Devia existir algo em meus olhos. Algum sinal, qualquer coisa. Porque, hoje, percebo que desde a primeira vez que me viu ela teve certeza: eu precisava, desesperadamente, ser magoada.

Somos duas meninas, colegas de escola. Apesar de estarmos na mesma classe, temos idades distintas. Essa diferença se reflete em nossos corpos, é motivo de vergonha para ela. Eu, mirrada, encontro-me aprisionada na condição de criança. Desejo incessantemente ganhar traços de mulher. Prevejo que serei bela, muito bela. Basta que os anos se passem e tragam a ratificação dos meus contornos. Sonho, desde já, com os prazeres que terei. Serei vista, apreciada pelos homens. Conhecerei o amor, em sua plenitude. Terei liberdade para ser quem sou e fazer tudo aquilo que desejo.

Minhas atitudes não combinam com o meu aspecto franzino. Basicamente, desde aquela época, tenho as mesmas opiniões, penso da mesma forma. Sou a melhor aluna da sala, sempre motivo de orgulho. Uma pequena adulta, rodeada de crianças da mesma idade. Em certos momentos, isso parece um pesadelo. Em outros, me sinto confortável. Ter um corpo como os das minhas colegas, me permite pertencer, estar inserida. Dividimos juntas as angústias, a curiosidade de nos vermos em mutação. Somos uma a justificativa da outra.

Com ela, é diferente. Transformou-se sem maiores explicações, entendeu isto como um castigo divino. Está sozinha. Sente um mal-estar enorme na presença das outras meninas, finge detestar todas para não ser obrigada a se aproximar. Ao lado delas, ficam mais evidentes suas contradições. Sua alma pequena não preenche seu corpo longo, robusto.

Ainda não está pronta para ser objeto de desejo. Quase sempre, caminha com o caderno agarrado ao busto, escondendo os indícios da chegada de sua puberdade. Desconhece que, em poucos anos, as outras se igualarão a ela e não restará qualquer vestígio daquele momento, salvo em sua memória.

Eu, a pequena adulta. Ela, a adulta infantil. Nós e a nossa improvável amizade.

Quando descobriu que em mim se escondia uma mulher, resolveu tentar uma aproximação. Passou a trazer, do recreio, chocolates e balas, colocava-os em cima de minha carteira. Na hora da saída, puxava conversa, me perguntava sobre os deveres de casa. Começamos a andar juntas. Um tempo depois, nos tornamos amigas. Melhores amigas.

Apenas hoje entendo. Deve ter sido uma enorme satisfação para ela perceber que tinha o que eu tanto queria: um corpo de moça. No fundo, seu maior desejo era despertar a minha inveja, se ver colocada em um patamar de superioridade. Gostaria de estar na minha posição, mas como não podia, tentava fazer com que eu sentisse o mesmo em relação a ela. Jamais conseguiu realizar seu intuito. Isso, que só agora compreendo, deixava-a terrivelmente irritada. Estão explicadas as grosserias gratuitas, as frases imperativas, a eterna reprovação do meu comportamento. Era difícil demais para ela aceitar que não me afetava. Sim, eu sonhava com um corpo de moça, mas com o meu corpo de moça. Pouco me importava se ela já tinha o dela ou não.

Os anos passaram e, para seu absoluto desespero, finalmente, ficamos iguais. Éramos bonitas adolescentes, comentadas em todos os lugares. No entanto, isto não lhe bastava. Precisava ser única, brilhar sozinha. Começou a inventar pequenas mentiras ao meu respeito. Sempre que alguma chegava ao meu conhecimento, ela surgia entre lágrimas e palavras superlativas: Você é como uma irmã para mim! Como pode acreditar nesses absurdos? Não sei se por gostar dela ou por ser arrogante, por me sentir sempre capaz de superar qualquer situação, eu acabava deixando suas mentiras de lado, atribuindo-lhes pouca importância. Minha postura só aumentava a sua raiva, o seu desprezo. Precisava, de qualquer jeito, me magoar. Como se, em meus olhos, tivesse  um pedido expresso: mostre-me que não sou perfeita, que não mereço o amor que recebo das pessoas. Diminua esta minha culpa de existir e ser feliz, num mundo tão cheio de pessoas tristes.

É a festa de formatura do colegial. Eu, a melhor aluna da sala, vou ser homenageada. Na ocasião, usarei um par de brincos de brilhante, presente de minha mãe, fruto de boa parte de suas economias.

