Licenciada em Ciências Políticas e Sociais pela PUC de Campinas (SP), com mestrado em Filosofia de Educação pela Unicamp, Campinas (SP), Ana Lúcia Vasconcelos optou pelo jornalismo e teatro como profissões. Trabalhou em vários jornais e revistas em São Paulo, e Campinas, e atuou em várias peças teatrais, não apenas com o grupo que ajudou a criar, o Rotunda, mas em outras companhias, desde meados da década de 1960 até 1973. Traduziu do francês um livro sobre as aparições da Virgem em Medjugorje, Eu Vejo a Virgem-Vicka, que é uma longa entrevista do frei franciscano, falecido, Yanko Bubalo, com a Vicka, uma das cinco videntes que veem a Virgem, publicado pelas Edições Loyola (São Paulo, SP) em 1990, atualmente esgotado. Hoje, escreve dois livros na área de espiritualidade e algumas peças de teatro. Colabora em alguns portais/sites de literatura & arte: Germina, Jornal de Poesia, Cronópios, Agulha, e, atualmente, no seu blogue, Sal da Terra Luz do Mundo.

 

No momento, está atualizando o livro que escreveu sobre a poeta, dramaturga e ficcionista Hilda Hilst (falecida em 2004), de quem foi grande amiga, e gostaria de ver esse livro publicado. Nesta entrevista, ela conta como conheceu a escritora, sua vivência com ela, com Dante Casarini, na época marido de Hilda, a magia da Casa do Sol, a convivência com os amigos que a frequentavam, suas afinidades, as leituras hilstianas, enfim, desvenda alguns dos mistérios do seu processo criativo e a graça desse tempo inesquecível. [Amanda Bigonha Salomão]

 

 

 

 

 

Amanda Bigonha Salomão - Para começar, conte-nos um pouco sobre como se conheceram?

 

Ana Lúcia Vasconcelos – Olha, Amanda, conheci a Hilda Hilst no final de 1967, quando fazia teatro em Campinas e acabara de fundar, juntamente com outras pessoas, o Grupo de Teatro Rotunda. Estávamos montando Electra, de Sófocles, peça em que fiz o papel título e com a qual ganhei o prêmio Revelação de Atriz da Associação de Críticos de Artes do Estado de São Paulo (APCA) em 1968. A diretora do grupo, a Tereza Aguiar, a conhecia e fomos à Casa do Sol, porque pretendíamos montar uma peça dela: O Novo Sistema. Àquela altura, não sabia nada da Hilda, não lera nenhum de seus livros, mesmo sendo uma pessoa interessada em literatura e teatro, além de uma estudiosa de outros temas — filosofia, sociologia, espiritualidade. Mas então esse foi o primeiro contato. Fiquei encantada com o jeito dela falar, o modo como ela chamava o Dante Casarini, um homem lindo, seu marido, na época: aliás, eles se chamavam de neném, nenenzinho. Isso era uma coisa inusitada para mim, esse modo de um casal se tratar, o que já me catapultou para outro mundo. Esse primeiro encontro foi mágico, pois não havia ainda luz elétrica na casa — tudo era iluminado com lampiões. Imagina só: uma casa linda, com móveis belíssimos, objetos maravilhosos, essa pessoa tão especial e lampiões de gás! Era como estar noutro espaço-tempo, termo, aliás, que ela adorava usar e com aquelas sombras projetadas, aqueles papos maravilhosos, e aquela afetividade deles. Foi demais, posso dizer! Depois, estive lá com o grupo para articular a montagem outras vezes e começamos a ensaiar a peça. Tudo aconteceu muito rápido porque em seguida — isso já em 1968 — fui para São Paulo fazer o Curso de Jornalismo idealizado pela Editora Abril para o lançamento da revista Veja. Meses depois, quando o curso acabara e eu já estava trabalhando na Abril Cultural, o Grupo Rotunda decidiu remontar Electra em São Paulo. Fizemos temporada no Teatro Anchieta e daí várias coisas impediram a montagem do O Novo Sistema. O elenco era de Campinas, eu estava trabalhando na Abril e a idéia não se concretizou, o que me leva a te dizer que não fiz, pelo menos até agora, infelizmente, nada do teatro da Hilda, como atriz. Em compensação, fiquei sua amiga e comecei a frequentar sua casa. Aliás, o fato de ser sua amiga já provocou certo frisson em algumas pessoas que conheci nesse curso, como o Caio Fernando Abreu (falecido em 1994) e o Léo Gilson Ribeiro (falecido em 2007), entre outros. E ficamos inseparáveis: eu, o Caio Fernando Abreu e o jornalista Nello Pedra Gândara. Inevitavelmente, o Caio começou a vir para Campinas comigo nos finais de semana e eu o apresentei a Hilda. De início ele se hospedava na minha casa e depois, passou a ficar na Casa do Sol, onde morou um tempo quando saiu da Abril. De 1967 a 1999 frequentei a casa da Hilda, sendo que em algumas oportunidades ficava lá nos finais de semana. Foi um tempo maravilhoso, inesquecível.

