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Rodrigo de Souza Leão – José Maria, qual a importância da cor na sua pintura?

 

José Maria Dias da Cruz - Cézanne diz que na natureza tudo está colorido. A pintura e a natureza, e ainda como diz o mestre de Aix, a minha própria natureza e a natureza em si, andam de mãos dadas. Portanto, como um pintor cezanneano que sou, não posso deixar de dar à cor um lugar principalíssimo no regime de nossos espíritos.

 

 

RL - Fale sobre sua teoria: A Geometria das Cores.

 

JM - A forma é mais racional que a cor, esta não permite ser racionalizada. Mas possui uma lógica que pode ser percebida pelo pensamento plástico.

 

A geometria sempre andou junto com a pintura. A cor permitiu-me criar conceitos básicos ou elementares, para construir outros objetos e espaços plásticos mais complexos, e o mais importante deles foi um ponto. Cézanne disse que somente um cinza reina na natureza e alcançá-lo é de uma dificuldade espantosa. Estudando a obra desse mestre, concluí que esse cinza, o qual denominei como sempiterno, é um ponto potencialmente ativo. É um pré ou pós-fenômeno, contém todas as cores de um colorido. Isso, para mim, é a base de uma geometria das cores, com seus respectivos lugares (topos), temporalidades, intervalos, etc. Mas Cézanne afirmou que a linha não existe em absoluto na natureza. Isso me levou a estudar o serpenteamento vinciano. Leonardo diz que devemos observar com muito cuidado os limites de cada objeto e o modo como serpenteiam. Substituí a linha por esse serpenteamento que pode vir a ser volumétrico. Observei mais. Afirmei que a cor abstrata é substantiva, uma ideia, subsiste por si só, e que a cor concreta é adjetiva, sua condição é ser no colorido. Por essa observação, entendi Cézanne quando ele se refere à natureza em si e à sua própria (ou a minha). Entendi que são outros níveis de realidade e percepção da natureza, e não uma só, com valor absoluto.   

 

O que não posso admitir é quando vejo o que a maioria dos historiadores de arte fala da geometria em Cézanne. Que um rosto é oval e os braços cilíndricos, por exemplo. Como o próprio Argan, quando diz que para Cézanne uma laranja era simultaneamente uma laranja e uma esfera, pois construía o espaço considerando as formas geométricas históricas. É de uma  simplificação irritante. Basta ver e refletir. Cézanne modula pela cor e nunca trata uma laranja encerrando-a em uma esfera. Os limites dos corpos serpenteiam, e nesse serpenteamento o espaço plástico, que para o mestre em um quadro era sempre uma fração do espaço, anima-se. É-nos interditado um espaço completo, que contenha todos os coloridos. Esse espaço fracionado não morre por uma segunda vez, como nos advertia Leonardo [da Vinci]. Diz ele que quando transpomos para uma superfície do suporte uma natureza viva, a matamos uma primeira vez, pois ela perde sua dinâmica. Cabe ao pintor, com sua sabedoria, evitar que morra por uma segunda vez. E aqui tento substituir uma linha com valor absoluto, por uma outra, mas uma dinâmica, que possui uma potência e é por esta que tanto as figuras como o espaço se animam.

 

 

RL - O que é pintar com os olhos e qual a diferença entre pintar com os olhos e com a palavra?

 

JM - Pintar usando o cérebro. Pensando plasticamente. Como nada existe fora de nossos cérebros, escrevo e desenho diagramas ou ilustro esses escritos até mesmo com obras de outros artistas.

 

 

 

RL - Qual é seu grau de parentesco com Marques Rebelo? Conte-nos casos, histórias e fatos que o fazem ser mais que um parente seu.

 

