"A imagem é o pigmento do poeta"

Ezra Pound

 

 

 

         Comunicados lacônicos, o recém lançado livro de poesia do conhecido artista plástico argentino naturalizado brasileiro — Antonio Lizárraga, surpreende por sua força e originalidade.  Assim como sua obra plástica apresenta uma poética sutil, quase única em sua consciência extrema de como cada pequena alteração num todo pode gerar sentidos diferenciados, perpetuando imagens espelhadas e criando um desafio para o olhar e para a emoção, sua poesia minimalista também cria geometrias planas, simetrias, compressão de imagens, traçando um atalho entre as duas formas de expressão artística.

         A poesia de Antonio Lizárraga se situa numa zona de sombra ocupada por  poemas que escapam à luz irradiada pelas teses preocupadas em definir o que se entende por poesia moderna. A verdade é que é difícil chegar a um conceito generalizável de poesia, quando o estudioso ou o leitor se atém ao poema em sua concretude, ao invés de trabalhar abstratamente a teoria. É preciso desconfiar das teorias, pois sempre se esbarra em contra-exemplos que as põem em xeque.

         Os poemas de Lizárraga são flashes, que concentram momentos de intensidade. Imprevisíveis e aguçados, eles desfiam comentários da realidade vivida e observada de perto e à distância, de dentro, de fora, de baixo, do alto e de viés.  Longe da lírica em sua definição clássica, segundo a qual o sujeito se debruça sobre si mesmo traduzindo no poema o seu mundo interior, mas também fora do espaço surrealista definido pelos procedimentos de liberação do inconsciente, Lizárraga orienta seu trabalho poético em direção à prosa, desintoxicando, de certo modo, a linguagem poética da massa de lugares-comuns tidos como líricos. Em contrapartida, ele empresta à prosa um rigor objetivo, realista, tensionando a escrita e fazendo-a perscrutar os objetos até torná-la equivalente ao que descreve.

         O assalto à lírica por meio de estratégias prosaicas, a discursividade condensada em sentenças, a dessublimação do verso, o pudor, geram um humor arredio e ácido que demarca distância da vida administrada. É o pequeno, o miúdo que explode a macro-unidade do mundo e a razão sintética e totalizante em que se baseia.

         Como bem desenvolve Vilma Arêas em sua esclarecedora apresentação ao volume, a poesia de Lizárraga diversifica-se em diferentes registros1. Ela abriga, grosso modo, dupla vertente: a primeira, epigramática, lapidar, incisiva. A segunda, meditativa, repõe imagens do passado, sem ser abertamente confessional. Em ambas encontram-se ecos das máximas, arte tensa de humor e geometria, voltada ao ataque, em poucos versos, do lugar comum complacente.

         No que refere ao amor, o movimento é o da desidealização:

                   ***   

"existem fortes indícios de que o amor pode ser praticado

em escala um por um" (p.38)

 

                   ***

"quando meu corpo ama

quer estar só

sem mecanismos auxiliares"  (p.30)

 

         A oscilação de escala entre o grande e o pequeno, em que o segundo contém o primeiro é um recurso recorrente:

                   ***

"no bojo do pelicano o mar troveja escama por escama" (p.31)

                  

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"a tarde ficou de joelhos no retângulo do retrovisor" (p.86)

                  

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"na banheira continuo navegando" (p.106 )

 

        

         O diálogo com a tradição transparece de forma jocosa:

                  

                  

 

"Godot chegou cedo

comprou um jornal e foi embora" (p.63)

 

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Também é jocosa a menção a Deus:

 

 

"radar clandestino localiza o homem que inventou Deus" (.81 )

                           

A infância com seu repertório de sentimentos e projeções contrapõe-se aos poemas  de desencantamento do mundo:

 

"de costas para a arquibancada

o aprendiz de pedreiro

despenca no vácuo

 

 

ainda não foi localizada a caixa preta"  (p 44  )

 

                   ***

"quando criança usava o tempo desenhando galáxias

amontoava universos numa lata de bolinhas de gude

 

 

 

Sabia de cor a cor das locomotivas" (p.25)

 

                   ***

Abre o livro um poema que pode ser lido como metapoema:

 

 

"dentro da chuva aprisiono palavras

que uso para alimentar janelas" (p.23)

 

                   ***

Prisão e movimento se contrapõem no dístico acima.  Palavras são chuva fluida que alimentam o olho que de trás da moldura da janela acompanha o seu fluxo. Combinando economia verbal com o fervor da descoberta, o poema se oferece à leitura:

 

"uma revoada de estrelas

pousa no pudor dos radares"(p.24)

 

É a natureza passageira e proteica da poesia que lhe atribui vida, vida que germina no ato de leitura. O sujeito lírico, como as palavras liquefeitas, é movimento que gera movimento.

"dia a dia mudo de lugar"( p.90)

Os comunicados lacônicos de Lizárraga inseridos nessa zona de rebentação da linguagem desafiam os radares interpostos para a sua captação.

 

Nota           

1 Antonio Lizárraga, op.cit., pp.14-15.

 

 

 

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Antonio Lizárraga, Comunicados lacônicos. [apresentação de Vilma Arêas] São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.

 

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outubro, 2009

 

 

 

 

 

Berta Waldman, professora aposentada de literatura brasileira contemporânea na UNICAMP e professora de literatura hebraica e judaica na USP, tem livros publicados nas duas áreas. Entre eles, destacam-se Entre passos e rastros: presença judaica na literatura brasileira (Editora Perspectiva, 2003), Linhas de força: escritos sobre literatura hebraica (Humanitas, 2004), Do Vampiro ao Cafajeste: uma leitura da obra de Dalton Trevisan (Edunicamp, 1989) e A Paixão Segundo Clarice Lispector (Escuta, 1992).