 

 

ABS - E como ela costumava ser contigo e os demais amigos? Perguntadeira como a Hillé, personagem de seu livro A Obscena Senhora D? Solitária, como dizia que era nos "longos corredores do colégio"?

 

ALV- Como te disse, a Hilda era muito afetiva e a imagem que tenho dela e o jeito que se comportava comigo e com os amigos era sempre de muito carinho: por exemplo, ela chamava todo mundo de meu amor, meu bem, meu benzinho. Além disso, ela tinha um dom de captar as pessoas, raro, porque ela conseguia penetrar no fundo do outro, e daí parecia que para ela, naquele momento, você era a pessoa mais importante do mundo. Ela conseguia isso e as pessoas ao seu lado se sentiam amadas. Ela também passava uma imagem de felicidade, apesar de escrever aquele texto denso, cheio de indagações metafísicas. Mas tudo, como você sabe e quem conhece sua obra, misturado com muito humor. No mais, sim, ela era espontânea e sempre perguntante mesmo como a senhora D, como a Hillé. A Obscena Senhora D era ela, assim como todos os outros personagens: Kadosh, Matamoros, Agda I e II, Amós, Tadeu, Axelrod, como ela mesma vai dizer em entrevistas dadas a mim e a outros jornalistas ao longo da sua vida. Era também solitária no sentido de precisar da solidão para escrever, mas ela vivia sempre rodeada de pessoas. Nunca ficava sozinha. Vivia com o Dante, os empregados, os amigos e era sempre uma festa aquela casa. Depois, o Mora Fuentes foi morar lá, a Olga Bilenki, o Caio Fernando Abreu, durante um tempo, entre outros, até o final de sua vida. E afinal, havia visitas de amigos poetas, escritores, jornalistas, artistas plásticos. Então a lembrança que tenho e que ficou gravada em mim é que ela estava sempre disponível para o outro. Ela adorava conversar, e queria saber tudo das pessoas. Relacionava-se com gente culta, lógico! Mas também tinha essa afetividade com os empregados, com a governanta que eu conheci e que viveu seus últimos anos lá na Casa do Sol. Ou seja, tudo para ela era importante — as pessoas, os bichos, os cachorros que adorava, os pássaros, as plantas, os insetos, que ela ficava observando como conta, desde que era pequena. Era todo o tempo perguntante sim, mas lógico que ela também escutava, sabia ouvir o outro maravilhosamente. Aliás, as tardes, noites, na Casa do Sol eram inesquecíveis. Havia um clima mágico que permeava tudo e a gente ficava como em estado de graça, porque eram pessoas que produziam em suas áreas — escritores, jornalistas, artistas plásticos, mas com uma coisa em comum: nós amávamos o que ela escrevia. Nós que nos amávamos tanto (risos). E era assim, difícil de explicar... Só experimentando! Claro que havia também aquele temperamento dela que não era fácil, não vou omitir isso, mas ela era mesmo intensa, passional. Você acha que uma pessoa que produziu aquela obra poderia ser diferente? E isso, evidentemente, ocasionou em alguns momentos grandes, homéricas brigas com amigos: houve alguns rompimentos, depois, reatamentos. Outras vezes, rompimentos definitivos e isso por acaso não acontece nas melhores famílias!? Ali na Casa do Sol vivia-se uma espécie de comunidade e eu te digo que não conseguiria administrar aquilo. Mas nessas ocasiões eu me afastava discretamente ou mesmo estando perto, guardava certa distância, talvez o famoso "distanciamento brechtiano"; ficava fora, enfim, do que eu chamava de "turbilhão de paixões". Porque em seguida tudo voltava ao lugar e então eu achava mais sensato não me envolver, já que tinha minha própria vida para administrar e também pelo meu temperamento, acredito. Mas isso foi muito salutar para mim depois da sua morte: continuei amiga de todos. Não rompi com ninguém. O J. Toledo, escritor e artista plástico já falecido, também tinha um temperamento conciliador, tanto que dias depois da morte dela ele me ligou para dizer que ia continuar amigo de algumas pessoas que tinham rompido entre si e eu disse que também ia.

 

 

ABS -  A falta de público foi um fato marcante na vida de Hilda, e ela, em certo momento chega a desacreditar da sua literatura, já que não conseguiu atingir os ouvidos das pessoas, e passa a escrever textos escrachados. Como se deu isso? E como ela reagia a todo isso?