De onde vem o mal? Ainda não tenho a resposta. Apenas sei que ele estava naquele salão, naquele dia.

De todas as coisas que ela me fez, esta não foi a mais terrível. Mas, quando relembro, é a que ainda mais me faz sofrer.

Olho-me através do espelho. Vejo a minha imagem e a dela, de fundo. Já está pronta. Resolveu me fazer uma visita de última hora, quer me ajudar com os preparativos. Estou linda. Faltam-me apenas alguns detalhes. Meu par de brincos encontra-se, devidamente, guardado no armário. Peço a ela que o pegue para mim, enquanto faço a maquilagem. Explico onde estão. Ela volta me trazendo a caixinha. Abro-a. Está vazia.

Sim, eu poderia ter previsto. Não estava fora do meu alcance. Mas nos meus olhos: puna-me por existir, por ser feliz.

Passado o susto, fico em silêncio. Percebo que eu mesma provoquei aquela situação. Ela se desespera, quer o meu pranto, os meus gritos. Calmamente, digo que procurarei os brincos em outra hora, que não tem importância, usarei outros. Sei que estão em sua bolsa. Ela sabe que eu jamais sugeriria que meus brincos estão em sua bolsa. Pensa que dentro de mim vive uma idiota. Desconhece o significado da palavra consideração. Sofro. Planejo: quando ela der um vacilo, irei recuperá-los, mas não os usarei esta noite. Mostrarei que não preciso deles para brilhar.

Recebo a homenagem, vejo seu rosto contrariado, na plateia. É dos seus olhos, dos seus enormes olhos de jabuticaba roubada, que nasce a inveja. Sou aplaudida de pé.

Eu nunca entendi exatamente o que ela desejava. Quando ela me afastava dos outros era uma tentativa de impedir que eu fosse amada ou uma forma de me mostrar que ela era a única que sentia amor por mim? Queria ela me destruir? Ou tudo não passava de um desejo de união, fusão completa de nossas pessoas? Seria ela apenas uma amiga?

Primeiro, foram os brincos. Depois, meu marido. Por fim, minha alegria. Quando percebeu que nada iria conseguir, foi embora para sempre.

É por março, este mês que me toma e me permite este sentimento que não sei definir, é por março, sim, é por março que estou aqui. Uma flor sobre o túmulo é o último perdão que lhe concedo. Soube que acabou morta por um dos homens que enganou. A data de sua morte, um dia de março, coincide com a do meu aniversário. Sempre assim: ligadas pela contradição. Flores e marços foram o que, em vida, ela tanto quis. Seu nome, hoje, jaz numa pedra. Como aquela nossa amizade.

 

 

 
 
 

 

 

 

Esquecidas de que existiam móveis, quadros, tapetes, flores no vaso, pessoas nos outros cômodos da casa, portão, portões, outras casas, bairros, países e todo um mundo construído de coisas, mãe e filha se reencontraram. E se encararam como se pudessem prescindir de qualquer gênero, tempo ou espaço. Estariam para sempre ligadas por aquela condição: mãe e filha. E ninguém jamais poderia questionar o valor daquela relação.

Aquela era ela. Na sala de jantar, de sua casa. Com o rosto desgastado pelo tempo. Despedindo-se da dor que invadiu seus dias, daquela dor tão indiferente à cor de seus olhos ou cabelos. Não era simples. Dizer adeus a qualquer coisa é muito difícil, mesmo quando se trata de uma dor. Tinha se acostumado a viver com ela como se fosse parte de si. E nunca foi dessas que acreditam em horóscopo, destino ou magia. No fundo, tinha medo que acontecesse, mais uma vez. Certo dia, por puro desespero, recorreu a estes elementos e não teve suas preces atendidas. Não, não dirigia mais a palavra a Deus. Fora ele o culpado por tudo aquilo. Quando criança, achava que sendo boa, apenas coisas boas lhe aconteceriam. Agiu sempre corretamente, respeitou seus pais, foi fiel ao marido, cuidou dos filhos da melhor forma, ajudou os pobres, tentou ser legal com as pessoas que cruzaram seu caminho. Sim, cometeu alguns erros, mas nada que justificasse seus anos de sofrimento. Não era porque ele tinha lhe dado que podia tirar. Fechou-se em seu mundo, trancou-se em sua casa, o único lugar seguro. O que antes era uma promessa de felicidade, transformou-se em pesadelo. Um pesadelo colorido, estranho, terrível. Em pé, na sala de jantar de sua casa. Não parecia lógico, real. Talvez dissessem que ela estava tentando encontrar uma maneira de superar. Outros poderiam invocar que estava senil. Poucos ficariam em silêncio, compreenderiam. Os olhos da filha. Eram eles, os olhos da filha que encaravam os seus. A dor cedeu espaço a uma alegria profunda que se transformou em grito, urro final de um desespero demasiadamente longo. Na sala de jantar, de sua casa. Com o rosto desgastado pelo tempo. Novamente, ela. Jamais pensou que vivenciaria algo assim. Naquele momento, ela pôde voltar a ser quem foi, um dia.

