©arnaldo pereira
 
 
 
 

 

 

 

Rodrigo de Souza Leão – Julio, como surgiu o Digestivo Cultural?

 

Julio Daio Borges – Embora eu já publicasse na internet, como colunista independente, desde 1998, achava que teria mais força se fizesse uma revista eletrônica, com outras vozes além da minha. Montei o Digestivo com foco estrito no jornalismo cultural em 2000 e convidei os primeiros colunistas em 2001. Passamos a publicar jornalistas da grande imprensa em 2002, mas o que passou a engrossar o caldo, de 2005 pra cá, foram os "leitores-comentadores", hoje responsáveis pela maior parte da audiência do site (o que deve surpreender muitas pessoas). Acontece que lançamos quase uns 200 nomes de autores novos (como Colunistas), publicamos mais de 100 nomes consagrados (como Ensaistas), mas contamos hoje com mais de 5 mil leitores que comentam periodicamente no site. Assim, embora nossa inspiração tenha sido o jornalismo cultural da velha imprensa, o grande salto aconteceu graças ao que chamam de Web 2.0 (ou o conteúdo gerado pelo usuário).

 

 

RL – Qual é o diferencial do seu site? Qual é a sua proposta menos aparente?

 

JB - O primeiro diferencial, desde o começo, é a qualidade. Antes do Digestivo, quem gostava de jornalismo cultural, dizia que não havia nada de qualidade para ler na internet brasileira. Conseguimos reverter esse quadro, com foco estrito no texto, com o reconhecimento dos nossos pares e com uma insistência no aspecto editorial que o jornalismo tradicional tem abandonado (por falta de estrutura) e que a internet não valoriza muito (porque é mais fácil, barato e rápido simplesmente publicar, para depois, quem sabe, aperfeiçoar o trabalho.)

 

O segundo diferencial, eu diria, é a abertura, cada vez maior, para o leitor. Desde o começo, publicamos leitores (muitos se tornaram colunistas e, até, blogueiros conhecidos). Acreditamos que o velho funil do jornalismo impresso é muito limitante, para o envolvimento (e a "fidelização") do leitor, depois do advento da internet. As redações de papel ficaram muito distantes, não apenas por uma questão de linguagem, mas porque não são permeáveis à participação dos internautas. De 2005 pra cá (da Web 2.0 pra cá, repito), nosso crescimento está diretamente relacionado ao espaço concedido ao leitor/comentador do site.

 

 

RL – O que a internet trouxe para a cultura?

 

JB - Trouxe a democratização do acesso e da veiculação. É clichê, mas a internet é a biblioteca da nossa época. A discussão, normalmente, fica presa na "credibilidade" do conteúdo ofertado pela internet, mas eu sempre achei que os benefícios são infinitamente maiores do que os males. Quanto à veiculação, o Digestivo, provavelmente, não existiria sem a internet. Eu não seria tão reconhecido pelo meu trabalho em jornalismo cultural. E não estaríamos aqui publicando (e lendo) esta entrevista. Do mesmo jeito, tantos colaboradores do site não teriam suas vidas transformadas, tantos blogueiros, tantos outros empreendedores online... Se internet não for revolucionária, em nossa época, o que será?

 

 

RL - Como vive um editor de um site como o Digestivo?

 

JB - Sim, o site dá lucro (se essa é a sua pergunta). E eu vivo dele já há alguns anos. Mas isso não significa que o jornalismo cultural, como um todo, seja lucrativo e nem que escrever, simplesmente, dê lucro. Tenho pensado, ultimamente, que isso tudo acontece porque estamos na internet e porque a maneira como o site foi programado (codificado) permite que ele cresça, gere receita e dê (finalmente) lucro. Não tenho registro de nenhuma publicação cultural em papel que tenha tido tanta audiência no Brasil (são 300 mil visitantes-únicos/mês) e que tenha tido, como principal objetivo (desde o começo), sua própria sobrevivência (seu sustento).

 

Mas eu vivo modestamente, não sou rico. Até porque, se o Digestivo fosse tão lucrativo assim, a primeira coisa que eu faria seria pagar os colaboradores (que não são remunerados). Vivemos, basicamente, do envolvimento de colaboradores e leitores, que alimentam o site; e, financeiramente, de publicidade e de algum e-commerce (comissões em vendas geradas através do site), graças ao seu tráfego.

