TUTIFRUTI

 

Tutifruti é o que se sabe que não existe

Tutifruti é feito pra se enganar

Tutifruti tem muitos educlorantes

Tutifruti tem muitos umectantes

Tutifruti são hidrocarbonetos aromáticos

É feito pra disfarçar o gosto do antipático

Tutifruti é a moça que não é ela

Tutifruti é ele que não é ele

Tutifruti é o gosto do beijo seco

É um gosto fácil de se acabar

Tutifruti é a gatinha tão formosa

Com embalagem de roupa cor de rosa

Tutifruti é o mundo em que vivemos

Tutifruti é feito pra nos alienar

Tutifruti é um gosto muito doce

De pura química e fácil de se gostar

É o amor feito pra que não se ame

Amor adoçado com aspartame.

 

 

 

 

 

PUPILA

 

Quando olho no espelho todos os dias, vejo minha queda num abismo escuro.

Está no fundo da pupila o negrume turvo que me embaça a vista e esgarça a imagem, ou será a própria retina distendendo uma miopia que desejo não saber, distorcendo a margem.

É na mancha escura da margem que me localizo; braçadas sem rumo não tardam a cansar.

É na parte escura do olho de minha própria face que me flerta a vista e me tira da manhã, me atirando por entre constelações...

O fundo preto do olho, abismo negro, mergulha, desaba, se perde e me condena à mediocridade de querer me conter num quadro. Estarei eu disfarçado de mim mesmo no ângulo errado?

A direção do olho vai à intenção do rosto que deseja o tosco.

Ilude,

ilumina,

pelo pulo, escuro poço,

posso,

pulso

pupila.

 

 

 

 

 

O NOME DAS PESSOAS

 

O mesmo nome

Todos

Toda a vida

Todos mudam

Nos dias todos

Pessoas...

Se inundam.

 

Quem? Meu Deus! Terá...

Capacidade

De classificar?

Se todo mundo vê o mundo

A cada dia

De outra maneira

Uma vez dentro

Outra na beira.

 

Não será a mesma água que corre.

Não será o mesmo sangue

Se a folha d'árvore morre

Se as raízes de todos...

Se escondem na lama dos mangues.

 

A cada dia, um ontem parte

Condenado ao degredo.

Por isso

Invento-me um nome,

A cada dia em segredo.

 

 

 

 

 

DESLOCAMENTO

 

Aqui, isolado entre quatro paredes,

Quatro membros que invadem e seguram o tronco.

São braços, pernas de todas as partes de outras pernas.

Outros braços que se abrem em pares, membros são sempre pares, capazes de se deslocar para longe e voltar.

Os passos olham para os dois lados e atravessam ruas.

Olha!!! — a criatura grita — Já estou aqui!

A Criatura vê:

Praça

Ônibus

Carrinho de pipoca

Eis que liberdade de correr, pulsão, ritmo, vôo, trânsito de luas.

 

 

 

 

 

VOZ COR DE GRANITO

 

Mudo escuto

Prestes a encontrar meus adjuntos

Transponho num duto

Duto que penso

Tudo que luto

Nos caminhos mais escrotos

Se vão

Vãos

Pelo esgoto.

Pensamento cunhado no chão

Se mija

É pedra pálida

É chão

É broto

É latido de cão

 

Mudo escuto

Um pouco de ética

Talvez pra ficar sem ótica

Cumprindo a pena

Só porque não tem lógica

Penando sem penas

Ao ver asa quebrada

Escarrada

Pisada

Ou terá sido um pneu pálido?

Careca no acostamento

Sem ética

Ou alento

Caído no desuso

Sem ótica

De tanto foi o uso

Sem lógica

De matemática muda

Inerte

Absurda

A lógica estática

Da ótica da estética

Caída no uso

Com ética de abuso

Morta

Mesmo nos deltas

Mesmo nos mis

Ou nos pis

Parou

A palavra muda

Surda!

Que não tem mais sustento

Como o pneu careca

Estático

No acostamento

Calou o som da palavra pálida

Que antes escutava

Que continuo sem falar

Só vejo

No espelho

Um bicho qualquer

 

 

 

 

 

PEDESTRES

 

 

Olha! Já viram teu olho também!

Será que é conhecido?

