Roland Barthes, numa das aulas de seu curso O neutro, lembrava uma afirmação de Maurice Blanchot (em L'entretien infini), sobre a fadiga: "Parece que, por mais cansados que estejamos, não deixamos de realizar nossa tarefa, exatamente como é preciso. Parece não só que o cansaço não atrapalha o trabalho, como também que o trabalho exige isto: estar desmedidamente cansado". Ao que Barthes acrescenta: "Neste sentido é que se pode dizer que a fadiga não é um tempo empírico, uma crise, um acontecimento orgânico, um episódio muscular — mas uma dimensão quase metafísica, uma espécie de ideia corporal (não conceitual), uma cenestesia mental: o toque, o tato mesmo da infinitude".

         No entanto, a sociedade não reconhece a fadiga, o cansaço, que seria a "reinvendicação do corpo individual que exige o direito ao repouso social", como observa ainda Barthes. O direito ao repouso – do cansaço que não ousa dizer seu nome – é material, também, para a criação, para a recriação, a poesia em si. Temos como exemplo do tema da fadiga e da violência contemporâneas dois livros, publicados este ano: Trânsitos (São Paulo: Lumme Editor) e Como suturar lembranças (São Paulo: Arqueria), de Virna Teixeira. Ela compõe uma poesia em que a fadiga é incorporada a elementos que se associam a ela: a negatividade, o enfrentamento de doenças, a desistência, a recuperação, a depressão, a acídia, formas diferentes de enfrentar e expressar o luto vislumbrado em ações corriqueiras, do dia-a-dia.

 

 

Proximidade de Thânatos

 

         Comecemos pelos livros Trânsitos e Como suturar lembranças (que, talvez pelo tamanho, com sete poemas, pode ser considerado uma plaquete), de Virna Teixeira, nascida em Fortaleza/CE, em 1971. Ambos trazem temas parecidos. Não há dúvida de que uma leitura interessante de Trânsitos associe o seu título à ideia de movimento, e isso ficaria ainda mais atrativo para quem começa a ler os poemas do conjunto e conclua rapidamente que muitos focalizem diferentes países, cidades e continentes (México, Las Vegas, Escócia, África etc.). No entanto, esse aparente movimento encobre a estagnação do indivíduo: assim é que trânsitos evoca "Thânatos" — o deus da morte — e não só a poesia de Virna se coaduna, em alguns fragmentos, ao imaginário grego (em "Hydra", poema inicial, escreve "Havia um banco / de frente para o mar / Egeu" e se pergunta, como que desencantada: "onde o monstro / marinho?") como também tenta associá-lo ao cotidiano que o absorve, mesmo sem, muitas vezes, codificá-lo — sabendo que ele é apenas imaginário, leitura, e o real que abriga qualquer imaginário se torna mais impactante e minucioso em suas fraturas —, o fazendo exatamente pelos meios medicinais que conduzem ou a sobrevivência ou à simples destruição (e autodestruição). Se os poemas iniciais — indicando trânsitos, à primeira vista, mais corriqueiros — estabelecem uma relação com a clarificação de cenários abertos, conferindo cores claras, esmaecidas ou soturnas a determinados cenários pelos quais a poeta passa, os poemas consequentes parecem se prender a outro universo: o do enclausuramento. Não por acaso, parece que muitos poemas conduzem a uma tentativa de salvar o corpo, o indivíduo, da fadiga proporcionada por tais movimentos. Desse modo, referências literárias ou paisagísticas tentam evitar a própria dissolução do sujeito que se anuncia com fadiga, com um cortante luto que perpassa cada verso, próximo de uma negatividade.

São particularmente expressivas as tentativas com que a poeta tenta expor o constante cansaço desse sujeito que se anuncia mais por meio de elipses — uma limitação para análises baseadas na retórica, no discurso excessivo — do que por meio de complementos, apto a tentar conduzir seus passos rumo à extinção. Isto, no entanto, se esclarece por meio de silenciamentos da primeira parte: há árvores sem folhas, ruínas de uma abadia gótica, lápides no jardim de gelo (em "Lowlands"), blocos silenciosos de pedra e um barulho lento (em "Stockbridge"), um ciclista solitário, com pés determinados e exaustos (em "Landscape"), um silêncio de convento misturado ao confinamento, a barulhos e passos (em "Uma escada em caracol..."), um mar de inverno (em "Tarifa"), uma tarde de verão parada com um silêncio íntimo (em "Eros"), a solidão de rochas neolíticas (em "Orkney"), a mistura de tequila, cerveza e cigarrillos (em "aguafuerte"), a enumeração de animais (em "Diário da savana"), o mapa dolorido de um corpo (em "s/t").