 

 

RL – Quais foram os pontos altos e os pontos negativos, se é que houve algum, na trajetória por você trilhada nestes anos todos de dedicação?

 

JB – Comecemos pelos pontos negativos, como voce diz. Foi difícil, inicialmente, porque pegamos o pós-bolha, na aurora dos anos 2000. Logo, ninguém acreditava mais na internet. Seria como, hoje, montar um "banco de investimento" em plena crise do subprime. Os "sites de conteúdo" ficaram queimados e a própria internet abandonou essa expressão.

 

Depois, foi difícil porque o jornalismo cultural é historicamente difícil no Brasil. Tem público reduzido, não conta com um mercado de anunciantes pujante (porque o mercado cultural é, igualmente, reduzido no País) e vive basicamente da "boa vontade" do mecenato.

 

Entre os pontos altos, portanto, eu destacaria termos rompido com esses dois paradigmas. Primeiro, porque a internet se recupedou (e eu sempre cito a Web 2.0, relacionada ao advento da "banda larga", como um marco nessa história). Depois, porque nós não vestimos a "carapuça" do jornalismo e do mercado cultural: o Digestivo tinha de ser bem-sucedido como qualquer outro site, porque temos tráfego e porque esse público poderia gerar receitas para o site. É simples, e até chocante, para quem vive romantizando a cultura no Brasil...

 

 

RL – Cada dia surge algo novo, cada minuto, cada segundo. Na internet tudo é sempre novidade? Quais novidades lhe agradam? Quais lhe desagradam?

 

JB - Agora, estou particularmente impressionado com o Twitter, que não é apenas um site, é um novo formato, como o e-mail, o instant messaging (tipo MSN) e as redes sociais. O Twitter faz parte do meu dia-a-dia e me oferece uma porção de idéias sobre pautas e insights que iluminam meu trabalho como editor de site e como empreendedor online. Talvez seja minha principal fonte de informação hoje. Mais do que qualquer publicação. Sei que nem todo mundo entende o Twitter direito, mas muita gente boa (que entende) pensa, hoje, igual a mim.

 

Já me incomodei mais com a reação da imprensa em relação à internet, mas não é mais uma questão para mim, porque a internet está estabelecida e o Digestivo, também. Já me incomodei mais com as mensagens indesejadas e com os contatos insistentes por telefone, mas resolvi o primeiro problema com filtros e o segundo, com limitação de acesso ao nosso número. Eu sinceramente acho que a internet incomoda quem se sente ameaçado por ela, mas, você sabendo lidar, não existe meio (ou mídia) mais "administrável".

 

 

RL – Qual é a principal virtude e o principal defeito da Web?

 

JB - A virtude é reunir tanta gente boa, e tantos trabalhos interessantes, que antes estavam escondidos, ou que, de outra forma, nunca apareceriam. O defeito é não permitir, ainda, que todos que disponibilizam esses trabalhos possam ganhar mais com eles e até viver dessa atividade (se for sua escolha profissional). A chamada "monetização" da internet é muito incipiente ainda. Imagine que, no Brasil, a fatia do bolo de toda a publicidade, correspondente à internet, é de menos de 10%. Ou seja, embora a nossa Web já tenha audiência de televisão (40 milhões de usuários só no Orkut), o mercado ainda não reverte esse esforço com igual justiça.

 

 

RL - Quais sites fazem a sua cabeça?

 

JB - Acho que já respondi, mas posso detalhar melhor. Nossa inspiração foram as publicações impressas, então, no início, eu visitava os sites delas. Mas as novidades, que geraram novas idéias para o Digestivo, nunca partiram de lá. Assim, comecei a ler os blogs em inglês, porque eles se tornaram grande filtros do que há de interessante na Web. Depois, passei aos feeds RSS, mas ler tudo, de todo mundo, é muito cansativo. Hoje, me concentro mesmo no Twitter, e acesso os sites que (as pessoas que eu sigo lá) me indicam. Portanto, entre quem estou "seguindo" agora, destacaria: @doctorow, @raquelrecuero, @dangillmor, @JasonCalacanis, @cmerigo, @om, @gapingvoid, @timoreilly, @steverubel e @TechCrunch, para ficar, apenas, em dez pessoas.

 

 

RL - Como seria um mundo sem internet?

 

JB - Seria um interessante exercício de ficção. Mas seria, para mim, uma existência muito difícil.

 

 

RL – O e-book substitui o livro de papel?