 

ANV - Ela reagia... como direi? Bem, quem gosta de escrever e não quer ser compreendida? Ela ficava inconformada, dizia que gostaria de ser mais lida, que escrevia em português, que não era um palimpsesto mesopotâmico como disse um dia, acerca dos seus textos, o crítico e amigo Leo Gilson Ribeiro. Uma vez, cheguei à sua casa e ela estava no escritório, chorando. Perguntei "Hilda. o que aconteceu?". Ela: "Eu não sou lida!". Quer dizer, ela reagia mal, ficava muito triste, gostaria de ter sido mais aceita e isso ocorreu até bem perto da morte. Mas houve aquele momento em que ela, acredito, não suportou mais, e resolveu apelar. E foi aquela fase dos livros ditos eróticos ou pornográficos. Quer dizer, ela resolveu escrachar. Mas aquilo foi muito mais uma reação de uma mulher, escritora genial, para os críticos, sei lá, que — à exceção de alguns poucos como o Anatol Rosenfeld, a Nelly Novaes Coelho, o Leo Gilson Ribeiro, o editor Massao Ohno que admiravam a sua obra — a ignoravam solenemente. E para o público em geral, que gosta de coisas assim mais leves, mais digeríveis. Então, acredito que tenha sido assim, ela deve ter pensado: é isso que vocês querem? Então aqui está! Só que, quando escreveu O Caderno Rosa de Lori Lamby, nós ficamos escandalizados. Ela costumava ler trechos de livros, enquanto estava escrevendo e eu estava lá quando ela leu um trecho do Caderno Rosa — eu, o Leo Gilson, o Almeida Prado e outros amigos. E ficamos mudos, quando ela terminou. Ficamos pasmos, sem palavras. Eu fiquei abaladíssima, achei que seria o fim dela como escritora genial, mas não foi. E o Leo rompeu amizade com ela, depois retomou, lógico. Enfim foi uma catástrofe relativa, por que ao contrário do que pensávamos foi a partir desses textos que ela começou a ser mais conhecida. E daí que escreveu outros dois: Contos D'Escárnio/ Textos Grotescos e Cartas de um Sedutor. Fui ao lançamento destes como, aliás, fui a muitos outros lançamentos de livros seus. Mas depois, lendo mais distanciada, achei a trilogia genial como tudo dela, porque afinal eram eróticos, mas cheios de cultura, com aquela mesma linguagem inovadora e comecei a rir muito lendo os livros. Aliás, gargalho lendo os livros da Hilda, mesmo os outros, porque como ela mesma dizia, colocava uma dose de humor em tudo para "a corda não ficar muito esticada e dar um tempo para o leitor respirar", já que seu texto era todo o tempo muito denso, muito cheio de perguntas do mais profundo do existir... Da morte, do amor... E "deste absurdo que é a vida". Naquela época, ela era lida sim por iniciados, porque sua obra não pode ser considerada de fácil compreensão. Hoje tudo mudou e ela é lida por muitos, mas isso já prevíamos.

 

 

Hilda Hilst em 1999

 

 

ABS - Você compararia a literatura de Hilda Hilst com a de algum outro escritor?

 

ALV - Ainda que possa ver algumas influências de autores na obra da Hilda, não me considero competente para responder essa pergunta. Digamos que ela tenha influência de Virginia Woolf e Joyce, no chamado fluxo de consciência; de Guimarães Rosa na inovação da linguagem e na invenção de palavras, mas não saberia comparar. Acredito que na literatura da Hilda você veja explicitamente os autores citados. Ela tem uma linguagem tão própria, tão personalizada, que acredito que ela, sim, possa ter sido a iniciadora de uma nova corrente, novo movimento. Aliás, nem quero usar essas palavras, mas digamos que ela já tem discípulos, poetas e escritores, que se miram nela para criar e isso vejo confirmado em ensaio da crítica literária Nelly Novaes Coelho em seu Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras: 1711-2001 (São Paulo: Escrituras, 2002, p. 264-267). Ela dizia em 2002, ano que a Hilda ainda estava aqui entre nós: "Escritora da linhagem dos fundadores — Hilda Hilst (tal como Guimarães Rosa, Clarice Lispector, João Cabral, e outros) vem construindo uma obra, cuja matéria-prima é retirada deste nosso mundo em caos, descentrado (desde que perdeu seu centro sagrado), mundo em acelerado processo de mutação e incapaz de responder às interrogações limites da existência humana: 'Quem somos? O que fazemos aqui?'... Vislumbrando, afinal, o eu obscuro/luminoso que é ela a própria mulher-poeta, sente que a resposta para os demais enigmas da vida virá a partir da resposta que esse eu radical lhe der, desde que atento ao mundo em que lhe coube viver e reconstruir".

