Brinca do mesmo jeitinho de antes; mas é diferente, despreenchido. Os joelhos estão vermelhos, como quando passava tardes aqui, ruminando corridas e capotes. O sino dos ventos crepita da janela, na mesma entonação, desde que se entende por gente.

Do berço?

Talvez.

Talvez fossem os pneus de plástico que ressacaram, embora circulem bem por essa antiga estrada; ou será rodovia? Estradinha de terra? Pista de corrida? Sabe-se lá; circulam, é o que importa. Vão indo, e girando, girando; daqui pra lá, de lá pra cá.

Vrum! Vrum!

No tapete cinza e felpudo. É o mesmo tapete cinza e felpudo, não é? E o carrinho? Pneus? joelhos prensados no chão... Daqui pra lá, de lá pra cá. Será que é o eixo? Ou os eixos? Um dos eixos ou os dois eixos? Ah, trem vagabundo, empenou à toinha, canta que nem carro de roça; range, assovia, não pode forçar nem um tiquinho.

 Vem comer, meu filho! — diz a voz lá da cozinha.

O menino para. Olha pro carrinho vermelho. Não move a cabeça. A voz não insiste. Ele volta a ranger eixos. Refaz a trilha na estrada, rodovia, estradinha, que o mesmo tapete felpudo, reconstrói sozinho por si só.

— Augusto! Vai esfriar! — a voz avisa.

O menino larga o carrinho. Tira o joelho do tapete. No corredor de piso branco e rejunte cinza, vem esfregando a mão esquerda na parede enquanto anda. Entra na cozinha estralando chinelo; vai ao prato servido. A voz, caridosa, diz qualquer coisa; ele não presta atenção. A porta da geladeira se abre. A cadeira, na outra ponta da mesa, questiona ao menino uma ausência. O gás vaza junto à tampa desrosqueando da garrafa descartável de tarja vermelha. A mão da mulher mexe nos cabelos dele, que reluta e enfia o talher entre o feijão e salada.

— Você anda tão quieto, meu filho...

O menino mastiga uma folha. Fita a cadeira. Mergulha o talher no prato pra apanhar um pedaço de carne. Um copo com a cara do pica-pau traga o líquido preto. O menino bebe um gole. O sapato da mulher salpica no piso branco. A porta da geladeira abre. A lâmpada da geladeira acende, a garrafa faz tremer o gradeado.

— O que foi, filhote?

A mulher passa a mão na cabeça do garoto que continua com os olhos pregados no prato. Salada, feijões, pedaço de carne de porco, de relance, são um rosto na cabeça dele. Sedimentos a desbastar um corpo. Corpo de menina moça. Corpo de pé, rijo, num gramado, onde ele brinca sempre. Corpo que veste um vestido branco, de braços morenos contrastando. Corpo que brinca de empurrar. Que tem no fundo um muro com rabisco e por cima o sol em meio tom. O soluço das correntes que prendem o balanço, e a menina moça cantarolando:

 

 

Borboletinha tá na cozinha

fazendo chocolate

para a madrinha

 

Poti, poti

perna de pau

olho de vidro

e nariz de pica-pau pau pau

 

Borboletinha tá na cozinha

fazendo chocolate

para a madrinha

 

Poti, poti

perna de pau

olho de vidro

e nariz de pica-pau pau pau

 

É o menino sentado, rindo e cantando junto, dissimulando alegria que deveras sente. Aceita de bom grado as mãos tocarem suas costas e lançar o balanço adiante, no ar, que ventoso, resvala nas orelhas franzinas. Pede pra ela empurrar mais forte. E mais alto. Voa borboleta, ela grita. Voa, borboleta, ele repete. De pés esticados, feito flecha, vê nuvens meio chuvosas num fundo azul avermelhando. E volta, de costas, rindo, correntes soluçando. Sente a mão firme tocar a camisa de algodão com suor por baixo, amortecendo, segurando o movimento pendular. A voz ri atrás dele. Mais alto, ele pede. Voa, borboleta, ela fala:

— O que foi, Augusto?

— Nada.

— Por que você não quer conversar? — pergunta a mãe do garoto.

— Por nada.

