualidade, o ensaista incluiu excertos de Rogério Barbosa da Silva, Wagner Moreira, Marcelo Dolabela e Ângela Vieira Campos, publicados originalmente em edições do  jornal/projeto de Belo Horizonte, MG].

 

 

Márcio-André

 

         A poesia tem, portanto, um papel muito mais profundo e crítico que o discurso do poeta, por melhor que este seja, e já se configura um antidiscurso que traiçoeiramente o coloca em condição também de "leitor". Esta dimensão de compreensão do que venha a ser poesia precisa ser retomada imediatamente, pois, enquanto interlocutor e interlocução deste colóquio profundo, o leitor, mais cedo ou mais tarde, cobrará sua parte, correndo risco, o poeta, de ser uma outra vez expulso da república, dessa vez em prol de uma poesia oriunda da terra e do magma vulcânico — e não de restos deixados pelo suposto fim da história. Contra a cultura letrada, tal debate caminhará para a destruição do conceito de gênio, e o poeta (por extensão, todo artista) irá recuperar o seu papel autêntico, perdido há algum tempo, o de propiciador do diálogo, radicando-se no exercício mundano de compor para o outro.

         Quanto mais o artista permaneça nos moldes preestabelecidos das demandas de mercado — pelo fácil caminho dos modismos estilísticos ou pelas superações supostamente dialéticas exigidas por este —, tendo em vista a ascensão na bolsa da aceitabilidade estética, mais se aprisiona no próprio ego, primando antes pelo uso do trabalho (e do outro) em proveito próprio do que pelo movimento da obra enquanto Obra.

         Quanto mais o poeta se engaje na contramão, quanto mais se aprofunde nessa tentativa de auscultar o mundo, fundamentando poéticas radicais e provocadoras, portanto, diferenças, mais ele se doa ao outro — justamente por doar o que a este jamais havia sido doado antes: uma outra possibilidade de mundo. Nada pode ser determinístico, nada pode servir como baliza para a consumação das possibilidades plenas da poesia.

         A ética é a correspondência à interpelação das possibilidades de mundo — interpelação sempre jogada ao desconhecido —, portanto, um caminho mundano que chama em resistência ao que há de falso e secundário no que tange a realização poética. A saber: tudo aquilo que submeta a Obra a outros desígnios que não os dela mesma. A poesia não é o lugar para fazer o que se gosta, mas o que se duvida. Por isso o poeta deve ser, antes de tudo, um leitor — para decidir-se poeta somente quando da certeza de suas dúvidas —, isto é: escrever não por expressão, mas pela radical necessidade de vasculhar o que ninguém se atreve a vasculhar por ele.

         Somente assim, lutando em pensamento e ação por uma ética da escrita, a poesia poderá ser, como já foi na antiguidade e em casos muito recentes, a arma mais incisiva e poderosa contra as incoerências da realidade. Ser ético, portanto, escapar ao próprio ego e engajar-se na quântica das palavras. Somente sua simplicidade e renúncia podem redimi-lo, muito além das ilusões criadas para suportar sua real insignificância social.

         Sempre fui partidário da teoria de que uma opinião divergente é sempre mais útil e por vezes mais sincera, motivada por certo incômodo mais radical, mais primitivo e por isso mais autêntico, sendo fundamental para a caminhada de todo escritor ou artista.

 

 

Márcio Almeida

 

         Já se escreveu muito que na quase totalidade de vezes em que se leem balanços da produção e das tendências da literatura brasileira, de modo especial, da poesia, é comum observar-se desde uma série de limitações e arroubos teóricos e informacionais a um reducionismo compulsivo pressionado pelo espaço controlado da mídia. Comum também nesses chek-ups lítero-poéticos e culturais a omissão de valores periféricos gravitando quase no anonimato, do mesmo modo que é cada vez mais incisiva uma política tautológica de se impor, pela via acadêmica ou não, autores já consagrados no meio preferencial de leitura, ou emergentes, contextualizados conforme conveniências da própria academia ou da mídia.