 

 

ABS - Algumas pessoas comparam-na com Rainer Maria Rilke, outras não. Poderia falar sobre isso? Acha que há ligação com os escritores do fluxo de consciência como James Joyce e Virginia Woolf? Acha que ela negou toda e qualquer escola literária?

 

ALV - Justamente a Nelly Novaes Coelho via na poesia da Hilda influências de Rilke e em ensaio sobre a obra dela publicado em Poesia (1959-1979), da Editora Quiron (SP/Brasília, 1980), vai dizer que Hilda havia começado a escrever num momento em que havia no Brasil um clima estetizante, criado pela geração de 45, de quem se exigia segundo ela "cantar o novo" e que mesclava as elegias de Rilke, as metáforas de Lorca, o verbo de lado de Valery; Laforgue, Apollinaire, a moda de aprender inglês e as lições em prosa e verso de T. S. Eliot, Yeats, Pound, Spencer; o descobrimento inesperado de Portugal via Fernando Pessoa e seus heterônimos, o verso grave de Neruda, as experiências com a métrica e rima, a volta do soneto, novas buscas, pesquisas. E, sobretudo, a necessidade de cantar. E, então, ela conclui que seriam esses alguns pontos de identificação com a poesia da época que facilmente podem ser rastreados em Roteiro de Silêncio, da Hilda. "Canto que se quer consciência e resistência em meio ao caos: a resistência de Orfeu (poesia) devido à existência impositiva de Eros (Amor)". E cita dois versos do Roteiro: "Amor é calar a trama / É inventar. É magia". É, portanto, nesse clima que a Hilda surge no cenário poético brasileiro e começa a se procurar como poeta. Daí a Nelly Novaes Coelho acreditar nessas influências todas, mas a Hilda mesma, em várias oportunidades, vai dizer não ter tido afinidade alguma com o movimento modernista nem com a geração de 45 e, menos ainda, com o falso populismo poético, muito menos, com a onda concretista e da práxis, que vigoram no Brasil na década de 60. Já o critico literário Leo Gilson Ribeiro, também falecido, vai dizer que não vê esta influência de Rilke — ao contrário, acredita mais numa proximidade com Joyce, com Virginia Woolf, que ele considera, aliás, a autora que antes de Joyce teria sido a verdadeira inovadora da linguagem e da introdução do fluxo de consciência. Leo vai dizer: sua obra inovadora não foi à época compreendida pelos leitores como ela gostaria, "porque a Hilda retratou em português um Malone agonizante no atoleiro da dúvida e das dimensões diminutas de quem não tem antenas para captar o que há ou não há depois da Morte. E porque ela escreveu em português, o equivalente a um Finnegan's Wake, de Joyce, ou seja: escreveu um absurdo palimpsesto mesopotâmico. E poucos terão a imaginação criadora, a profundeza de propósitos e o mesmo afã místico que ela para embrenhar-se nessa selva obscura da alma e do humano estar no mundo". Leo vai escrever ainda sobre isso, mas especificamente sobre o livro Poesia (1959-1967), que reunia toda a obra poética da escritora, até aquela data, ("Caderno de Programas e Leituras" do Jornal da Tarde, de 14/02/1981): que a Hilda Hilst mantém a singularidade de se ter mantido incólume a todos os modismos que marcaram a nossa poesia a partir de 1922. "Sua poesia, ao contrário da sua prosa, inteiriça, surgida íntegra como de um só jato, mostra cesuras, fragmentações, um aprendizado enfim ao qual não escaparam os supremos clássicos da literatura". Enfim, ele não acreditava como Nelly Novaes Coelho que a poesia da Hilda tivesse qualquer parentesco com Rilke e sua invocação do Anjo, ou fosse a encarnação de uma poesia feminina no sentido feminista, emancipatório. Para ele Hilda Hilst é demasiado ampla, rica, complexa, e atemporal, para ser incluída em qualquer rótulo, por mais abrangente que seja. Ele acredita que a poesia da Hilda "reflete este contágio do poeta para o leitor que se sente conturbado espiritualmente pelo incêndio de palavras, imagens e ideias que se comunicam até ele, de forma indelével como uma cauterização a fogo". Vai dizer que a poesia recatada brasileira não registra tal veemência erótica nem nos poemas de Gilka Machado, de Vinicius de Moraes e que o próprio Carlos Drummond de Andrade faz alusões sutilíssimas à tirania do amor. "Hilda Hilst não: toma como emblema nada menos que um dos três ou quatro mais perfeitos poetas da língua inglesa, John Donne do século XVII para negar através do frêmito da palavra e da carne mortal a preponderância do tempo ou da morte sobre o ser humano. Toda hic et nunc, o aqui e agora ambicionado pelos grandes cantores do amor em Roma, como Catulo, ela pode dizer claramente" (in Jubilo Memória Noviciado da Paixão. São Paulo: Editora Globo, 2001, p. 56).