Era agosto, quando o circo chegou, pela primeira vez, naquela cidade. Algumas crianças correram para a rua, outras, impedidas pelos pais, permaneceram observando através das janelas. No céu, fogos misturavam-se com estrelas, estabelecendo a importância do momento. Malabaristas, atiradores de faca, engolidores de fogo, pernas-de-pau, trapezistas e palhaços desfilavam vitoriosos, enquanto eram recebidos com festa pelos pequenos moradores. Finalmente, aqueles olhos já tão acostumados ao ordinário, voltaram a brilhar. Em cada rosto iluminado, a certeza: Não, Deus não nos abandonou.

Ignorada pelo resto do mundo, aquela cidade era seca, sem estações. Seus dias pareciam sempre iguais. A chegada do circo mostrou-se providencial, acabou por representar a renovação dos sonhos daquelas crianças. Novas tintas tomaram conta do lugar. O silêncio constante foi quebrado pelas brincadeiras, pelo som das gargalhadas infantis. As noites tornaram-se mais longas, os espetáculos não costumavam terminar cedo. A rotina dos habitantes foi alterada, circulavam entre eles, agora, seres excêntricos, trajados das mais diversas formas. No início, por medo do desconhecido, alguns moradores resistiram a essas mudanças. Os mais velhos argumentaram que a trupe de artistas era coisa do Diabo, gente decente não se comportava daquele jeito. As mulheres começaram a sentir ciúmes dos maridos, as trapezistas eram bonitas demais. No entanto, para as crianças, nada disso importava, o circo era sinônimo de alegria. A partir das histórias contadas, elas passaram a compreender a existência de um mundo lá fora, um mundo mágico e fantástico, bem diferente daquele que conheciam. A lona colorida, contraponto inevitável da eterna palidez do ambiente, era o que separava este espaço extraordinário dos demais. Foram meses de puro delírio.

No dia em que os artistas deixaram a cidade, ela estava encostada no portão de sua casa. Viu, passo a passo, o desmontar da estrutura circense. O terreno que fora ocupado pelo picadeiro voltara a ficar vazio, abandonado como tudo e todos daquele lugar. Observou, com dor, o caminhão tomar direção, ir rumo ao desconhecido. Tinha apenas sete anos, mas fez para si própria, uma promessa: iria tornar-se trapezista, aprenderia a voar, viajaria pelo mundo, seria feliz. Nunca mais permitiria que qualquer coisa tornasse sua vida fosca, sem brilho.

E assim os anos passaram.

Após muitos agostos frustrados, enfim, foi obrigada a crescer. O circo, ao contrário do que havia sido prometido, jamais retornou àquela cidade. Os momentos maravilhosos que presenciou acabaram tornando-se lembranças distantes. Durante algum tempo, ainda recusou-se a aceitar. Sim, eu vou conseguir, quando o circo voltar, me tornarei trapezista, entrarei para a trupe de artistas. Depois, não teve mais alternativa. Compreendeu que sua vida tinha que seguir em frente, não podia mais ser paralisada por aquele sonho. Acabou consumida pela pequena venda da família, orgulho de duas gerações, fonte de sustento de todos.

Tudo como o pai previu: marido, casa e filhos. Somente adulta, pôde entender porque ele lhe dera um tapa no rosto ao escutar seus planos infantis. A ideia de ter uma filha diferente das outras meninas era terrível demais para ele. Causava-lhe calafrios o que a comunidade poderia dizer. Além do mais, caso seu anseio fosse realizado, ela acabaria partindo, e ele perderia sua única forma de resistência no mundo. Precisava ser continuado, ser semente para a terra daquele lugar infértil. Estranhamente, ele sentia amor por aquela cidade marcada por ausências.

