Não conseguia fechar o casaco. Fazia frio e não conseguia fechar o casaco, pois ele não tinha botões. Ela juntava as duas partes, esquerda e direita uma com a outra e não adiantava, pois sem botões ou broche as partes caíam inevitavelmente. Fazia frio esta noite e não havia nada na sala que pudesse servir de broche, de modo a prender um lado do casaco com o outro e proteger o peito. Enquanto o casaco continuasse a cair também o frio continuaria a fazer. O frio que se sentia no peito era pior que o frio que se sentia no rosto e que o vento fazia no rosto.

 Se tivesse alguma coisa que prendesse as duas pontas do casaco, ou melhor ainda, se tivesse um outro casaco inteiro e não dividido em partes achava que se sentiria melhor. Nesse caso o peito seria inteiramente coberto, mas talvez o frio parasse antes que ela achasse algo para prender os lados soltos ou encontrasse um casaco melhor. Já anoitecia. O vento era o pior, mas só percebeu agora, entrando na sala. E antes estivera na rua, mas andara segurando firme os dois lados do casaco. Ainda se tratava de necessidades básicas. Ainda se existia num certo primitivismo. E disso só se esqueceu quando algo como um barulho se fez em sua nuca. Barulho foi o que sentiu querendo dizer frio, uma qualidade específica do frio, que naquela região se fazia em forma de barulho. A explicação foi insuficiente e não amenizou a sensação. Ali estava o barulho na nuca, dando a parecer querer aumentar e quem sabe estrondar-se, estrondá-la de frio. Lembrou de ter ouvido dizer que a nuca era o lugar de onde saía e entrava todo o calor do corpo. O problema do barulho não se esclareceu, e o frio aumentou bastante mais. Estava hirta, se geometrizava. Os músculos mais parecendo vigas a sustentar o edifício da cabeça: ampla, branca e fria. Mas era quase certo que por ali havia algum casaco e não seria mal-educado pegar um emprestado, afinal de contas era clara sua situação, tudo que fizesse nesse momento seria apenas um ato de sobrevivência, sem poder dar margem a implicações morais. Apenas com os olhos averiguou todo o cômodo. Não era grande e se o submetesse a uma análise atenta seria capaz de detectar a presença de um pedaço de pano apenas pelo faro, pelos instintos que ganhava na hora. Não abriria gavetas. Isso sim, já seria um exagero. Mesmo em necessidades tinha seus limites. Achou, então, que não faria qualquer coisa por um pedaço de pão e por analogia descobriu a relação dos escrúpulos com o alívio do frio. O diretamente proporcional.

Ao menos poderia avistar um relógio por ali. O relógio ela apenas pegaria e olharia, sem deixar indícios de que mexera nas coisas, nas coisas que não eram dela. Como acabara de ganhar uma força que a vencia do frio e acreditava que essa vinha justamente da descoberta de seus escrúpulos, estava disposta a mantê-la a qualquer custo. Mas ali não havia nenhuma pista de relógio. Talvez dentro das gavetas, mas as gavetas e nada sendo a mesma coisa, o fato é que não havia nada, nada no quarto fora a mesa grande de madeira e o banco, que na verdade era um sofá, mas que com aquele aspecto tão gelado deveria mais justamente ser chamado de banco, pobre banco.

Não havia ninguém no resto da casa, que mais exatamente não era uma casa. Apenas o quarto, um banheiro e a cozinha, conjugando. Estava só de passagem, para ver se estava tudo em ordem, pois desde que se mudara só voltara ali uma única vez, e agora, a segunda vez. O frio não a deixava à vontade. Tinha a vida que os móveis tinham. Iria ter uma compreensão da casa, do passado na casa e de sua atual ponderação, do seu estar diante. Realmente precisava achar um relógio, às oito tinha um compromisso. Às oito deveria estar na casa de Frederico, seu filho Frederico que a esperaria certamente sentado na varanda. Ele nunca abria a porta para ela, não por descaso, apenas porque se achava bonito assim, com a varanda lhe servindo de moldura e ele no meio, figura, gastando um sorriso aberto. E ela o ama pois é sua mãe, obviamente. Seu amor era o amor óbvio que apenas segue a natureza, nem direito nem dever, apenas amor natural. Do corpo à luz, da luz aos braços, vida, vida, espaço. 