 

"Soergo meu passado e meu futuro

E digo à boca do Tempo que os devore

E degustando o êxito do Agora

A cada instante, me vejo renascendo

E no teu rosto, Túlio faz-se um Tempo

Imperecível, justo

Igual à hora primeira, nova, hora-menina

Quando se morde o fruto. Faz-se o Presente.

Translúcidas me vêem na tua vida..."

 

Leo Gilson Ribeiro acreditava que a grande poesia da Hilda reflete toda a problemática da autora frente ao pessimismo que coexiste paradoxalmente com uma esperança de redenção do ser humano, ameaçado por bombas de nêutron e da insânia dos políticos dirigentes da maioria das nações do globo. E o Alcir Pécora, professor de literatura da Unicamp, que prefaciou suas obras completas para a Editora Globo vai escrever: "Hilda desde os primórdios tem como uma das marcas notáveis de sua radicalidade o domínio técnico da língua e o predomínio elocutivo sobre o narrativo e que isto se traduz admiravelmente na maneira vertiginosa com que trabalha o chamado 'fluxo de consciência', seu principal recurso discursivo nos cinco textos que constituem este livro". Não se trata, contudo, de um "fluxo de consciência" usual, ele diz, "em que a narração ou o enunciado se apresenta como realista de pensamentos do narrador". O "fluxo em Hilda é surpreendentemente dialógico, ou mesmo teatral: o que dispõe como pensamentos do narrador não são discursos encaminhados como uma consciência solitária supostamente em ato ou em formação, mas como fragmentos descaradamente textuais, disseminados alternadamente entre diferentes personagens que irrompem, proliferam e disputam lugares incertos, instáveis na cadeia discursiva. Daí a impressão de que aquilo que no narrador de Hilda pensa está atuando em cena aberta (e até está atuando cara a cara com uma platéia tendenciosa, hostil e até mesmo estúpida)". Eu acho, baseada em leituras desses críticos todos, e na leitura da obra da Hilda, que ela foi influenciada por vários autores, especialmente, esses inovadores da linguagem como o nosso Guimarães Rosa com quem, aliás, ela é comparada entre os brasileiros. Comparada no sentido de serem os dois, talvez, os maiores inovadores da linguagem da nossa literatura em todos os tempos. De qualquer forma, acho a Hilda única, absurdamente personalizada, e então fica difícil dizer com quem ela se compara. Acho sua obra incomparável.

 

 

Hilda Hilst, Ana Lúcia Vasconcelos, Olga Bilenky e Maria Luiza Barreto,

no jardim da Casa do Sol, 1975, por José Luis Mora Fuentes

 

 

ABS -  Que livro da escritora mais te toca? Conte-nos um pouco sobre ele e o porquê da escolha.

 

