Sou um homem pronto, que se desdobra a partir do âmago: passados os 40 anos a maturidade nos diz que estamos assim num sanduíche entre a juventude, que deixou poucas marcas, e a velhice improvável. Aprendemos pouca coisa definitiva com o passar do tempo: a pedagogia da vida é a prática mais falha. Sinto-me estranho por não ter sabido reger meus instintos: repito os mesmos equívocos da adolescência que execrei: aliás, com essa idade, percebemos que a maior parte do mundo é execrável. A vantagem é que nesse ponto estou numa ótima perspectiva: o sexo já diz cada vez menos, acredito na rede de amigos que não fazem parte do execrável, no entanto, ainda tenho recaídas duma peste purulenta: a paixão. Eu conheci Tom no último fim de verão: um sábado despretensioso, uma vernissage em São Paulo e dali, saí sem grandes pretensões além do diálogo breve com um homem estimulante. O detalhe é que mesmo no burburinho da entrada para a exposição, já notara aquele rapaz com um ar destacado da pequena multidão: a beleza está no centro dessa trama que me corroeu e, de onde suspeito, vou saindo ileso. A beleza me tocara, ela atemoriza, quem sabe por isso deletei seu impacto até que ele me ligasse 15 dias depois? "De onde surgem os anjos? Qual o caminho fáustico tomado por Lúcifer?". Sim, a beleza é diabólica quando traz em seu rastro:  fascínio intelectual, afinidades culturais, toda bagagem que nos fode quando caímos de quatro, mal percebendo o tanto que nos desnorteia.  Eu, que sempre me senti Aschenbach, saído de Morte em Veneza, morando no velho Porto de Santos, fui sempre o que rastreia o que me atrai, aquele que primeiro liga, aquele que faz a corte, mesmo tendo noção do patético de minhas expectativas. Não, por intuição até, creio que ter esquecido intencionalmente a aparição desse Tadzio com 30 anos, por precaução: queria ter evitado o que viria. Foi quem busco que me procurara: o desejo é ascendente quando despreparados. Trabalhamos com arquétipos: impossível prever que no feitio dum gato óbvio, com ares de surfista, morasse um intelectual que correspondesse ao meu sonho de interlocutor. Os artistas plásticos, assim como os músicos, são via de regra, especialistas limitados em seu campo de ação. Tom citava Pound de ouvido, discorria com propriedade sobre Lautremámont e tinha a mesma reverência mítica pela obra de Francis Bacon: selei meu amor unilateral estimulado por sinais que pareciam dirigidos a mim, mas na verdade eram expressões de sua sensibilidade. Entronizei uma majestade que convivia no cotidiano de sua intimidade com a Arte: exacerbei mais pela sua singularidade num mundo idiotizado, que pela sua raridade. Ele não é tão raro, mas caiu-me num instante em que não mais corro afoito por preciosidades. Eu queria São Paulo com toda a sua fauna, seguir compondo meus livros com bafo de maresias, curtir meus amigos dissolutos nas madrugadas de praia vazia, observada dalguma janela escusa e libertina. Agora, pretendo relatar sem lamento essa New Orleans devastada que reconstruo dentro de mim.

 