Ela tinha as chaves, ela abrira a porta. Então, a fechadura não havia sido trocada, continuava lá, como se nada houvesse mudado. E se sentia esperada; esperavam-na, ela, poderia então até ter vindo antes, as fechaduras não haviam sido trocadas, esperavam-na. Não se sentia culpada, não era criminosa por natureza. Por natureza era apenas mãe, não se esquecera de seu filho, não se esquecera de Frederico, que deveria estar tão grande. Não conseguia imaginar muitas coisas a seu respeito, não tinha elementos, só aquele amor natural que lhe parecia suficiente e até devotado, visto a intensidade que lhe ocorria de senti-lo neste momento.

Mas a ansiedade era pior que a asma, a asma que tinha desde menina e crescia junto com ela. A asma envelhecia como ela, mas a ansiedade que mentalmente relacionava com ela não. A ansiedade se mantinha infantil, não havia experiência que a amadurecesse.  Seu filho Frederico. Amava-o como uma mãe. Passaria o resto da noite em silêncio, com ou sem Frederico, sentada ou deitada, enrolada em silêncio, apertada, pois se sentia um pouco dolorida, um mal-estar meio tonteira, meio bamba queria ficar um pouco quieta esperando fechar, o casaco, o peito mal-agasalhado.

O branco do hospital e o branco do apartamento eram iguais só no nome. No hospital as folhas caíam mais rápido, os móveis queriam virar estátuas, bancar ar de monumento. Os mosquitos namoravam na parede. Pousados; perninhas rígidas e esqueleto atento. Ficavam assim um dia inteiro. Era preciso esperar a noite para que se amolecessem e circulassem soltos pelo quarto, fazendo música, falando alto, querendo sangue. Todo o tempo do mundo para curar a ferida, sarar a peste. Todo o tempo do mundo para a saúde, só para ela a espera nas ante-salas limpas e frias com azulejos salpicados, para divertir o chão, animandorolando o espaço.

A moça ao seu lado no hospital é negra, tem os cabelos postos atrás da orelha e a palma da mão branca. O médico demora. Disseram que o caso da moça era simples, que iriam lhe curar rapidamente, estalando os dedos — foi o que o médico disse. O médico é loiro, príncipe além de médico. Todos os médicos pareciam brancos como as paredes da sala. Nada é de marfim aqui — pensava. O tempo destoa, a barriga da mulher negra intumesce e o resto do corpo infla, intumescendo enchia amplos os móveis que viravam balões como cortinas se inflando de vento. Os olhos viam tudo enquanto apenas queria ver uma coisa: a ametista, o jasmim e o assoalho de marfim. Extasiava com o amor que inventava pelas pedras. Ventre de pedras preciosas, ventre de pedras preciosas.

Uma inflamação. Ouviu a mulher negra dizer que o que tinha era uma inflamação e imaginou da sua outra doença que a inflamação da mulher deveria ser filha de algo gordo e abastecido, grande e grosso. A inflamação era filha da vaca que havia naquela mulher. Da produção ininterrupta de leite que há nela, do excesso de largura, da dobradura de mucosas que esguicham pastosas. Dos líquidos que mais parecem coisa, quase virando carne e achou que ela deveria tomar leite como quem come carne, misturando as semelhanças.

A mulher negra tinha um corpo que não esvoaçava. Parecia ter seis pernas e as usar todas, sem poupar. Caminhava com força, roçando o chão e nele abrindo teias. Super-humana com ótimos poderes que não os do vôo que qualquer humana mulher vulgar tem com pompas de imaginação. É verdade que a mulher com uma inflamação perde a natureza dos sonhos e se aproxima de outro ser. Pode sentir o cheiro das patas, das seis querentes nascer, e sente querendo abrir no peito outra coisa que não os seios, algo mais duro, como um escudo ou um casco, para suportar o chão e o que tem nele. Era também por isso que estava ali e esperava o médico? O médico chegou sem flores nem cavalos. Tinha aspecto de homem humano, lavrador. E era natural dali mesmo, do hospital. Deveria inclusive ter nascido ali, quando sua mãe olhou-o e disse: "Meu filho, um dia vais crescer e ser um grande médico, orgulho meu e de seu pai".