Tal amplificação — de cenários distintos — vai dialogar com a reclusão dos poemas da segunda parte, intitulada "patinando no gelo fino", que vão adensando essa descida do sujeito ao que há de mais subjetivo em sua caminhada e dialogam diretamente com a série "Entre paredes" (de Distância, segundo livro de Virna): começam pelas imagens, fotográficas (baseadas no trabalho de Nan Goldin), de uma série de poemas em prosa, como "Detox" e "L'hôtel" , com a tentativa de cicatrização do sujeito: "Enrolou os ferimentos em gaze. Feridas cicatrizam com o tempo. Ainda que restem entalhes. Memórias desenhadas nos ossos, adornos. (...) Meses após o trauma. Sem sangue nas conjuntivas. (...) A transformação do rosto. Quando retirou as ataduras, as suturas" (em "Detox"); "Ardem velas no crematório" (em "L'hôtel").

Nos poemas que se seguem, a exemplo de "32º Fahrenheit", o cansaço do sujeito diante do choque e do trauma ganha um tom crescente, remetendo a um corpo após o acidente, com o trauma condensado em "frostbite, hipotermia", com a pele descolorida, à espera dos primeiros socorros, com o desfibrilador. Em "Titan", a mitologia se anuncia por Mercúrio, "mensageiro do submundo", avista-se um vulto de corpo na lua, crateras em sulcos mofados de outra superfície, assim como em "L'Éden at après" temos novamente um corpo em choque — e a autora se utiliza de uma terminologia científica que remete a elementos químicos. No entanto, esse trauma é seguido por tentativas de abertura para o mundo que parecia se abandonar na primeira estrofe: deste modo, temos um corpo passando por outros ambientes que, embora musicais, não trazem nenhum sossego, nenhuma tranquilidade: o corpo ao som de "satisfaction" é confinado numa clínica, e o contato com o mundo externo se dá através de autores de literatura e músicos (como Nick Cave), assim como com fotografias de um lugar que, na primeira parte, poderia fazer parte dos trânsitos, e agora apenas remete a Thânatos. Por isso, mais adiante não nos surpreendemos com a imagem de um ford antigo desgovernado. O cenário é de absoluta perda e autodestruição:

 

era uma cidade estrangeira

na direção do mar

uma ponte partida, colisão de corpo e metal na água

instinto de nadar até a margem

trâmite & perda, trânsito

de plutão retrógrado

(esgotamento)

 

e a poeta constata:

 

& ter que consolar o luto, afogar a mágoa em recuo

subir outra vez a mesma ponte

recomeçar no mesmo ponto

após os destroços

 

No livro (ou na plaquete) Como suturar lembranças, Virna empreende um caminho semelhante em determinados poemas: em "Polaroides", escreve "as imagens se desintegram, são apenas / paródias, mutilações / / corpos de manequins de plástico / desmembrados, disformes", o que se associa ao poema inicial dessa série, sem título: "manequim frágil / cílio postiço". Já em "Autópsia", inscreve uma descoberta dolorosa do sujeito: "no sótão descobriu a outra / sua dor fantasma no frasco de vidro / / o hematoma media 60 mm / lobo temporal", além de "lâminas de astrócitos edema". Esse desmembramento de manequins de plástico reverbera em "Da vida das marionetes", de Trânsitos: "bonecas, penduradas / no céu desta noite / sem rumo / / desabam / cataplécticas / suas pernas / erráticas". Como se a boneca e os corpos de manequins de plástico representassem o próprio sujeito — desmembrado e disforme —, Virna tenta colocar ao lado a figura de Marilyn, de uma "platinum blonde" ou de pin ups em poemas como "film still # 2" (de Como suturar lembranças) e "Lichenstein" (de Trânsitos). Em "Como suturar lembranças", por sua vez, os vestidos frágeis são costurados e colocados sobre "cabides de ossos / omoplatas".