JM - Meu pai ensinou-me a ser generoso. Seu nome: Eddy Dias da Cruz. Marques Rebelo era seu pseudônimo. Ajudou muitos artistas. Pancetti e Milton Dacosta apareciam vez ou outra lá em casa, exatamente na hora do jantar. Comiam, conversavam e, quando saíam, encontravam uns trocadinhos em seus respectivos bolsos dos paletós. Foi o Milton Dacosta que me contou. Ajudou escritores. Brigou com Deus e o mundo para que o Guimarães Rosa fosse editado. Alguns, pobres, hospedava-os lá em casa. Quando ele morreu, um pobre diabo apropriou-se de documentos e impediu que fosse reeditado. Mesmo assim, à custa de bons advogados e longas disputas judiciais, consegui que alguma coisa fosse editada. E quando minha madrasta morreu esse psicopata apropriou-se de todos os bens da família, inclusive de bens imóveis, além do arquivo de meu pai. Além do mais, transformou um livro em um outro escrito a quatro mãos. Claro, procurei a Justiça, que nesse nosso pobre país, infelizmente, nem sempre é tão justa assim com os humilhados e ofendidos. Deixou-me muito pobre. Felizmente, o psicopata morreu e agora a Editora José Olympio começou a editar toda a obra de meu pai. Um título já está nas livrarias: A Estrela Sobe.

 

 

RL - Quem é o pintor brasileiro?

 

JM - Vamos falar dos contemporâneos e não singularizar? Eu me considero. E outros. Citarei apenas alguns. Milton Machado, que não usa tintas; BobN, que toma atitudes; Patrícia Gouvêa, que é fotógrafa; Cristina Pape; Luiz Ernesto; Júlia, mais escultora que pintora e Joana Ceskö, fotógrafa, filhas do grande músico Luiz Carlos Ceskö. Que usam tintas? João Magalhães; uma que ninguém, conhece: Juliana Scorza Cerávalo e não sei por quanto tempo o será; Laura Villarosa, esta sabe muito do cinza sempiterno; Kaiie van Scherpenberg; Marco Veloso, que mais desenha e pouquíssimos outros. Mas vejo, felizmente, muita gente com um bom futuro pela frente.

 

 

RL - Com quantas cores se faz um quadro?

 

JM - Com todas que nos permitem a manifestação de um cinza sempiterno e algumas poucas abstratas substantivas. Isso tem me levado a perguntas difíceis de ser respondidas, como por exemplo: o que é um quadro hoje? O que é arte hoje? A velocidade do mundo contemporâneo é espantosa.

 

 

RL - Qual é o tipo de pintura mais valorizada hoje em dia?

 

JM - A palavra "valorizada" pode nos levar a pensar apenas no mercado e tenho minhas dúvidas em relação à atuação dos galeristas. Surgem de repente, com o aparecimento do espaço cibernético, uma série de questões, uma delas a que acima me referi: o que é um quadro hoje? Como aferir o valor de uma pintura, não mais restrita ao espaço confinado das galerias? A pintura pode continuar como peça única e assim vai ocupar o espaço mercadológico, com todos os riscos que a vida contemporânea nos impõe. A que pode servir a pintura nesse espaço? Mas um quadro pode também se retirar desse espaço a atuar nesse outro, o cibernético, que nos desafia.

 

 

RL - Quais são suas influências literárias e nas artes plásticas?

 

JM - Vou citar um único, o principal. João Cabral de Melo Neto. Dele li muito cedo o livro Miró/João Cabral: da Tela ao Texto. E foi ele que fez minha apresentação, quando realizei minha primeira individual, em 1975, e eu já tinha meus 40 anos. Essa apresentação foi mais que isso. Nela o João Cabral escreveu algo muito importante. Disse que preferia uma obra feita de dentro para fora, e descartou o discurso sangrado, produto de uma emoção epidérmica. Claro, há outras influências: Baudelaire, Michael Palmer, Armando Freitas Filho, Júlio Castañon Guimarães, Ivan Junqueira, Elaine Pauvolid, Ângela Montez, Francisco Marcelo Cabral, por exemplo.

 

Como pintor, um livro me impressionou muito: O Drama de Jean Barrois, de Roger Martin du Gard. Mas na minha cabeceira permanecem O Tratado da Pintura, de Leonardo da Vinci e os Pensamentos, de Braque.

 

 

RL - Como você pode analisar Walter Benjamin quando este dizia que o cinema é a maior arte?

 

JM - Quando se começou por aqui a se discutir mais as ideias de Walter Benjamin, li algumas resenhas e citações sobre o pensamento dele e não me interessei. Afastavam-se do que vinha pensando. Além do mais me pareceu muito unidisciplinar, e eu já vagamente pensava nas possibilidades de desdobramento de uma mesma realidade. Nada que se referisse à reprodutibilidade. Nesta época já se discutia as questões da mutli e pluridisciplinaridade.