Mais uma colherada pra dentro da boca. Pra dentro da cabeça do menino, o balanço. E a menina moça diz que se cansou e que tem preguiça agora. Que precisa tomar fôlego. Que quer sentar-se um pouquinho. As correntes do brinquedo vão diminuindo o ritmo. O menino rapa a superfície da grama com os pés; draga a areia. Inverte a posição do corpo no balanço. A moça abana a mão na frente da cara, as pernas semidobradas meio de lado e de frente, joelhos de fora.

— Ai, ai! Você me cansou, mocinho.

— Ah, Milena. Deixa de ser mole, vai?

— Guto...

— Só mais um pouquinho, poxa...

Não tem outra dose de vento. Submisso, o menino deixa o balanço. Ajeita-se ao lado dela e fica. Espia a mão dela na grama. Aquilo de esmalte preto ele não entende muito, mas acha bonito. E os cabelos enrolados caindo nos ombros carnudos quando ela engole ar num olhar paradinho. Ele pergunta o que é, mas ela diz que não é nada. O menino indaga se não gosta mais de brincar com ele. A moça diz que não tem nada a ver. Que eles são amigos e, desde quando ele era menorzinho, ela adora brincar com ele. Que alembra bem do dia em que ele nasceu e do batizado. Que ele era gordinho e muito quietinho. Nunca chorava e não estranhava ninguém. Que alembra quando ele começou a falar todo embolado. E que nem parece que já faz dez anos. Que agora ele já tá mocinho. Ele pergunta quantos anos a moça tinha quando ele nasceu, só pra puxar assunto; ela diz, que seis anos. Que pegou ele no colo e ajudou até a trocar fralda. Que foi meio que babá dele, uma época. O menino diz, que já cansou de ouvir essa história e, que ela parece gente velha: conta a mesma coisa sempre. Ela dá um leve tapa no ombro dele: ah, é. Depois começa a cocegar o menino. Joga o corpo em cima dele, que vai rindo cada vez mais alto. Fustigando o garoto, que rola na grama, prensado, pedindo pra ela parar. A menina moça não para, vai cocegando a barriga dele, escorrendo os dedos por baixo da camisa. Ele pede pelo amor Deus para Milena, mas ela não para. Ele solta gargalhadas gostosas que arrancam até lágrimas dos olhos. A menina moça ofega, apruma o corpo num salto, insinua:

— Quero ver você me pegar agora, mocinho.

O menino levanta de perna bambeada. Parte atrás dela. Ameaça você vai ver quando eu te pegar. É ela fugindo até a outra ponta da praça, no meio dos ipês amarelos e do pé de pitanga, cantarolando você não me pega. Ele ameaça outra vez, escorrega, quase cai, e nisso, arrebenta o chinelo. A menina moça, mãos no joelho, tira sarro à distância; vai apanhar quando chegar em casa. O mocinho parte num pique feroz, deixando o par de chinelos pra trás. Ela mostra língua e, balançando os ombros e cabeça, permanece.

— Bobinho! Bestão!

Meio metro de distância, ele lança um bote certeiro; mas erra: porque a menina moça, delgada e esperta, salta de banda, e o vestido sobe na cintura, e ela abaixa com as mãos depressinha, um assovio vem de um banco da praça, e o menino cai de cotovelo e joelho no chão; ela grita velho tarado vai à merda; o menino levanta ligeiro pra pegar ela distraída; a menina moça corre de mãos coladas à aba do vestido, pro vento assanhado não tocar.

— É por causa do teu pai? — indaga a mãe ao menino que, por sua vez, nem olha; dá a resposta negativa movendo de leve o pescoço, mastiga; corre o olhar parado no prato; corre descalço, detrás da menina moça de canelas finas. Que vai tecendo ondas no trajeto de fuga — confundindo a toada dele. Que ouve o riso dela você não me pega. O bumbar dos calcanhares na grama, que são ele também, num arpejo de pulmões tropeçudos goela afora. Os dedinhos dele tocam o vestidinho da menina moça que, ao senti-los, gira o quadril maleável escapando. Ameaça sair pra esquerda, depois pra direita, de novo pra esquerda, outra vez pra direita, até rodopiar, freando de uma vezada só; corre em sentido oposto. Abandonado, o menino abraça o ar sem peso. Desiste. Cansei de brincar e parei com isso, sério mesmo, ele respira encurvado, braço na barriga, com dor. A certa distância ela também ofega, aceita. Eu também cansei, então vamos parar. Caminha pra perto dele.     