Amanheceu às 06:45 e a noite chega às 17:39. Nenhuma fé nas santas escrituras, Montaigne já se tornou contundente e repetidamente verdadeiro: seria tão simples seguir o divino, quando de real tenho dois pequenos rochedos que observo e que seguiram na sua ronda de milênios. Vestígios de água na lua de Saturno e uma pandemia gripal me são tão indiferentes quanto a brutalidade dessa coisa chamada de vida, quando olhada de frente e o de frente na vida é uma rua deserta na primeira hora do dia. As noites são tão humanas, por que a aurora sempre me foi tão assustadora quanto um inseto numa parede de mofo? A teia nos envolve: voltei minha trajetória na perspectiva de Tom: quando ele nascera, eu já contava 13 anos e agora todo o meu caminho é o percurso de sua espera. O que ele fazia enquanto eu trepava e amava desmedidamente me expõe a ausência de recursos para retomar meu fio da meada. Porque a existência não é concomitante a nexo e causalidade: tudo parece tão absurdo e é tão somente humano. Se fosse em Xangai, Moscou ou New York que o tivesse deparado primitivamente, a fatalidade irônica era que ele tivesse nascido e crescido no mesmo porto onde vivo até hoje. É primitivo encontrar numa megalópole um amor perdidamente avassalador e ele ser como eu, descendente do mesmo vento e contorno de serra debruçada sobre uma nesga de mar. Eu estava para enlouquecer até que resolvesse escrever: qualquer mão é um mimo que estanca essa ventania dentro de mim: as coisas mesmo que suspiram por gritar e nada ecoa porque pertenço a ti, para quem escrevo. Tenho um espaço poético que reúne os átomos e ensejam a realidade remoldada que tinha se estilhaçado: os pequenos espaços, as micrologias que tiram a ilusão que eu tinha do grande espaço. Não tenho mais Tom, mas retive sua possibilidade em minha Vida: refaço seu percurso, visito os pontos onde ele passara a infância, fui banindo sua realidade à medida que construía minha imaginação. Não sei o que é gênero de Alma, não gosto da ideia de amar um sexo: eu me afeiçoara por sua atmosfera. Tom era os fragmentos que não me compunham, deleguei a ele o fato de ser inteiriço uma pessoa: levara todos solavancos do sentido: tinha amarrado seu retrato vagando por corredores labirínticos: Tom mora no mais fálico edifício de São Paulo: numa janela, um dia, deparei com o sino da Consolação me tocando pelos dedos badalados: esfumei tudo numa prosa que se sustenta como garras num penhasco. Faltam-me agora os que desconheço: quero os que não me tiveram convivência, preciso achar o humano, além desse concreto que me aterrou com todo o cimento indigesto da Praça Roosevelt. A crônica do meu espaço é feita por ajuntamento: dou-me em vida amplo panorama estirado ao leitor: eu amei um homem que me elucidou para mim. Quero absorver a realidade somando tudo o que era antes e será depois de Tom: o que sucede, o que passa, o que passei. O leitor participante deve ser aquele que também se pergunta por que Tom em minha Vida... quero dar narrativa ao impossível de dizer: o essencial em flashs irredutíveis, a possibilidade de estória depois da abstração ou por dentro dela: reter o inexpresso nesse elo do indiscernível. Surge Pandora... eu desconhecia o paraíso; achava-me encerrado em desejos inférteis: quedei-me no original encanto... até a maturidade desconhecera a Mulher, tive de refazer-me para ser completo. Ela tem o mesmo enigma de chamar-se Clarice. 

 

 

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[Trecho de livro inédito]

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outubro, 2009
 

 

 

 

Flávio Viegas Amoreira (Santos-SP, 1965). Escritor, crítico literário e jornalista. Publicou cinco livros pela Editora 7Letras, do Rio de Janeiro: Maralto (2002, poesia); A biblioteca submergida (2003, poesia); Contogramas (2004, contos); Escorbuto, cantos da costa (2005, poesia) e Edoardo, o ele de nós (2007, romance). Publicou, ainda, Os contornos da serra são adeuses do oceano ao cais, de poesia, editado pelo selo experimental Dulcinéia Catadora e Sampoema, pelo Atêlie Acaia, ambos de São Paulo.  Considerado um dos mais inovadores autores de vanguarda brasileiro, foi incluído na denominada Geração 00,  grupo de escritores que se destacaram na primeira década do século e que terá reunido suas obras numa antologia organizada pelo crítico literário Nelson de Oliveira, para a Editora Boitempo, em 2010. Colaborador de diversos jornais, revistas literárias e sites, seus livros foram adotados por universidades norte-americanas e européias, tendo obras traduzidas para o inglês pelo professor e "brasilianist" Charles Perrone, da Florida of University e comentada pelo acadêmico português Luis Serguilha. Dramaturgo, estreou em junho de 2009 o monólogo Clarice Lispector: roteiro do insondável e prepara-se para lançar dois novos livros: Santiago além de João, sobre a obra do cineasta João Moreira Salles e O vazio refletido na luz do nada, onde implode a noção de gêneros, como prosa e poesia. Ativista cultural e libertário, o autor participa de vários movimentos pela Cultura e pelos direitos homossexuais. Já foi musicado pelo compositor Gilberto Mendes, tem parcerias com artistas plásticos e liderou 2 movimentos literários: "A literatura do Estilhaço" e "Transmodernidade". Recentemente, causou enorme polêmica ao ser entrevistado no programa "Provocações", de Antonio Abujamra. Historiador, luta pelo resgate das tradições de vanguarda do Litoral Paulista e nos meios iconoclastas de São Paulo e Rio de Janeiro. Em 2009, lança No Vinho, o Verso, de poesia, com gravuras de Paulo Von Poser e coordenação de Cláudio Vasquez, impressor de Tomie Ohtake.
 
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