 

Aqui abro um parêntese. Em 1956, parti para estudar em Paris, bem jovem ainda. Voltei em 58 e não consegui ficar no Rio, fui morar em Cataguases, uma pequena cidade no interior de Minas. Voltei em 1961, mas pouco pintava. Em 64, abandonei de vez os pincéis. Vegetei, ou ao menos aparentemente. De repente, em 1967, apareceu o primeiro Formulário. Em 68, mostrei-o a um crítico que o depreciou. Fiquei desanimando e novamente abandonei a pintura. Em 1973, mais uma vez, recomecei a pintar. E a questão dos fracionamentos de uma única realidade se adensou. E novamente os críticos me atacaram, com mais veemência, mas não desisti. Na década de 80 o artista plástico Gonçalo Ivo tentou me inserir sem sucesso no mercado. No início da década de noventa um outro artista, BobN, redescobriu os Formulários e me deu um outro apoio. Nessa ocasião meus interesses se voltaram para a cor. Já havia descoberto o cinza sempiterno que me permitiu um entendimento maior das questões cezanneanas.

 

Mas continuemos. Hoje alguns pensadores ocupam-se da transdisciplinaridade, dos vários níveis de percepção e realidade e do desenvolvimento da lógica do terceiro incluído, esta iniciada na década de trinta. A partir da década de setenta firmou-se no meio acadêmico a geometria dos fractais, que foi divulgada para o público leigo na década de oitenta. À questão da reprodutibilidade da imagem se impôs a da informação. Como pintor que sou mais, compreendi a frase de Cézanne, sobre a natureza em si e a nossa própria, pois percebi que nela seria possível se pensar em dois níveis de realidade e percepção. Continuo meus estudos e agora me obceca o que é inatingível, o enigma. E mais, o que é um quadro hoje, e por extensão a arte também.

 

 

RL - O que deve ter numa pintura para que seja sua?

 

JM - Muitas coisas de outros bons pintores. Leonardo, Poussin, Cézanne, Chardin, Braque, por exemplo. E por menos evidente que possa parecer, de Duchamp e Hélio Oiticica. Foi uma declaração deste último aí que me animou, quando afirmou que havia uma questão importante na pintura para ser repensada, a cor.

 

 

RL - Tem algum mote, alguma epígrafe que o acompanhe pela vida?

 

JM - Sempre mudo. Atualmente, um pensamento de Braque: "Explicar uma coisa é substituir a coisa pela explicação". Um outro que é meu: "O artista não é um ego, é um eco".

 

 

RL - Qual o papel do artista na sociedade?

 

JM - Penso que na contemporaneidade o artista é um marginal.

 

 

 

 

 

 

 

tanta cor que inunda o mundo

e o azul é tanta cor que quase

 

pode ser uma piscina cheia de

tintas multicoloridas em harmonia

 

cai uma cascata de vermelho sobre

o que poderia ser uma forma, mas

 

são várias formas numa fôrma

a tempestade que nasce no horizonte

 

cinzam estrelas brancas e roxas

e o vermelho-sangue não derrama a sutileza

 

enfim, quando se encontram o poeta e o pintor

a coloração do azul se aprofunda em terno céu

 

 

 

 

[Entrevista realizada em junho de 2009]

 

 

 

outubro, 2009
 
 
 
 
 
 

 

José Maria Dias da Cruz, artista plástico, nasceu no Rio de Janeiro em 1935. É filho do escritor Marques Rebelo. Iniciou-se na pintura muito cedo. Estudou com Santa Rosa, Aladary Toledo, Jan Zach e Flávio de Aquino. Como sua casa era muito frequentada por artistas plásticos como Pancetti, Milton Dacosta, Di Cavalcanti, Tarsila e outros, recebeu muitos conselhos. Em 1956, estudou em Paris com o pintor argentino Emílio Pettoruti. Em enquete realizada em 1996 pelo Jornal do Brasil, foi relacionado entre os setenta artistas brasileiros do século XX. Foi professor do MAM-Rio e da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. É autor do livro A cor e o cinza.

 
 

Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista, músico, poeta. Autor do livro de poemas Há flores na pele e Todos os cachorros são azuis (Rio de Janeiro: 7Letras, 2008), entre outros. Participou da antologia Na virada do século — poesia de invenção no Brasil (Landy, 2002). Foi co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates. Editou o blogue Lowcura. Morreu no Rio de Janeiro, em 2 de julho de 2009.

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