I

 

a umnidade

verde se filtrava

na escuridão impenetrável

até as raízes dos troncos

até os uivos da terra cativa

                    em musgos

em gomos

a violência e a gosma

dos cipós amarravam os pés

nos baraços dos vivos vegetais

em redes verdes sobre

                   o barro

oco ruído

do corpo

lentamente devorado pelas bocas

escancaradas das orquídeas e na

pura seiva das castas

                   avencas

e nada

restou no húmus da terra

nenhuma voz nenhum nome

nem cor nem pó nem janelas

nenhum nada nem dicção

                   sequer memória

 

 

 

 

 

 

II

 

na unha de fome da poesia

há pouca

ou nenhuma

bastança

há muita ou pouca

secura

depende

da hora que cabe

nas rachas do dia

nas frestas da noite

nas pausas dos juros de mora

nas multas

nas raivas

nas ranhuras

que o poema cava

nos olhos

na boca

retardando e prolongando a tensão

do corpo

dos dedos

cravados nas teclas de plástico

como unha e carne do poema

 

 

 

 

 

 

III

 

a ode dos tragos

em goela seca

e a ordem dos goles

na lamúria de lêmures

bodejos de januária

meia-lua lua-cheia

cornucópia transbordante

eis o canto do bode

no espeto no ferro

gônadas os cornos

pra queimar brasas e alecrim

ossos olhos cascos fendidos

pele das tripas coração

fressuras para Warhol

buchada Campbell's

made in Brazil/for export

para com cachaça e mel

libar aos eguns da língua

 

 

 

 

 

 

IV

 

pro soluto

 

em meio à silva escandida

impõem-se deitar o machado

à árvore verde dos anos

às respostas de antemão dadas

já que hoje desbotadas

da besta certeza do ouro dos tolos

 

riscar os dias não arriscados

acordanhar uma descida

pelo túnel dos dias vindouros

sobrescrevendo atitudes entranhadas

duma poética atulhada

 

desbastar pó

desalinhavar nós

estranhar retratos de porcelana

 

arriscar contra a linguagem

ao acaso dactilo dos grifos

e subscrever uma lírica de iguarias

em páginas de baquelite

 

 

 

 

 

 

V

 

no exame da caligrafia desassossegada

(poesia de púlpito pudica de merda!)

réu confesso canicular em posse do

adolescente do XIX em pose de 3x4

esgotava-me no linguajar solar das janelas gêmeas

que enchia a sala e o tórax piloso (pilífero)

em bagas de tesão contornada pelas pernas

nadava contra mandava contra a robustez simbolista

da linguagem numa escassa toada de pistilos da estação

no esparramo da grafite pelos dedos na espera

do poema que se negava de véspera

                                             morto no prelo

 

 

 

 

 

 

VI

 

natureza-morta (colagem)

 

aqui, reúno a argúcia dos meus dedos

e a precisão astuta de meus olhos

e fabrico estas rosas de alumínio

que, por serem metal, negam-se flores

mas, por não serem rosas, são mais belas

por conta do artifício que as inventa

 

 

 

[Poemas do do livro Sequer memória, no prelo]


 

 

 
 

I

 

costurei sapatos novos para o ritmo exato dos meus pés

carne quebrada, nervo rendido, osso desconjuntado.

 

na rua, os cadarços dos meus sapatos novos amoleceram

nos restos de chuva que a noite tocou em pianíssimo.

 

meus sapatos novos são brancos. são para curar

carne quebrada, nervo rendido, osso desconjuntado.

 

as costuras dos meus sapatos novos são em cruz,

com linha e agulha, por cima e por baixo.

 

um desconhecido pisou em meus sapatos novos, pisou

carne quebrada, nervo rendido, osso desconjuntado.

 

maços de marcela, cigarros, rótulos de antibióticos

absorveram-se nas solas dos meus sapatos novos.

 

a cidade encardiu meus sapatos novos, feitos para urdir

carne quebrada, nervo rendido, osso desconjuntado.

 

e o sol a pino veio beber a água amanhecida nas calçadas

e ressecar meus sapatos novos, sujos.

 

depois limpei o couro, lavei os cadarços, remendei as solas. cerzi

carne quebrada, nervo rendido, osso desconjuntado.

 

 

 

 

 

 

II

 

de permeio à areia da noite

metamorfoseio o tempo e o espaço

de olhos percorridos de hoje até ontem

 

nove centenas de tentativas

para apreender a curvatura dos pensamentos

o pulsar dos sentidos

 

palimpalavras

não retêm itinerários, voltas

nem mesmos começos

 

pela manhã

lucidez e sombras acordam em celofanes

condenadas ao mormaço do dia

 

 

 

 

 

 

III

 

o pampa se esparrama sobre a cidade

 

se esvai entre o rio e o mar

lavando arrabaldes e casas com seu grão duro.

Inútil, o rio se apressa em represa

 

Ilhados homens bichos coisas

   enregelam ossos

 

na minha rua

o velho alimenta seu cão com restos de flores

Se abriga em seu latido, murmurando

 

o cão é uma saudade de sol

é uma saudade estendida na praia

 

para os lados de lá

nas margens da cidade escorrida

o sol aquece uma última hora

 

 

 

 

 

 

IV

 

Na praça antiga

três mulheres raspam a ferrugem da tarde

com a nudez morna dos lábios.

 

Em espirais

a coreografia ácida dos hálitos

sobe até o forro de nuvens.

 

Os vestidos da pele arremedam o balé das bocas

em corpos que marcam a insistência das horas

cravando sombras no xadrez da praça.

 

Pesado, um pó cobre a cidade anoitecida em dança

e vem descansar em meus sapatos brancos.

 

 

 

 

 

 

V

 

os gatos na chuva

escorregam entre as casas sem dono

 

                  unem os beirais do arrabalde

 

 

 

 

 

 

VI

 

morte embrulha fardos

sem fatura ou promissória

 

memória e suas filhas

guardam ossos em caixas de fósforo

                      baús estalando luz

 

 

 

[Poemas do livro Solecidades. Editora Éblis, 2007]

 

 

(imagem ©grzemski)    

 
 
 
 
 
 
Ronaldo Machado (Porto Alegre/RS, 1971). Poeta e coeditor da Editora Éblis. É autor de Solecidades (Éblis, 2007). Professor de História e de Literatura, Mestre em Teoria Literária (Unicamp/2000). Tem artigos de crítica e teoria literária publicados em revistas especializadas.