Há uma certa obsessão pela imagem, pela tentativa de focalizá-la inteira, mesmo que com imagens disformes: em "film still # 2", Virna revela um "ensaio voyeur da câmera", com um "aranha-céu de fundo" e mais adiante — como se aproximasse em zoom — "uma garota em apuros, o boulevard vazio", até inseri-la no ambiente da academia, onde "ensaia golpes imaginários — jap-uper, cruzado / de luvas vermelhas, round livre" — no poema anterior, há um corte de cenas visto de uma janela, visualizando a queda do manequim frágil, que deixa um "rastro de álcool / e perfume / / no trottoir" — pergunta-se se a manequim não seria mais humana. Em "polaroides", escreve: "ao folhear o álbum perdido, olhando para a / câmera. stills de um filme antigo" — no entanto, "já não reconhece mais as perucas, os disfarces". Em outros instantes, existe um ambiente de opressão e medo, cercado de "clorofórmio, / / torpor, repetição que acalma" e a sensação de adrenalina nos trilhos da montanha-russa, que traz uma "descida vertical em parafuso".

A saída do sujeito também se dá pela arte cinematográfica, na seção "Travelling", de Trânsitos, em que se misturam imagens do cotidiano a cenas de cinema, como no excelente "Ken Loach", em que o tom, apesar da gravidade temática, é guiado pela sonoridade das palavras e nomes:

 

'Meu nome é Joe e eu sou

alcoólatra'

 

Assim inicia o filme — na reunião

da sala anônima

 

Peter Mullan é um junkie

de tatuagens desbotadas

desempregado

nas ruas de

Glasgow

 

Sweet sixteen anestesia-se

com mãos frias de heroína

 

Seu delírio, um oásis — de papoulas

papiro

no subúrbio urbano

 

prisão visita tribunal recaída

 

não há adversários — nem drogados

felizes

 

 A maneira como as imagens são organizadas remete não exatamente ao travelling do cinema, mas à montagem, que é conferida pela proporção de elipses que notamos em "Les nuits fauves" ou "Chinatown", num diálogo entre a literatura e o cinema, com a absorção de diálogos ou a recontextualização de imagens na escrita, como em "À flor da pele": "em câmera lenta / descia as escadas / sinuosa seda / do vestido" — remetendo também ao trânsito do olho e das imagens, a exemplo de "Hades", outra referência à mitologia.

Esse diálogo com o cinema se estende ao universo da pintura, em "enquadramento", sobretudo no poema "Quadro", em que a poeta se refere ao quadro das duas Fridas Kahlos, com versos que remetem ao universo em trauma da segunda seção: "o sangue supre a mais fraca / — aorta — / na pulsação do céu / / sombrio". Por meio do entendimento de que a pintura é um simulacro não só de um cenário, mas do subjetivo, que vai reunindo pedaços, fragmentos, resíduos, para tentar confeccionar uma tela plana — mesmo que soturna, eclipsada —, a poeta confere "dois corpos atados pelos braços / silhuetas sem rosto", em "doppegänger", em que gestos na penumbra ou sobre a tela em branco podem, ao final, configurar uma "tensão possível da unidade". No entanto, essa inserção na pintura não impede uma raiva antiga, condensada em "coágulos e pedras", "cercas de espinhos" (em "Meu coração, seu coração"), nem uma morfina (em "célula"), em que há um "reduto de lembranças rubras, acrílicas". De algum modo, o sentimento é petrificado, assim como se tenta "lapidar lacunas / na dureza / da pedra" (em "Mármore"), e corpos continuam na penumbra em "a golpe do anti-ceifo", ou há segredos em "caixas de pandora" (em "embankment").

Notar a poesia de Virna Teixeira como distanciada dessa noção de fadiga — tão bem expressa por nosso poetas modernos, de Drummond a Cabral — é simplesmente ignorar que sua tendência à logopeia não expressa a impossibilidade do discurso extensivo a uma felicidade previsível. Desse modo, Trânsitos desenha uma ligação não só com Visita e Distância, os dois primeiros livros de Virna, mas com as paisagens e poetas que ela traduz — como Edwin Morgan, Paul Éluard e Richard Price. É possível ver na obra de Virna um diálogo com o mundo contemporâneo — e com sua opressão e reclusão. Nesse sentido, é uma poesia que converge com o otimismo de se saber solitária — e cansada, depois de configurado seu cotidiano.

 

 

 

 

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Os livros: Virna Teixeira. Trânsitos. São Paulo: Lumme Editor, 2009 | Como

suturar lembranças. São Paulo: Arqueria, 2009

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dezembro, 2009

 

 

 

 

 

André Dick (Porto Alegre/RS, 1976). É formado em Letras pela Unisinos e doutor em Literatura Comparada pela UFRGS. Em 2002, publicou Grafias, seu primeiro livro de poemas. Em 2004, publicou Papéis de Parede, destacado como "referência especial" no Prêmio Cidade de Juiz de Fora – 2003.
 
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