 

JB – No curto prazo, não; mas, no médio/longo prazo, é possível. Não acaba com os livros em papel, mas reduz, e muito, o fluxo de livros físicos. Eu mesmo — faço como o Paulo Francis dizia — leio partes de livros, pulo trechos, quando está chata a leitura, simplesmente, não termino... Portanto, para um leitor como eu, seria bastante prático (qualquer dia compro um Kindle 2 ou um novo Sony Reader e te confirmo). O e-book vai pegar, num primeiro momento, entre os leitores da internet, que trocam documentos online, que tem uma leitura fragmentária e que consomem montanhas de informação em pílulas. Num segundo momento (que eu não sei quando é), vai pegar os leitores mais tradicionais, pela disponibilidade, pelo preço e porque os jovens leitores da internet serão os leitores adultos de amanhã...

 

 

RL – Existe uma literatura da internet?

 

JB – Acho que existe. Como já publicamos verdadeiros contos, no Digestivo, então digo que existe. Mas não me arriscaria a provar isso. E nem me preocupa... se o que muitos estão fazendo... é ou não literatura. O jornalismo entrou nessa discussão — é ou não é literatura? — e nunca saiu como uma resposta definitiva...

 

 

RL – Tem alguma frase, alguma epígrafe, que o acompanhe pela vida?

 

JB – Eu mudo; então, nenhuma me acompanha sempre. Agora, na minha apresentação no Digestivo, coloquei uma "nova" do Nietzsche: "Quem alcança seu ideal, vai além dele".

 

 

RL – O Digestivo traz sempre novidades. O que você pode adiantar para 2009, já que o ano só começou depois do carnaval?

 

JB - Pergunta capciosa. Dentro do que eu já falei... O Twitter vai crescer muito no Brasil (portanto, entrem enquanto é tempo). O Kindle 2 vai consolidar a posição do e-book na cultura literária. A crise mundial ainda dura (é o meu palpite). A internet brasileira vai passar por um "estouro de bolha" como o que estamos vendo hoje nos Estados Unidos (basta ler a newsletter do Jason Calacanis, com conselhos para as startups) — e os blogs brasileiros, que cresceram nos últimos anos (como mídia), vão sentir esse arrefecimento. Na realidade, estamos vivendo mais uma mudança de paradigma, na internet: da blogosfera (última onda) para a statusfera (Twitter e Facebook, que crescerá mais no Brasil).

 

 

RL - Como encara a ficção científica que engloba a internet em seu bojo?

 

JB – Não leio muito. Não conheço o suficiente. Não saberia opinar.

 

 

RL – Qual o papel de um editor para a sociedade?  

 

JB - Separar o joio do trigo? É clichê, mas é a imagem que ainda explica melhor. O problema é que, com a democratização recente (de acesso e de meios), os editores se tornaram perigosamente condescendentes com o conteúdo produzido pelas mais variadas fontes. Na literatura brasileira contemporânea, que é a sua área, tivemos livros de qualidade bastante duvidosa editados aos montes, ultimamente. A gente publica em quantidade razoável, lá no Digestivo, mas procuramos manter uma qualidade mínima — senão, qual o sentido? Se qualquer um pode editar, então "todos são editores" e "ninguém é editor". Admiro projetos colaborativos como a Wikipedia, mas nunca consegui implementar nada parecido no Digestivo...

 

 

 

 

março, 2009
 
 
 
 
 
 

Julio Daio Borges (São Paulo/SP, 1974). Editor-fundador do Digestivo Cultural. Formou-se em Engenharia Elétrica pela Poli-USP, com ênfase em Computação. Foi redação nota dez da Fuvest e escreve diariamente desde os dezessete. Conheceu a internet em 1995 e começou a publicar na rede a partir de 1998, depois de um artigo polêmico sobre sua faculdade (que repercutiu na Folha de S.Paulo). Levou o Digestivo de uma newsletter, em 2000, a um site com audiência de portal (são mais de 1 milhão de páginas mensais). Dedica-se integralmente a ele desde 2001 e administra a empresa, que abriga o Digestivo, desde 2004.

 
 

Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista. É autor do livro de poemas Há flores na pele, e de Todos os cachorros são azuis (Rio de Janeiro: 7Letras, 2008) entre outros. Participou da antologia Na virada do século — poesia de invenção no Brasil (Landy, 2002). Co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates. Edita o blogue Lowcura. Mais na Germina.