ALV - Difícil responder essa pergunta, porque gosto de todos. Mas amo o Qadós que agora é Kadosh, que, aliás, adaptei para o teatro e que está inédito. Adoro também o Tu não te moves de ti, que pretendo também adaptar para o teatro, Da Morte, Odes Mínimas; "O Grande Pequeno Jozú", Rútilo Nada, Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão; Amavisse.  Bom, acho que gosto de todos — Cantares de perda e predileção; Sobre a Tua Grande Face, Cantares do Sem Nome e de Partidas, A Obscena Senhora D, entre outros. Por quê? Porque amo a linguagem da Hilda, o jeito como ela escreve nesse fluxo constante, ininterrupto, nessa vertiginosa velocidade de pensamento e fico impressionada com sua capacidade de captar o ser humano na sua mais abissal profundeza. Por exemplo, amo o personagem Tadeu de Tu não te moves de Ti, Matamoros, acho um deslumbramento de beleza trágica, Axelrod uma maravilha de narrativa com toques de humor dentro daquela estória de um professor de história, viajando de trem e encontrando um jovem que o ajuda, se interessa por ele e com quem tem diálogos cheios de humor, apesar da tragicidade da temática da novela. Acho "O Grande Pequeno Jozú" de uma graça, uma ingenuidade tocante e Rútilo Nada? Uma obra-prima. E A Obscena Senhora D? Jesus, que deslumbramento! E aquela cena — sim eu falo cena, porque quando leio a Hilda, vejo teatro puro na sua prosa da Senhora D, a Hillé conversando com a porca, que ela chama de senhora P? Vejam lá, leiam e reflitam se não é a estória de uma mulher que sofre de solidão, de abandono, que se solidariza com o ferimento no lombo de uma porca. Não seria seu próprio ferimento? Vejamos um trecho: "Tento sair da minha pulverescência e olho longamente a senhora P. Me olha. É parda, soturna, medrosa, no lombo uma lastimadura, um rombo sanguinolento. Hoje pude me aproximar muito lenta, e como diria o sóbrio: pensei-lhe os ferimentos. Roxo-encarnado sem vivez esse rombo me lembra minha própria ferida, espessa funda ferida da vida. Porque não me tocaste, Senhor, e nem me pensaste sóbrio os ferimentos, porque nem o calor da ponta dos teus dedos foi sentido por mim, porque mergulho num grosso emaranhado de solidões e misérias e te buscando emerjo de mim mesma e as mãos cheias de lodo  e de poeira, este meu roxo-encarnado sem vivez reside em mim há séculos, lapidescente na superfície, mas fervilhante e rubro logo abaixo, eterno em dor com tua esquivez. Rimas pesadas ciciosas, sem intenção, e os ungüentos no lombo da senhora P, roçadas de focinho, fungadas mornas no meu braço, os olhos num aquoso de incompreensão e de doçura, um sem-Deus sem- Deus hifenizado sempre, sem-Deus, sem-Deus. Conheces o canto do pássaro sem-fim, senhora P? Sem-fim sem-fim, sem-fim nosso existir  sem Deus. E me vem que só posso entender a senhora P, sendo-a. Me vem também, Senhor, que de um certo modo, não sei como, me vem que muito desejas ser Hillé, um atormentado ser humano. E SENTIR. Ainda que seja o aguilhão de um roxo-encarnado aparentemente sem vivez". Bom, difícil falar do que gosto mais. Na verdade, gosto da obra toda dela com especial preferência por alguns.

 

 

ABS -  Você já foi uma grande atriz, Ana! Nunca pensou em encenar algo do universo hilstiano?

 

ALV - Já pensei, lógico, e o primeiro deles seria Kadosh, que acho um personagem deslumbrante como ela diria, e fazendo o próprio, o que provocaria, com certez,a mais dificuldade ainda de compreensão, porque Kadosh é um homem. Daí que sendo feito por uma mulher, imagino que ficaria mais impressionante ainda, no sentido da compreensibilidade do texto, você entende!? Mas que seria uma licença poética... É perfeitamente cabível, já que todos os personagens masculinos da Hilda é sempre ela mesma, como me disse. E porque lá pelas tantas o Deus com quem o Kadosh dialoga diz: "Kadosh-homem-mulher-cadela-maldito", acredito que ele, o personagem, seja um símbolo do ser humano. Nesse sentido, acho que daria para fazer isso, sem problemas. Mas não sei se isso ainda vai acontecer. Acho que não dá mais. Penso que não conseguiria retomar a rotina de fazer teatro. Mas não sei... Quem sabe!? Porque, na verdade, é a ficção da Hilda que é teatral e deixa os diretores loucos e atores absolutamente fascinados. Para quem é ator é um prato cheio. Penso ainda fazer a mulher do Tadeu, em Tadeu, a Matamoros, e montar, digamos, o Axelrod. Amo Tu Não te Moves de Ti e preciso, urgentemente, começar a trabalhar nele para o teatro. Quem sabe se eu conseguisse voltar para o teatro não desse um up na minha vida!?

 

 

ABS -  O que a grande poeta, dramaturga e ficcionista costumava ler? Colecionava ágatas e tinha muitos cães, certo? O que mais gostava, além disso?

 