         Todas essas clivagens são válidas na medida em que se impõem ao expurgo da poesia do cenário neoliberal capitalista, enriquecem a dialógica, subsidiam a interdisciplinariedade, reconhecem diferenças e fazem resistência no confronto com outras linguagens, que, modismos ou não, mostram-se mais sedutoras ou mesmo didatizáveis. A primeira constatação é de hoje haver, indubitavelmente, mais espaço para a veiculação de e sobre poesia, sobretudo pela via eletrônica. Por outro lado, mas concomitantemente, alguns poetas e críticos têm tido a acuidade de, ainda que submetidos aos riscos decorrentes do rastreamento poético, informar o quê e a quem sobre uma dada poesia, de modo a torná-la mais visível, palatável e consumida com prazer sem incorrer na pecha de transformá-la em mais uma mercadoria, numa commodity cultural pós-moderna.

         Dentre tantas leituras importantes hoje feitas no país por gente muito bem preparada e atuante, uma pode cartografar as seguintes observações de pertinência para discussão: a presença da mesmice referencial que se faz canônica por pressão — a constituição de um corpus que omite não apenas nomes, mas valores — a adoção de metodologia restritiva e preconceituosa: academia versus recepção popular — a mídia como espaço de negociação de preferências em detrimento da negociação como "espectro plural", "negociação na escolha" de uma "gramática de se afirmar e dizer alguma coisa" — o excesso de teoria que põe o experimentalismo de quarentena — a queda no argumento da posteridade "restauradora de erros" (Baudelaire), aliando-se teoria ao senso comum — a suposta denegação da fórmula crítica do "círculo filológico", por si vicioso, que implica na insistência supostamente massificadora daquilo que já se conhece e que não consegue "devolver o outro à sua alteridade" (A. Compagnon) — a crítica produtora de elogios comprometedores, ainda que consciente do seu "jogo de palavras": preferir criticar a falácia com inteligência — o dissídio na recepção entre obra/autor/leitor em razão da falta de repertório — conjunto de normas sociais, históricas, culturais trazidas pelo leitor como bagagem necessária à sua leitura (W. Iser) e dada à falta de uma pedagogia poético-literária de caráter mais abrangente, que permita conscientizar esse leitor desconhecido para melhor usufruir das linguagens na contemporaneidade e a ter acesso à "produção de sentido".      

         Apontar indicadores da poesia contemporânea requer admitir, já a priori, o risco da empreitada de escolhas em meio ao que Barthes chama de direções de leituras escriptíveis: desfamiliarizantes (descontínuas), subversivas, (i)legíveis para gerações coetâneas e futuras, capazes de ampliar os "horizontes de expectativa" (Compagnon) e de constituir, com critérios de valor, um sensus comunis para seu objeto de prazer e reflexão dialógica, não se abstendo, contudo, da leitura com uma função de "benevolência severa".

         A poética brasileira vigente é também composta pelos que Vera Casa Nova chama de "bêbados de fim-de-século": poetas que trabalham com fragmentos, que rompem e têm sucessivas rupturas com tradição, com a história, cujas imagens devoram-se umas às outras em livros que já não são livros, mas "fendas de criação", que seguem "rastros de sentidos" pendulares, deixando no espaço do seu estranhamento "ressonâncias e ecos da embriaguez", vestígios sem fundamento, abismo e ruínas. Tempo de tradições, transcriações, intraduções, pós-tudo, extudo, do drama do desespero, das teatralidades da língua e das formas do cogito. 

         A leitura pós-moderna da poesia há que incluir os "poetas do caos", simuladores, dissimuladores, esquizos, psicógrafos, as máscaras, os desejos, pois são eles, diz Vera, interlocutores/recriadores de "subjetivações e interagindo com o outro na suíte infinita do jogo de dados, nesse contexto tantas vezes significante [que] faz o poema". E nesse contexto, por seu turno, há que incluir a voz dos (supostamente) sem voz, a coralidade anônima.

 

 

Ângela Vieira Campos

 

            Poesia, assunto de poetas? Quem, poetas? Como, poetas? Da década de 80 aos nossos dias, os poetas vêm saindo lentamente das catacumbas...seus versos não assustam mais os políticos-polícias, não causam mais temor. As editoras de poemas, antes em número bastante reduzido, parecem agora fazer parte da realidade de muitos poetas que surgem a cada dia sob o signo da liberdade. Não se prendem a escolas ou a movimentos específicos, pretendem ressingularizar-se e singularizar, com a poesia, os mortos que perambulam atrás de seus parcos interesses individuais. Para isso, eles usam as novas mídias e todas as possibilidades que os recursos de informática trouxeram com a sua entrada nos países periféricos — graças à intervenção da pirataria de programas de computador, realizadas pelas indústrias asiáticas.