Mas seus problemas eram outros. Tinha uma doença nas mãos. Monstruosas — disse o médico, disse seu filho Frederico. E agora, no apartamento elas não conseguiam se calar, curvadas, despossuídas de carne, puro osso retorcido. E parecia não ter remédio para aquilo. Pensou em enfiá-las num balde de água quente para tentar amortecê-las e abrandá-las. Fez isso. Ligou o chuveiro e as deixou pendentes, com a cara magoada. Mas a água apenas as enrugou ao ponto de as deixarem ainda mais monstruosas, pois envelhecidas e com outra cor, entre anil e cinza. Loucura, a inviabilidade daquela mão. Colocaria luvas. Deveria ter alguma por ali. A mão insistia em construir rosto para o que não se quer ver, ninguém quer ver. Houve o dia em que foi capaz de fincar, mas não de acertar, o pior e melhor. Melhor, pois afinal não houve morte e não se denotou, nomeou-se àquela que mata. Pior, pois um fracasso assomado aos outros uma vez que ele merecia e muito, não sendo nem crime, apenas justiça natural. E uma vez houvera existido o dia em que, pela manhã, fincou os dentes no rosto da amiguinha da escola. Queria ser Clarice. Apertou-os, mais, mais; até sangrar. Engoliu o sangue do rosto da menina sentindo gosto de sangue pela primeira vez. O gosto inexplicável. Depois largou a bochecha e a menina. Ficou surda por uns instantes. Sentindo o gosto do sangue, totalmente concentrada nisso, sem poder fazer mais nada. Até que o sangue em um momento não existiu mais em sua boca, nem na menina nem em lugar nenhum. Mas o gosto ficou. Em algum lugar onde não soube nomeá-lo. Ficou. Depois de um tempo percebeu a cena que havia se formado em volta dela e do rosto mordido. Sempre tão solta, selvagerina. Fugindo do mal, selvagerina.

Existia uma razão pela qual aquilo se explicaria e se faria. Existia um sol, que aparecia a noite e não, não, não se confundia com a lua, puramente sol. E dele um ninho de bichos, abaixo do sol, meio insetos quase lagartos, aquecidos e nutridos por ele. Os bichos só não eram incondicionalmente monstruosos porque eram infantis, meio filhotes, com a boca aberta. Estes bichos matavam - pensou. Esses bichos bebiam veneno sem se envenenar. Regalavam, abundavam, pois todos os líquidos eram bons e doces. Ficavam ali, bebiam ali. Os pais deles não viriam, achavam-nos inaceitáveis, pois só aceitavam o feio se ele permanecesse infantil e eles já anunciavam um crescimento precoce. Não valeria a pena crescer sendo aquilo, entretanto cresceriam e matariam — pensava moralmente. E ela com tantas sardas na pele branca hoje se sentia animalizada como eles, alagartada, nutrida pelo sol da noite. Assim andou pelo apartamento, um pouco enjoada.

Foi quando ouviu o som da fechadura se abrir. Não se esconderia, sentiu o fêmur segurando a perna. O coração batia tão forte que poderia empurrar os móveis do sofá se neles encostasse o peito. Empurrar, talvez quebrar, talvez destruir completamente, aniquilar inclusive o que amava e adorava. Mas não acreditava nisto de amar, amando, amou. Amava os filhotes, bichos quentes com mamas e cheiros. Amava imaginar a quentura das patas dos bichos. E assim tinha vontade de sorrir e quem sabe cantarolar, imaginando rindo, passando de ora em ora os dedos pela boca. Tinha vontade de comer, impulsão de ser cada vez mais coisa, de fazer cada vez mais coisa; sem encostar, apenas sobrepondo o lábio superior sobre a vibração do inferior agora querendo misturar, fazer duas bocas e esquecê-las debaixo de algum céu, o céu de novembro.

 

II

 

O trinco da maçaneta não dobrava para adiantar à sua frente a cara dele, maçaneta besta, querendo suspense. Mas ela permanecia de pé, firme como um tronco. Então era isso, deixara a chave na porta e ele não conseguia entrar, abriria a porta e diria como dizia antigamente: o conteúdo não importava, qualquer palavra com um finzinho quentinho. Três passos, mão na chave que não se mexia, esperava, abriu. O outro também esperava, sabendo. Então a boca e o olho e tanta, tanta.... Ele entrou silencioso e lento. Olhava tudo sem ver bem, contido, talvez desesperado, todo inútil. Palavras eram para se jogar fora, ali, naquela hora. E foi com esse lixo que começaram a empilhar o silêncio, empurrá-lo quando ele disse: Monstro.