Casou-se com um primo distante, por quem se apaixonou, no fim do colegial. Construíram uma casa e planejaram uma vida. Seus dias não registravam exatamente grandes surpresas, mas estava satisfeita com o homem que tinha escolhido. Apesar disso, às vezes, era tomada pela sensação familiar. Ainda estava lá, intacta, a imagem da trapezista triunfante. Era no jardim, entre flores, que alimentava esta mulher que tanto a encantava. Foi nesse mesmo lugar que, ao descobrir-se grávida, fez a segunda promessa: faria de tudo para que o destino de sua filha fosse diferente do seu. Jamais permitiria que seus dias passassem em vão.

Não, não tinha qualquer dúvida. Seu bebê era uma menina. Uma menina. Filha da mulher que não houve.

Ela nunca imaginou que pudesse existir uma felicidade como aquela. Nem quando sonhava com os aplausos calorosos da plateia podia dimensionar o tamanho daquele sentimento. Ver a filha crescer, de certo modo, compensava suas frustrações. Antes de dormir, sempre agradecia a Deus por aquele presente. Era com enorme prazer que cuidava da sua menina. Quando penteava seus cabelos, gostava de lhe contar historinhas, repetia as que tinha escutado, nos tempos de alegria. Fazia tudo o que estava ao seu alcance para que ela tivesse uma infância feliz. Sua vocação para mãe era absolutamente incontestável.

Certo dia, enquanto arrumava os pratos na mesa, ouviu uma algazarra tomar conta de sua rua. Assustada, correu para a janela. Sentiu um arrepio por todo o corpo. Sim, o circo tinha, finalmente, retornado.

O picadeiro foi montado no mesmo terreno de outros tempos. Mas a lona não tinha um colorido tão vibrante, estava desbotada. Os artistas eram mais velhos e menos glamourosos do que os da companhia anterior. No entanto, nada disso foi capaz de desanimá-la. Na noite seguinte, com o segundo filho na barriga e de mãos dadas com sua menina, rumou para o que acreditava ser um momento mágico.

(Não me peça para contar exatamente o que aconteceu naquela noite. Qualquer coisa que eu diga, além do que sei, está no plano das suposições e não se deve supor nada que possa trazer mais sofrimento do que a situação carrega. Apontar culpados ou criar qualquer espécie de enredo é um ato de puro egoísmo, uma forma de me consolar, arranjar uma desculpa plausível para as coisas incompreensíveis desse mundo. Além do mais, muitas são as lágrimas que já derramei pensando em como posso falar sobre isso sem parecer envolvida demais. Como terceira pessoa, para não confundir os fatos, apenas me resta uma narrativa imparcial, fria, crua. A narrativa da impiedade.)

Estavam sentadas no penúltimo banco da plateia. Constantemente via a filha sorrir e bater palmas para as atrações. Estava contente. Na hora em que a trapezista voou pelos ares, sentiu um forte aperto no peito. Observou com atenção cada pirueta, imaginou-se naquele lugar. Um instante depois, quando olhou para o lado, a filha tinha desaparecido.

Passou a chamar pelo nome da menina. Perguntou a todos os presentes se tinham visto qualquer coisa. O espetáculo parou. Um palhaço, ainda com a cara pintada, lhe ofereceu ajuda. Um pouco depois, a trupe toda estava reunida em busca da criança. O delegado, avisado por sua vizinha, chegou ao local acompanhado por seu marido e seu pai. Pediu a Deus que a auxiliasse. As fronteiras do circo foram rompidas. Casas e ruas passaram a ser vasculhadas. Voltou a pedir a Deus, aos santos e as estrelas que a auxiliassem. Fez a terceira promessa, a quarta, a quinta e a sexta. Já era madrugada. Levaram-na para a casa de seus pais. Sua mãe lhe deu algo para beber, disse que não era para ela se preocupar, a menina ia aparecer. Tudo lento e confuso demais. Dormiu. Quando acordou, pensou que tinha sido apenas um pesadelo. Um minuto depois, percebeu a verdade.

A polícia não avançava nas investigações. Ninguém imaginava o que podia ter acontecido. De hora em hora, alguém lhe trazia um remédio. Queria gritar, se jogar no chão, morrer, mas não conseguia. Nem sempre a morte está ao alcance de todos.