Será que já não vi?

E se vi... que interessa.

Já vi.

E dejaviram muitos de todos vocês.

Na rua..., na estrada..., calçada.

No pé..., da esquina..., quina.

De carro, de condução, trem.

Olho fechado, zem.

Na ambulância, boca de horror.

Ou rua, pigarro, metrô.

Ali! Já vi! Tem?

Um olho aqui... e o outro também.

Que eu nunca vi.

Ou só lembro de sua mochila...

Outros rostos bizarros aparecem nos sonhos...

E nos sonhos dos outros sonos.

Um rosto aqui, um olho ali...

Vejo pigarros paços bocejos,

Esperas partidas, gracejos.

Ou choros desesperados.

 

Volto ao ônibus, mochilas aos ombros.

Uma mala equilibra-se no chão.

E um olho aqui, outro acolá.

Pode ser como eu, o homem de lá,

O de camisa listrada,

ou a senhora que está atrás de mim.

Parada.

 

 

 

 

 

SAIO DO BANHEIRO

 

Cada vez que olho no espelho, esqueço da última coisa que estava pensando.

Cada fio de cabelo, do pente ou do pentelho, olho e perco o meio... ou um outro par de meia.

Enquanto ouço um riscar do isqueiro, lembro do último cigarro que estava fumando quando tirei o par de meias, mas agora não sei onde coloquei o pente, que estava usando quando perdi o fio da meada... ou do cabelo. Pode ser que estivesse em cima da pia molhada, ou embrulhado em alguma toalha, que agora lembro que ter deixado sobre a cama, agora úmida — putz — recém-arrumada.

Na cama a toalha não estava, só a marca de cheiro fresco e outro fio de pelo perdido da ninhada. Nada, de nada adianta ir cortar o cabelo se não lembro mais onde fica o cerebelo, e se eles crescem de novo para mês em mês ir embora mais cinco reais. Mas talvez não fosse culpa do barbeiro, se aquele fio fosse de alguma sobra da última vez que procurei um grelo. Acho que estava por baixo do cabelo, que não de pente, nem de rabelo, é digno, inchado e vermelho... e como estrelas, passam de cinquenta em cinquenta ânus.     

 

 

 

 

 

O ÁLBUM

 

Confesso a quase memória que foi a minha vida.

Minhas memórias foram destruídas de tão pouco lembradas.

O que sobrou foi reinventado.

Eram mentiras, que por mais que poucas não eram despercebidas e mesmo assim, irreversíveis.

Todos os anos passados agora são editados em quadradinhos.

Minha quase memória se baseia em fotografias de falsos sorrisos.

Meus familiares todos estão rindo, que gozado! Como são atores...

A máquina fotográfica obscureceu toda minha vida, à sombra de cínicas expressões consanguíneas.

 

 

 

 

 

*

 

Algo indesejado permanece sempre no mesmo lugar

Pra sempre é preciso aguentar

Presença de algo ruim

O doce ruim é o que sempre rende

A pior camiseta é a que está sempre nova

Pode ser um relógio quebrado

Sem uso, ou abusado se impondo pra mim

Nem é o melhor amigo aquele que está sempre presente.

E quem me entende é o cachorro, e mesmo ele está rindo de mim.

 

 

 

 

 

 

O TÉDIO

 

O tédio rotinizou minha vida,

O tédio acabou com o próprio tédio,

Da sala,

Do prédio.

 

O tédio que parecia incurável,

Me fez tomar remédio.

Chateou-me todo

Com o barulho ao lado

Do martelo...

Do prego.

Da vibração que faz de tímpanos — flagelo.

E ocupou meu tempo,

E este tempo não lembrável,

De notícias iguais,

Foi para o lixo, junto aos demais jornais velhos.

 
 
 
 
 
(imagens ©saulo marzochi)
 
 
 
 
 
 
Saulo Marzochi é artista plástico formado pela PUC-Rio em Comunicação Visual. Possui exposição individual de pintura na Galeria Djanira — Centro de Cultura Raul Leoni, Petrópolis, RJ. É autor do romance policial Boca calada e do livro de poemas Espelho, editados pela editora independente Da Gávea Livros. Edita os blogues Portfólio de Desenhos, Portfólio de Design e MariaContemporâneo.