As passagens e obras de imortais da História — com H maiúscula — de Belo Horizonte, MG, estão registradas na Coleção Beagá Perfis, concebida pelos jornalistas José Eduardo Gonçalves e Sílvia Rubião, criadores da novíssima Conceito Editorial. Os dois primeiros exemplares (Fritz Teixeira de Salles e Hugo Werneck) foram lançados no final de abril de 2009. "As séries têm em comum a preocupação com a memória coletiva", observa Gonçalves. "Juntamente com os lugares temos agora os protagonistas da cidade, aqueles que com seus trabalhos, formas de expressão, histórias de vida, são de fato 'a cara de Belo Horizonte', esta cidade tão multifacetada”. Para Rubião, a coleção vem preencher uma lacuna: "Ao escolher personagens que deixaram um legado importante, mas, no entanto são pouco conhecidos do grande público, embora às vezes sejam muito citados nos meios específicos e até referenciados por nomes de logradouros públicos".

 

Convém reafirmar que não são biografias, perfis — gênero jornalístico —, em consonância com o excelente ensaio presente em Perfis, e como escrevê-los (Sérgio Vilas Boas, São Paulo: Editora Summus, 2003). Aliás, este livro, uma grata surpresa, merecedor de espaços nas melhores bibliotecas e estantes públicas e privadas, além de salas de aulas dos cursos de comunicação social, letras, etc., torna-se referência teórica obrigatória para todos os que queiram pesquisar e expressar uma trajetória humana sintética, descrição com objetividade, diálogos, interações, depoimentos, detalhes, lembranças afetivas e culturais dos homenageados vivos ou falecidos. Todavia, num encontro com o autor em 2005, ele vai além com a seguinte ressalva: "Percepção e linguagem são fundamentais na elaboração de um bom perfil".

 

São justamente estes dois fatores, apontados por Vilas Boas, os diferenciais da Coleção Beagá Perfis. E percepção foi à proximidade afetiva, mantendo os distanciamentos e as exigências racionais necessárias, mais às convivências observadas, os lastros dos editores ao escalar o premiado Paulinho Assunção para escrever o perfil de Fritz Teixeira de Salles, que prefaciou um dos seus livros de poesia publicado em 1981: A sagrada blasfêmia dos bares. O mesmo se aplica ao perfil de Hugo Werneck, redigido pela sua bisneta, Letícia Werneck Miraglia, que não chegou a conhecê-lo. Teve o amparo e registros familiares como uma das fontes de pesquisa, além de relatórios, atas e documentos dos primeiros hospitais da cidade e da Faculdade de Medicina, a qual Hugo Werneck ajudou fundar. Merece consideração revelar também nos trabalhos do perfil de Hugo Werneck, a valiosa utilização das pesquisas e a orientação da historiadora e professora Rita de Cássia Marques (Escola de Enfermagem/UFMG) sobre as atividades do "médico das senhoras" (ginecologia) no começo do século passado. O segundo fator são as formações jornalísticas teóricas e práticas dos responsáveis pelos perfis. Paulinho Assunção tem mais de 30 anos de profissão. E Letícia Werneck Miraglia, ganhadora do Prêmio Abril de Jornalismo 2005, a bagagem de uma década de atividades.

 

A competência dos dois profissionais da área de imprensa está estampada nos livros: narrativas jornalísticas sólidas — sem afetações e sentimentalismos banais —, repletas de figuras de linguagens, diálogos com a reportagem e a literatura, depoimentos contemporâneos, interlocuções imagéticas e fotografias na medida certa. Conseqüentemente, os dois lançamentos possuem uma linguagem criativa e rica em informações, historiografias competentes, bibliografias no prumo, fontes consultadas merecedoras de créditos, recortes pulsantes em vários capítulos sem perder o tom e o fio da meada. Prendem às atenções dos leitores. 

 

"Boa parte do fascínio exercido por Fritz sobre os seus interlocutores, sobre qualquer pessoa com quem conversasse, vinha de seu senso de humor, de sua ironia afiada como a mais afiada das lâminas, de uma habilidade singularíssima para transformar mesmo um fato banal em uma peça cativante. Loquaz, bom debatedor, muitas vezes hiperbólico para dar mais cores ao que estivesse contando, inquieto com o corpo e com os braços, sempre prestes a se levantar de onde estava para ocupar toda a cena com a sua pródiga estatura, Fritz era um ser vulcânico".