Então ela saiu de perto da porta a qual desde a entrada dele se tornara a referência de suas possibilidades espaciais, apesar de emanar algo de duvidoso, abrindo e fechando. Andou firme em direção a ele e decidida colocou as suas duas mãos em frente a seu rosto, o dele. Esperou. Oferecia-as sem posteriormente nem interpretação, fazia delas uma estória, a própria experiência contando e chorando. Ele hesitava nisso ou uma ignorância ou uma recusa de humanidade, vendo naqueles pobres olhos a bestialidade de um boi que, entretanto tinha corpo de mulher e a espécie dos homens. Assim abaixava a cabeça, desamparado.

Ele, na verdade: um só corpo no banco, pneuma encolhido na roupa. O peito estava tão pequeno, tão abafado, tão absurdo que não tinha forças para ir e vir de expressão nenhuma. Nada nenhum se expandia fazendo um miolo no peito, contorcendo em forma de parafuso furando dentro. A asma era agora dele, nada de ar nada de palavras. É sempre preciso pedir ar, desejar ar quando se quer palavras — descobria a proporção. O sisudo de seu ser era um peso, insuportável era suportar aquilo pesando chumbo, enxofre metais todos invés de sangue célula coisas de organismo. E aquela — descobria — era a dor que dói muito — não sabia explicar a origem. Na linha de frente o medo chefiava os demais sentidos dizendo que nunca mais sairia daquele estado de tudo misturado naquele momento. A casa era o banco e o infinito reto para baixo, o peito espremido, inconsistente de saúde, batendo forte em si mesmo, apanhava como um vagabundo. Não podia se forçar a sair levianamente dali, não tinha jeito, pois aquilo já se infiltrara no corpo adentro e o incapacitava de falsear para se curar e esquivar. Pensava que estava perdido, que iria desgraçadamente sofrer até morrer. Ressentido, afundava na lama na merda que era aquilo. Entendeu, ao menos. Tentou respirar fundo. Sentir alguma outra coisa. Parecia funcionar. Melhorava. Mas não se tornava gentil, ainda doía o gesto dela, a sanha dela. Mas quando se sentia endurecido piorava, voltava tudo e mais, redobrado, com o presente mais a memória do que passava. Então parecia que era melhor virar um pouco a cabeça, tentar sentir de outro jeito.

Patética — ele enfim balbucia.

Ela não ouve e na imaginação o abraça e ele pássaro-morcego a cobre com grandes e laterais asas. Tudo adivinhado. — Imitação da felicidade das nuvens. Queria dormir com um vestido de festas e brincos grandes e pesados e talvez sapatos, com um salto fino meio caído para os lados; queria seus cabelos desajeitados, a boca lívida, a pele em paz. Queria as pernas quentes, as costas com uma penugenzinha eriçada e inteligente e uma umidade pelo corpo todo, uma umidade fértil de um segredo desejoso de ser desvendado com falsidades fundamentais e acidentais: tê-las retingindo nos olhos e depois as pálpebras beijadas em fila de cumplicidade. Uma imaginação poderosa a deixava se sentindo maravilhosa como uma divindade com pedras preciosas na testa (moldurando o rosto). Com as pontas das unhas mexia o ar em círculos regulares, sem nada arranhar, sem nada doer, leve e profunda, pois seu amor seria uma fenda funda com tez de porcelana que não quebra, meu amor, é feitiçozinho. Jogue-me no chão e continuarei a ser um vidro fino, essa pele branca e límpida, alva mulher de pele fina — delirava.

Gozando marejando com algo de estúpido reverberando do rosto viu o rosto dele de um jeito diferente, ele estava diferente. Algo entre leve e sombrio, entre o que lhe remetia ao que há de comum entre um cigano e um cachorro. Quase sentiu medo, mas o prazer foi mais rápido, dominou-a completamente. Sentiu-se numa estrada aberta e comprida com um clima de aventura no ar. Essa imagem lhe deu vontade de rir e com os olhos soltos viu um relógio na parede. Eram oito horas em ponto. O sorriso já a preenchia grande no rosto todo. Sairia. Encontraria seu filho Frederico.

 

 

 
(imagens ©niecieden)

  

  

 

Maíra Matthes. Escritora, mineira, formada em filosofia, tradutora e professora de francês, já publicou nas revistas Corsário e Vagalume.