         A poesia vem das margens, é a voz incômoda que resiste à mercantilização que desliza pelos novas mídias sem se deixar capturar, transformar-se em mercadoria. Não se vende poesia. Sob esse prisma, ela é inútil, sempre fiel a sua aura, para pensarmos com Benjamim, porque ela sobrevive ao fim das utopias. Ela é a utopia rediviva, tempo mítico no sempre agora a pedir um faça-se, faça-se poesia, impessoal, infinitiva. É a palavra de ordem dos poetas que vagam, hoje, sempre despertos pelas linhas de fuga do pensamento. A poesia é a "outra voz", a voz que vem do exercício da abstração, da percepção e das afecções, das intensidades de todas as paixões; e os poucos que a escutam hoje já são muitos, e os poucos que a reconhecem hoje já são inumeráveis. A poesia é sabotagem, manifesta-se enquanto discurso da desordem, conforme assinala Secchin, uma vez que a metáfora, a figuratização da linguagem, subverte as conexões esperadas pela sintaxe usual. Assim, ela trabalha com o duplo: é o símile que faz a diferença, é a aproximação de termos que deslocam contextos, provocam um circuito clandestino de sentidos, sempre aberto às subjetividades dos muitos leitores que se deparam com o poema. 

         Para o leitor, a poesia é o próximo e o distante, o estranhamento. Lugar de viagem, onde se perde o que se é e se adquirem novas identidades. Pensar na poesia de nossos dias é traduzi-la nas influências poéticas de todos os tempos. Ler a poesia hoje pressupõe o entendimento do ontem. São textos que nos fazem pensar no belo em permanente devir, imagens éticas, prontas, em seu lugar, em seus limites, apenas para dizer das delicadezas perdidas, das coisas não embaçadas pelo lugar comum, pelo senso comum. Dar nova visibilidade ao mundo. Tarefa da poesia.

         A poesia de nosso tempo abre-se a múltiplas direções seja na contenção de versos e no uso de rimas raras, seja na inventividade do signo verbivocovisual, seja enquanto mesclas de gêneros ou mesmo explorando imagens tecno-poéticas, através das NTCs (Novas Tecnologias de Comunicação). Infelizmente, nas escolas de ensino médio, nas faculdades também, os poemas são pouco abordados pelos professores em comparação com os gêneros narrativos. Nem os poetas do modernismo são lidos, quanto mais os contemporâneos e por quê? Seria possível abordar esses poetas na escola? Como lê-los e por que ler a poesia hoje? A resposta à primeira pergunta, deixo para os professores de literatura. Às duas últimas, eu responderia que, sim, é possível abordar essa poesia nas aulas de literatura brasileira e vou justificar, utilizando o pensamento de Félix Guattari, que afirma ser preciso criar novas territorialidades existenciais, pois segundo o filósofo: Só uma tomada de consciência da terceira voz, no sentido da auto-referência — a passagem da era consensual midiática a uma era dissensual pós-midiática — permitirá a cada um assumir plenamente suas potencialidades processuais e fazer, talvez, com que esse planeta, hoje vivido como um inferno por quatro quintos de sua população, transforme-se num universo de encantamentos criadores.   

         Estando vinculada ao pensamento, a poesia-reflexiva se nos mostra hoje, conforme assinalou Octavio Paz, como a "outra voz", que é também a voz do dissenso, a terceira voz, cuja potência desestabilizadora pode provocar a precipitação de existências auto-referentes, sensíveis às experiências estéticas de encantamento da própria vida.

 

 

Márcio Almeida

 

            A poesia pós-moderna se parece com uma prostituta que se arrependeu de dar a vida inteira e de ter se "esquecido" de pagar INSS para se aposentar com honra ao mérito. A poesia pós-moderna põe no out-door da consciência crítica a afirmação que incomoda o establishment da academia e dos críticos-satélites da suposta corrosiva linguagem de aventura do conhecimento baseado em leituras pessoais, seletivas e, não raro, preconceituosas contra não o que efetivamente faz diferença e fica confinado entre uma minoria-pensante que tem orgasmo com ninharias inteligentes, mas contra tudo que não é incluído em seu minifúndio de poder midiático. Na era que deveria ser o ápice da comunicação, com todo o aparato tecnológico facilitando o diálogo, a interatividade, o colóquio, a poesia já era. O fato de a poesia ter sido lhe garante, contraditoriamente, um vir a ser. Se insistimos é porque não temos  como nos livrar mais do que nós somos. Falou-se muito aqui em fragmentação, invenção...