 

No parágrafo acima uma observação importante, apontada por Paulinho Assunção sobre Fritz Teixeira de Salles: um quixote irresistível (Belo Horizonte: Conceito Editorial, Coleção Beagá Perfis, 2009), o primeiro volume da coleção. Fritz Teixeira de Salles (1916-1981) nasceu em Santa Luzia, Região Metropolitana de Belo Horizonte. Foi poeta, ensaísta, historiador e professor. Homem de personalidade exuberante, polêmico, de grande cultura, generoso, mineiro, de extrema formosura, defensor arrebatado de suas idéias e posições políticas, o escritor marcou época nas rodas intelectuais da Capital das Alterosas, que aconteciam nos bares e cafés da mitológica Rua da Bahia e adjacências. Incentivou inúmeros outros escritores, inclusive o autor do seu perfil.

 

Chama a atenção, detalhe que não pode passar batido, o título do perfil, na apresentação de Paulinho Assunção: "Acertadamente, em uma crônica publicada no Jornal do Brasil pouco depois da morte de Fritz (ocorrida em 13 de abril de 1981), e, mais tarde, reproduzida em um número especial a ele dedicado pelo então Suplemento Literário de Minas Gerais — edição organizada por seu filho, o poeta e artista plástico Ricardo Teixeira de Salles —, Carlos Drummond de Andrade chamou-o de 'Quixote Irresistível'". Na realidade, o livro é uma homenagem como poucas, repleta de lembranças, encontros, cartas e poesia. Entre tantas escritas por Fritz, "... jóia do sonho no milagre da carne, / velejando novo mar, / no irromper desses futuros", a saudação do primeiro neto. Sem falar nas artes plásticas, dois retratos feitos de Fritz, um por Alberto da Veiga Guignard (capa do livro) e, o outro, pelo argentino Luis Trimano. Também as reminiscências de Darcy Ribeiro, quando Fritz deu aulas sobre História do Brasil na década de 1960 na Universidade de Brasília (UnB). Com o golpe de 1964 e a demissão de vários professores em 1965, em solidariedade aos companheiros, 223 docentes apresentaram sua demissão coletiva à reitoria. Entre eles, estava Fritz Teixeira de Salles.

 

O ponto alto do livro está na parte final. São os depoimentos de Affonso Ávila, Silviano Santiago, Fábio Lucas, Affonso Romano de San'Anna, o irmão cronista José Bento Teixeira de Sales (ao longo do livro) e Benito Barreto. São várias recordações e duas revelações impossíveis de não ser contadas, como bem aponta Silviano Santiago: "... Fritz manifestava clara preferência pela tradicional vertente realista do cinema, defendida entre outros por Georges Sadoul. Já nós, os jovens estetas, retirávamos os exemplos de realismo dos escritos de André Bazin". Outra revelação, com atenção especial para o texto de Affonso Ávila, que conheceu Fritz bem jovem (aos 20 anos de idade), é uma coincidência salutar, dois poetas que tiveram influências tanto na poesia de Fritz quanto na de Ávila: Gregório de Matos e João Cabral de Melo Neto.

 

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"Belo Horizonte talvez não fosse a mesma se por ela não tivesse passado Hugo Werneck. Para a vida e a carreira do médico carioca, também foi decisivo ter colocado — e fincado — os pés na capital mineira. Formaram uma dupla que se completava. Em 1906, quando as duas histórias começam a se entrelaçar, Werneck tinha 28 anos de idade e procurava um lugar de clima bom para se recuperar de uma tuberculoso. Belo Horizonte, que mal completava nove de existência, precisava das qualidades e da disposição que ele tinha para o trabalho".

 

Curou-se da doença e por aqui ficou. Foi o pioneiro da medicina na cidade, como podemos observar em Hugo Werneck: médico e construtor de sonhos (Belo Horizonte: Conceito Editorial, Coleção Beagá Perfis, 2009). Em 1906, arregaçou as mangas e implantou — na época a capital era conhecida por "Poeirópolis", repleta de canteiros de obras por todos os lados — os primeiros serviços de saúde para uma população totalmente desassistida. Principalmente, os emigrantes europeus que chegavam em massa para ajudar na construção de ruas, avenidas e edifícios. Transformou um amontoado de barracas em hospital de verdade: a Santa Casa de Misericórdia. Esteve à frente de várias outras realizações como a criação da Faculdade de Medicina (atual Escola de Medicina da UFMG), do Hospital São Lucas e da Maternidade Hilda Brandão, além do Sanatório Hugo Werneck, referência no passado para o tratamento da tuberculose. O mais interessante na sua história é uma imensa e arborizada praça — laureada com o seu nome —, que está localizada justamente na área hospitalar da cidade, no começo do bairro Santa Efigênia.