— Ô, meu filhote... Já te expliquei que o papai e a mamãe decidiram o que era melhor pra família. Que o papai e a mamãe precisavam fazer isso. Agora você pode achar um absurdo, porque você é criança ainda.

— Não sou criança, e não precisa me encher com essa ladainha de novo. Tô cansando disso. "O papai e a mamãe", blablablá. "A família", blablablá.

— É criança, sim! É criança, sim!  Que falta de educação, menino. Para agora! Com quem que o senhor pensa que tá falando, hein? Olha o respeito, não é essa a educação... o exemplo que eu dô, não! Onde já se viu um filho responder mãe desse jeito!

— Lá vem...

— Malcriado! Indecente! Eu faço de tudo pra você, meu filho. Tudo! Seu pai não tava feliz aqui, eu não tava feliz. Ninguém tava feliz. Será que isso não entra na sua cabeça? Hein? É tão difícil de entender, assim é?

— Tô indo pro quarto.

— Volta aqui!

A porta bate trovejando. Lá vem chuva, avisa a menina moça ouvindo o barulho e olhando pro céu. Não, não chove — rebate o menino, você quer apostar? Nem perco tempo, meu filho, eu já ganhei. Então aposta pra você vê. Aposta. Não me provoca. Você que é medrosa. Abre a porta, Augusto! Abre essa porta, agora! Vai embora daqui. Então aposta, bestona. A porta trovejando outra vez. Tá vendo. Já ganhei, outro trovão. Tá ventando, e quando venta não chove. Quem disse? Eu disse. E é lógico que não chove, porque o vento espalha as nuvens. Abre essa porta agora! Abre!!! Não vou apostar. E isso do vento é mentira, bobinho. Sabe por quê? Por quê? Porque o que te garante que o vento vai espalhar as nuvens; ele pode juntar também, seu besta. Sai daqui. Vai embora. Tenho que ir, mocinho, senão apostava. Ir pra onde, Milena? Vou numa festa hoje. Festa? Aniversário de quem? Não é aniversário não, bobão. Quem disse que tem que ser aniversário de alguém pra ter festa? A cabeça caindo na cama. Vai embora! Uai, mas que festa que é essa? Festa onde não vai criança. O Rô vai passar lá em casa pra me pegar, agorinha mesmo. As primeiras gotas começam a cair no travesseiro. Vai ficar parado aí, Guto? Ou? Psiu? A gente vai tomar chuva. Anda, corre. Abre a porta, Augusto! Ai, meu Deus e eu com esse vestido branco. Tô perdida. Me dá a mão aqui, menino. Deixa de dengo, corre. Abre a janela. Pula pra fora do quarto. Trovão. Pelo amor de Deus, abre essa porta, agora!!! Correm pra longe do balanço. Corre pra perto do balanço. Senta no alpendre da casa dela. Senta sozinho no balanço. A mãe ajoelha na porta. Quietos. Canta aquela musiquinha de novo, Milena? Canto. Ele canta sozinho, em silêncio, no balanço.

 

 

 

 

(imagem @ thirdey)

 
 
 
 
 
Marcos Vinícius Almeida (1982). Romancista, publicou seu primeiro romance, Inércia (julho de 2009) pela editora carioca Multifoco. A publicação rendeu-lhe o convite para se tornar editor do selo Terceira Margem. Vive em Luminárias/MG. Possui publicações em sites, antologias e revistas, como "Livro de ouro do conto brasileiro", "Novos talentos do conto brasileiro", Revista Cult, Cronópios e Observatório da Imprensa. Foi um dos laureados no III Concurso de Contos da UFSJ. É colaborador da Revista Bula (Goiânia/GO) e editor do blogue Bicho de Se7e Cabeças. Escreve o blogue (quebra-corpo). Twitter: @quebracorpo