ALV - A Hilda lia, que eu saiba, e me lembre, além dos grandes poetas, grandes escritores, os clássicos, digamos assim, da literatura, os grandes místicos, física, filosofia, história, política, economia política. Ela me disse em entrevista: "Eu leio o tempo todo: ensaios de política, de filosofia — leio e releio autores que falam sobre a condição humana como Otto Ranck, Ernest Becker, Bertrand Russel, Ezra Pound, Elliot, homens de uma sabedoria impressionante, 'enfim estes escritores que tratam da dicotomia da razão com as emoções', como dizia, e vou anotando...". Enfim, vou tentar uma lista: Fernando Pessoa, Jorge de Lima, os clássicos Rilke, Yeats, Chaucer, que até cita em Kadosh. Lia, ainda, autores como Albert Camus, Nikos Kazantzakis, Päar Lagerkvist, que segundo ela, tinham uma narrativa arrumada, que ela não conseguia e, por isso mesmo, os admirava muito e que tratavam como ela dos temas mais prementes da existência humana: o amor, a morte, Deus, a imortalidade da alma. Ela amava também São João da Cruz, Santa Tereza D'Ávila, Sóror Juana Inês de la Cruz, enfim, lia esses autores santos e o que mais? Ela lia oito horas por dia — adorava Kafka e me disse numa entrevista, numa das várias que fiz com ela, que estava lendo a Anais Nïn, essa autora francesa que foi amiga de homens incríveis como Henry Miller, Otto Ranck. "Estou lendo o seu Diário (1934-1937). Ela é muito delicada, ao mesmo tempo profunda, especial". E quem mais: Sylvia Plath, Federico García Lorca, Alexander Solzhenitsyn, a quem dedica Poemas aos Homens de Nosso Tempo, Mário Faustino, Lygia Fagundes Telles, que foi amiga do coração, Caio Fernando Abreu, enfim, tantos outros, poetas amigos — Lupe Cotrim, que morreu muito jovem. Basta olhar as dedicatórias dos seus livros para se ter uma ideia: Vladimir Jankelevich; o poeta Carlos Maria de Araújo, a quem ele dedica Iniciação do Poeta; Ricardo Guilherme Dicke, a quem dedica Sobre a Tua Grande Face; Sartre; Simone de Beauvoir; Jorge Luis Borges; George Bataille; entre dezenas de outros. Mas eu não saberia dizer todos, porque ela lia muitíssimo. Fora isso, ela amava os cães, certo? Tinha dezenas, alguns que ficavam dentro de casa e outros que ficavam no canil. E também tinha um gosto maravilhoso, e se rodeava de quadros lindos, esculturas de madeira do Dante, objetos de ágata, de prata, lindos. Enfim, sua casa era especial — tinha a marca do seu gosto requintado e da sua presença única.

 

 

ABS -  Como ela se posicionava politicamente?

 

ALV – Olha, a Hilda tinha uma frase famosa que era a seguinte: "Esquerda, direita, tudo a mesma esterqueira". Ou seja, para ela a política era o que coloca na boca de Kadosh a certa altura: "Política é dar vida a todos". Então, o que ela gostaria é que houvesse justiça social, mas nunca se pronunciou por esse ou aquele partido. Ela via tudo de maneira mais abrangente e ficava sempre muito emocionada com a injustiça em todos os níveis, a ponto de escrever uma peça, As Aves da Noite, sobre o martírio de Maximiliano Kolbe, padre polonês, que morreu de fome numa cela em Auchwitz e hoje é santo da Igreja Católica. Ela acreditava e vai dizer isso em entrevista ao Leo Gilson Ribeiro ("Cadernos de Sábado", do Jornal da Tarde, de 04/03/1989), aliás, cito também no meu livro inédito sobre ela, "que os homens deveriam pensar mais nos problemas fundamentais, que os grandes cientistas como Heisenberg levantam como a ciência dos limites, o caráter incognoscível, imprevisível dos átomos e seu comportamento". "Eu acho", dizia, "que temos que refletir sobre os aspectos transcendentais da Terra, da natureza vertendo sangue, destruída, violada, mutilada pela ignorância e pela ganância imediatista do homem, estudar o problema do ar que respiramos, enfim as guerras, os arsenais atômicos". Pretendia ainda rever esse conceito que nunca se questiona, só se aceita sem discutir, que é o conceito da obscenidade. E falava que "É preciso pensar que a verdadeira obscenidade, criminosa é o comportamento do corpus político do Brasil e de outras nações inteiras, dedicadas à devastação a qualquer preço, à fraude, à morte do outro em favor do conforto e da indiferença de quem polui o ambiente e as almas. De maneira intuitiva essas foram as perguntas que me obcecavam e para as quais eu buscava inutilmente uma resposta junto com o leitor". Penso que cabe aqui uma citação que ilustra esta postura dela em relação à política que está em Kadosh: "... e uma noite, lendo sobre as estruturas políticas, o corno das ditaduras no ventre dos humildes, a anatomia intrincada dos homens do poder pensei que uma palavra devia chegar aos homens, que era inútil ficar olhando para cima e para baixo Te buscando e então sentei-me e escrevi durante dez noites a palavra amor, cem mil páginas, cem mil, coloquei o calhamaço num caixote com rodinhas postei-me numa esquina e a todo aquele que passava eu entregava uma folha e dizia Amor Amém. Cão de Pedra, como a cidade riu. As mulheres desabotoavam a blusa à minha frente e gritavam: Vem, Amor, Kadosh. Os homens cuspiam na minha cara: vai arriando as calças amor amor. Corri, quebrei os tornozelos, vivi noventa dias no caixote com rodinhas, o traseiro em brasa sobre o calhamaço amor amor. Que nojo. Que vergonha". Não sei se respondi à pergunta, mas seria mais ou menos isso que você, lendo sua obra, pode perceber sobre sua concepção de política. E como pode perceber o que ela disse lá longe é tudo que estamos vivendo: esse desrespeito pela natureza, a corrupção vergonhosa dos políticos, a injustiça social crescente e obscena! Sim, concordo com ela: absolutamente obscena e para a qual precisamos tomar providências urgentes. Acredito que ela tenha oferecido amor aos homens e eles lhe deram como no poema de Fernando Pessoa: "uma porção de dobrada à moda do Porto, fria"!