 

Hugo Werneck (1878-1935) nasceu na cidade do Rio de Janeiro, RJ. Uma observação fundamental, para não confundirmos as pessoas, pois o homônimo Hugo Werneck aparece também na História do Brasil com a presença de outro pioneiro, porém na luta ambiental, o ex-presidente da Fundação Zoobotânica de Belo Horizonte (FZB-BH), membro do Conselho Universitário da UFMG e professor belo-horizontino, Hugo Werneck, falecido no dia 20 de dezembro de 2008, filho do próprio Hugo Werneck, e pai do escritor Humberto Werneck. Uma outra informação importante apontada no perfil é a origem paterna de Hugo. Era filho do também doutor, bacharel em letras e político Francisco Furquim Werneck de Almeida, introdutor da cesariana no Brasil (especializou-se em ginecologia, Viena, Áustria) e médico particular da princesa Isabel. No livro, podemos perceber a participação e o incentivo do pai, que foi essencial na escolha da profissão e manutenção da tradição familiar, à medicina, em particular à ginecologia.

 

Aparecem com relevâncias no segundo volume da coleção: citações de jornais, presenças de pessoas da área de saúde, vários casos, cartas, bilhetes, políticos e até o escritor Pedro Nava, que também era médico. É de Nava algumas das melhores observações e descrições de Hugo. Por outro lado, o reconhecimento como médico, professor de ginecologia e obstetrícia e bom administrador nas direções da Santa Casa e Faculdade de Medicina e mais tarde em seu Sanatório Hugo Werneck, foram primordiais no convite feito por Clemente Faria para participar da fundação e tornar-se o primeiro presidente do Banco da Lavoura, transformado em 1928 no Banco da Lavoura de Minas Gerais, que em 1971 mudou de nome novamente, tornando-se o Banco Real e mais tarde Banco Real ABN AMRO. Com o tempo, bem após o falecimento de Hugo, a família se desligou do Banco da Lavoura, que se transferiu (a sede) na década de 1960 para São Paulo. No início da década de 1970, o Banco da Lavoura de Minas Gerais dividiu-se em duas novas instituições, o Banco Real e o extinto Banco Bandeirantes. Além da atividade bancária, Hugo era membro atuante do Partido Republicano Mineiro (PRM), sendo vereador e presidente durante anos do Conselho Deliberativo de Belo Horizonte, a Câmara de Vereadores da época, até a dissolução da casa, com a Revolução de 1930. Faleceu em março de 1935, em São Paulo, SP, aos 56 anos, vítima de uma pneumonia e o agravamento de uma cirurgia para a retirada de um tumor na sétima vértebra.

  

PS: para quem quer se aprofundar mais sobre a teoria e a arte de narrar e descrever vidas, outra indicação é o primoroso Biografias & Biógrafos: jornalismo sobre personagens (Sérgio Vilas Boas, São Paulo: Editora Summus, 2002). Afinal de contas, as biografias e os perfis sempre foram leituras prediletas em qualquer parte do mundo. Ademais, são valiosos campos de pesquisas, reflexões e estudos mais aprofundados sobre os autores e seus legados...

 

 

 

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Os livros: Paulinho Assunção. Fritz Teixeira de Salles: um quixote irresistível e

Letícia Miraglia. Hugo Werneck: médico e construtor de sonhos.
 Belo Horizonte: Conceito Editorial, Coleção Beagá Perfis, 2009.

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junho, 2009

 

 

 

 

 

José Aloise Bahia (Belo Horizonte/MG). Jornalista, escritor, pesquisador, ensaísta e colecionador de artes plásticas. Estudou Economia (UFMG). Graduado em Comunicação Social e pós-graduado em Jornalismo Contemporâneo (UNI-BH).  Autor de Pavios curtos (Belo Horizonte: Anomelivros,  2004). Participa da antologia O achamento de Portugal (Lisboa: Fundação Camões/Belo Horizonte: Anomelivros, 2005), dos livros Pequenos milagres e outras histórias (Belo Horizonte: Editoras Autêntica e PUC-Minas, 2007) e Folhas verdes (Belo Horizonte: Edições A Tela e o Texto, FALE/UFMG, 2008).
 
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