Adriana Versiani vem na "luterária" há duas décadas como integrante do Grupo Dazibao de DV/BH, co-organizadora da coleção Poesia orbital e do jornal Inferno e é membro do conselho editorial da revista Ato e do jornal Dezfaces, de BH. Autora de Um barquinho pelo mar, Física dos Beatles, Conto dos dias, Explicação do fato, e-book incluído na revista eletrônica Germina. Participa da antologia O Achamento de Portugal, organizada por Wilmar Silva em 2005. Ela lança agora Livro de Papel, reunindo duas produções: Biografias de Vocês que não Existem e Mandrágora, num primor de design gráfico e edição ilustrada por Glória Campos.


Adriana Versiani está pronta para o reconhecimento pleno de ser das melhores autoras do país na atualidade. Ler Adriana Versiani é um prazer responsável. Ainda que se possa aproximá-la da melhor Clarice Lispector, Ana Cristina César, da ilustre desconhecida Martha Medeiros, Adriana Versiani é única. Ela se reinventa em cada livro, em cada linguagem "fora de qualquer imperatividade social", a conjugar descontinuidade e continuidade, determinismo e imprevisibilidade. Re-cortes, frações, partículas mentais, células escriturais compõem cenários inflacionários que permitem observar sobre a natureza da topologia do universo humano. A linguagem de Adriana Versiani está sempre em algum lugar. Ela tanto tem uma escrita em trânsito no contexto da "celebração móvel", proposta por Stuart Hall em 1987, como da valorização do efêmero, da alta rotatividade, pressupostos pós-modernos, levando o leitor a pensar na "tirania da urgência", instalada no mundo que leva à deslegitimação da utopia. O texto de Adriana Versiani é por isso o "vórtice de desintegração", com forte tendência orgânica. É uma aventura de sentido.

O diferencial desafiador do novo livro de Adriana Versiani está na questão emblemática posta no tema: Como ou por que "escrever biografias de vocês que não existem"? Desmantela-se desde já a concepção da falácia literária, bem como da caracterização acadêmico-genérica da biografia ou do conceito remanescente da Antiguidade Clássica ou da ideia remotíssima de a autora estar a homenagear Aristóxeno de Tarento, criador da biografia literária. Seus relatos são, realmente, ricos em estranhamento, uma releitura da estética neobarroca e do classicismo na biografia contemporânea, que incorpora fragmentos, cartas, resíduos de memória, revelações/descrições inusitadas, segredos compartilháveis, uma tendência moralizante da linguagem pós-feminista.


O que se tem nesse livro é a dialógica múltipla de vozes e dicções que compõem uma relação de complementaridade pulsante e pulsional com as autoras já citadas, acrescidas de Hilda Hilst, Sylvia Plath, Benazir Bhutto, Ângela Diniz, além da própria autora se dizendo em entrelinhas mitopoéticas. Os textos versiânicos mantêm "interferências valorativas", que relativizam, após o impacto das perdas, relações importantes e enriquecedoras do conhecimento da vida.


O gênero, valorizado após o new criticism, tornou-se boom consumista de obras sobre Frida Kahlo, Olga Benário Prestes, Camile Claudel, Carlota Joaquina, em livros de Eric Hobsbawm, Philippe Levillan, Francisca Azevedo, Lawrence Stone, Pierre Bourdieu, Giovanni Levi, Marina Maluf, Michelle Perrot, entre outros autores. A contribuição revificante do gênero, através de Adriana Versiani, está em autora incluir-se entre as de posicionamento desmistificador entre as mulheres que, segundo Virgínia Woolf, respeitam seu próprio sentido de valores, uma vez que, hoje, "escrevem menos interessadas por si próprias e mais pelas outras mulheres", donde terem começado a "explorar o mundo das mulheres, a escrever sobre as mulheres como nunca se escreveu antes".


Memória e moralidade Em Biografias de Vocês que não Existem, as personagens biografadas não comparecem somente em suas experiências, memórias, relações sociais, interpretações de mundo, espaços de sociabilidade, leituras, reelaborações pessoais dos códigos de moralidade da época, interpretações/manipulações próprias, acompanhando aqui uma análise de Tânia Zimmermann. Adriana Versiani trabalha com a construção de hipóteses do contexto de seu universo biografado. Há fusão do verdadeiro com o possível, invenção no sentido de interferir na ordem lógica do senso comum do imaginário. Ao serem lidos, ver-se-á como "os modos de registro das mulheres estão ligados à sua condição, ao seu lugar na família e na sociedade" (Michelle Perrot), uma característica peculiarmente incisiva e pessoal na obra da autora ouropretana.


Santas e bruxas, deusas, rouxinol, corvo, Gaia, Oxum, Xangô, insubmissão e rupturas, tradições e surrealírica, tudo renova a biografia. Nanonarrativa de tensão constante, exposição crísica da palavra em permanente dualidade exposta em finitude/infinitude, o intimismo confessional, o "olho que pensa" num estado de estesia, a paliologia. Tudo produzido com muita competência literária. Porque Adriana Versiani escreve na alma de vidro com a ponta do diamante.


Osvaldo André de Melo, no prefácio para Mandrágora, destaca que nesse livro "nenhuma palavra é inócua, gratuita, casual, enfeite; todas são pistas que sustentam as invisibilidades temáticas e estruturantes da obra". Em 15 textos curtos, a autora, diz Mello, "aproxima o sonho da literatura" no "universo textual devedor das águas da narrativa e das águas da poesia"; tem-se "a atmosfera da loucura", a "construção onírica", "uma literatura de desrazão", a repetição como "uso expressivo" em Adriana Versiani formalizando um "barrar/cantar polifônico" (...) na direção dos deuses para promoção da "coexistência entre o apolíneo e o dionisíaco".


Ela "agrega o invisível", as personagens mitológicas (minotauro, cavalo alado, unicórnio) e os oriundos da herança literária — dr. Fausto, Margarida, Medeia, os criadores — Anaïs Nin, Arthur Bispo do Rosário, Ana Hatherly, Emily Dickinson, Mestre Ataíde, Borges. Além daquelas "descontextualizadas", como Dulcineia que toma ácido lisérgico, Creonte, "aquela" da lan house do shopping center. E muito mais surpresas deliciosas neste Livro de Papel para leitores de fino gosto, exigentes e receptivos a uma obra-diferencial no contexto literário de hoje.

 

 

[Publicado, originalmente, no caderno Pensar do jornal Estado de Minas]

 

 

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O livro: Adriana Versiani dos Anjos. Livro de papel. Belo Horizonte: Edição da autora, 2009.

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outubro, 2009

 

 

 

 

 

Márcio Almeida (Oliveira/MG). Professor universitário, poeta, crítico de raridades e jornalista.
 
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