 

 

ABS - Hilda sempre se questionou muito sobre a morte e chegou até a escrever o livro Da Morte, Odes Mínimas. Dizia que quando criança não aceitava o fato de algo cheio de vida simplesmente evaporar, sumir. Ela falava muito sobre a morte nos tempos em que a conheceu? Era algo que a abalava visivelmente?

 

ALV – É, ela dizia isso, que não se conformava que as coisas acabassem, envelhecessem e morressem e sempre foi preocupada com a finitude das coisas. Que seja um inseto, um bicho, uma planta: estar ali e, de repente, não estar mais. Ela, na verdade, não queria aceitar esse fato, por isso justamente acredito, escrevia e falava nos seus textos todo o tempo na morte, a ponto de escrever um livro de poemas com esse tema. Mas não era obcecada na vida real com o tema, não. Falava muito do pai, da mãe, da sua vida, da paixão que tinha pelo pai, do jeito que amava sua mãe e da falta que sentia deles durante a infância. E eu acrescentaria da falta que sentia deles durante a sua vida. Lendo sua obra, podemos sentir essa falta o todo o tempo. Acho, vendo agora de fora, que era certa intuição — porque sua mãe morreu precocemente, e ela, também; e o Dante, falando sobre isso, em entrevista para o meu livro, observou que era algo genético, mesmo porque como a mãe, a Hilda também teve um envelhecimento rápido e brutal. Mas ela sempre foi preocupada com a morte no sentido de querer dizer aos outros que ela não existia: que o espírito é imortal e que por isso as pessoas têm que repensar suas vidas.

 

 

Casa do Sol, Campinas (SP), 2005, por Cristiane Grando

 

 

 ABS - Bem, o que mais gostaria de dizer sobre sua grande amiga?

 

ALV - Que foi um privilégio tê-la conhecido e que aquela vivência com ela e com aqueles amigos nunca mais se repetirá... Foi único e maravilhoso.... Mas é bom que se diga que tudo era muito natural... Ninguém ficava pensando: nossa, que coisa incrível, eu sou amiga de um gênio da literatura brasileira (risos). Imagina! Foi, na verdade, uma junção de pessoas, que acredito ser uma obra divina, já que não acredito no acaso. Mas ninguém ficava anotando as conversas na varanda, nas noites estreladas, ou nas tardes ensolaradas, como queriam algumas meninas que me entrevistaram para os seus TCCs. Elas me diziam: o que vocês conversavam na varanda? Imagina, quisera lembrar para contar. No mais, foi isso, confesso para você que depois que me afastei da Casa do Sol — porque morei um tempo no Rio, e mesmo de volta pra São Paulo, já comecei a me afastar de algumas coisas, e foi justamente quando voltei para a igreja — nunca mais tive uma turma tão maravilhosa. Tive outros amigos, mas aqueles momentos foram únicos. Agora uma coisa, como me disse um dia o José Luis Mora Fuentes, falecido recentemente (no dia 13 de junho de 2009): as pessoas que gostam dos livros da Hilda, quando se encontram, já viram, na mesma hora, amigos de infância, dadas as afinidades que reconhecemos uns nos outros. Veja o nosso caso: nos conhecemos no Orkut, local que sempre relutei em entrar, mesmo sabendo que havia lá comunidades sobre a Hilda — tinha horror daquilo. Mas pelo fato de você gostar da Hilda, parece que somos amigas de longa data... E foi assim com grandes amigos e amigas que encontrei na internet depois da morte dela. Por eles amarem sua poesia e sua prosa, ficamos amigos imediatamente. Ou seja, acredito que ela, de onde estiver, continua sendo catalisadora e amiga dos amigos que gostam do que ela escreveu e que é maravilhoso. Quero dizer: sua obra está sendo cada vez mais descoberta e olha só — pelos jovens. E isso me remete à minha idade quando a conheci: gloriosos 23 anos... E Hilda, parece-me, é tão inovadora, que atinge também aos singularmente jovens. 

 

 

 

outubro, 2009
 
 
 
 
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Amanda Bigonha Salomão (Viçosa/MG). Poeta, artista plástica e fotógrafa. Estudante de letras na Universidade Federal de Viçosa (UFV).