Dias depois, quando o circo se foi, levou consigo o que ela possuía de mais precioso: suas ilusões e sua menina. Aquela pequena cidade podia ser um lugar limitado, seco, mas a gente que vivia nela era confiável, de bem. Só estranhos poderiam ter feito aquilo. Fechou-se em seu mundo, trancou-se em sua casa, o único lugar seguro. Trinta agostos se passaram. Três garotos e dois netos. Nada da filha. Até aquele dia.

Do jardim, escutou o barulho de outros tempos. Pressentiu: era um desfile de circo. Desesperou-se. Não podia sair dali, não queria ver pela janela, não estava preparada. Passou horas entre flores, esperando acabar. Quando o silêncio voltou a reinar, dirigiu-se para a sala. E tomou o choque. Eram eles, os olhos da filha. Sim, naquele momento, ela pôde voltar a ser quem foi, um dia.

Aquela era ela. Na sala de jantar, de sua casa. Com o rosto desgastado pelo tempo. Despedindo-se da dor que invadiu seus dias, daquela dor tão indiferente à cor de seus olhos ou cabelos. Não era simples. Dizer adeus a qualquer coisa é muito difícil, mesmo quando se trata de uma dor. Tinha se acostumado a viver com ela como se fosse parte de si. E nunca foi dessas que acreditam em horóscopo, destino ou magia. No fundo, tinha medo que acontecesse, mais uma vez. Certo dia, por puro desespero, recorreu a estes elementos e não teve suas preces atendidas. Não, não dirigia mais a palavra a Deus. Fora ele o culpado por tudo aquilo. Quando criança, achava que sendo boa, apenas coisas boas lhe aconteceriam. Agiu sempre corretamente, respeitou seus pais, foi fiel ao marido, cuidou dos filhos da melhor forma, ajudou os pobres, tentou ser legal com as pessoas que cruzaram seu caminho. Sim, cometeu alguns erros, mas nada que justificasse seus anos de sofrimento. Não era porque ele tinha lhe dado que podia tirar. O que antes era uma promessa de felicidade transformou-se em pesadelo. Um pesadelo colorido, barulhento, terrível.  Em pé, na sala de jantar de sua casa. A dor cedeu espaço a uma alegria profunda que se transformou em grito, urro final de um desespero demasiadamente longo. Na sala de jantar, de sua casa. Com o rosto desgastado pelo tempo. Novamente, ela. Jamais pensou que vivenciaria algo assim.

Como podia ser possível? Como tinha entrado ali?  De onde tinha vindo? Não parecia lógico, real. Talvez dissessem que ela estava tentando encontrar uma maneira de superar. Outros poderiam invocar que estava senil. Poucos ficariam em silêncio, compreenderiam. Não importava. Tinha certeza. Eram eles, os olhos da filha.

Pegou a pequena cachorrinha no colo e a abrigou no seu antigo quarto de menina.

Ninguém da família jamais lhe perguntou qualquer coisa, simplesmente consentiram.

O amor prescinde de gênero, tempo ou espaço. Estariam para sempre ligadas por aquela condição: mãe e filha.

Até o dia de sua morte, ela esteve ao seu lado. Depois sumiu pelo mundo, como já havia feito da outra vez.

 

 

 

(imagens ©friedrich poyer)

 

 

 

 

 

 

Renata Belmonte (Salvador/BA, 1982). Advogada e escritora.  Autora dos livros de contos Femininamente (Casa de Palavras, Prêmio Braskem Arte e Cultura 2003), O que não pode ser (EPP, Prêmio Cultura e Arte Banco Capital 2006) e Vestígios da Senhorita B (PP5, Coleção Cartas Bahianas, 2009). Participou das antologias Outras moradas (EPP, 2007), Antologia sadomasoquista da literatura brasileira (Dix, 2008) e Antologia de contistas baianas (no prelo).  Já colaborou com diversas revistas literárias como Iararana, Bestiário, Rascunho, Verbo 21, Cronópios e Vaia. Em 2008, foi uma das escritoras estudadas no livro Quem conta um conto: estudos sobre contistas brasileiras estreantes nos anos 90 e 2000, organizado por Helena Parente Cunha e escrito por doutorandos da UFRJ. Atualmente, reside em São Paulo, onde cursa Mestrado na Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas. Edita o blogue Vestígios da Senhorita B.